KIERKEGAARD E O DESESPERO

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 22 de outubro de 1977

O desespero é uma vantagem ou um defeito? Uma coisa e outra em dialética pura. Se lhes captamos tão-somente a idéia abstrata, sem pensar num caso determinado, deveríamos considerá-lo como enorme vantagem. Ser passível deste mal nos coloca acima do animal, progresso que nos distingue bem mais que o caminhar vertical, sinal da nossa verticalidade infinitiva ou do sublime da nossa espiritualidade. A superioridade do homem sobre o animal reside pois em ser passível de desespero, a do cristão sobre o homem natural, em sê-lo com consciência, assim como sua beatitude reside no estar curado dele.
Assim, é uma infinita vantagem poder desesperar, e, contudo, o desespero não somente é a pior das misérias, como a nossa perdição. Habitualmente a relação do possível com o real apresenta-se diversamente, porque, se é uma vantagem, por exemplo, poder-se ser o que se deseja, maior ainda é sê-lo, o que significa que a passagem do possível ao real é um progresso, uma ascensão. Pelo contrário, com o desespero, se cai do virtual ao real, e a margem infinita do virtual sobre o real dá aqui a medida da queda. Não estar desesperado é pois elevar-se. Mas nossa definição é ainda equívoca. A negação, aqui, não é a mesma que a de não ser coxo, não ser cego, etc. Porque, se não desesperar equivale à ausência absoluta de desespero. Não estar desesperado deve significar a destruição da aptidão a estar desesperado: para que um homem não o esteja verdadeiramente, é preciso que a cada instante aniquile em si a sua possibilidade. Habitualmente, é outra a relação do virtual destruído; sem plena exatidão contudo, pois é o virtual cumprido, o virtual agindo. Aqui, pelo contrário, o real (não estar desesperado) uma negação por conseguinte, é o virtual impotente e destruído, ordinariamente, o real confirma o possível, aqui o nega.
O desespero é a discordância interna de uma síntese cuja relação se relaciona consigo mesma. Mas a síntese não é a discordância, ela não é mais que a sua possibilidade, ou ainda ela a implica. Senão, não haveria sombra de desespero, e desesperar não seria mais do que um traço humano, inerente à nossa natureza, isto é, não haveria o desespero. O desespero está, portanto, em nós; mas se não fôssemos uma síntese, não poderíamos desesperar, tampouco o poderíamos se esta síntese não tivesse recebido de Deus, ao nascer, a sua firmeza.
Donde procede então o desespero? Da relação em que a síntese se relaciona consigo mesma, pois Deus, fazendo do homem esta relação, como que o deixa escapar da sua mão, o que significa, por conseguinte, caber à relação o conduzir-se a si mesma. Esta relação é o espírito, o eu, e nela jaz a responsabilidade da qual depende sempre todo desespero, desde que existe; da qual ele depende, a despeito dos discursos e do engenho dos desesperados em enganarem-se ou enganar os demais, tomando-o como um infortúnio - como no caso da vertigem que o desespero, ainda que diferente em natureza, evoca em mais de um aspecto, estando a vertigem para a alma como o desespero para o espírito e abundando em analogias com ele.
Depois, quando a discordância, o desespero, aparece, seguir-se-á, só por isso, que persiste? De modo algum; a duração da discordância não procede da discordância, mas da relação que se relaciona consigo mesma. Em outras palavras, cada vez que uma discordância se manifesta, e enquanto ela dura, é necessário remontar à relação. Diz-se por exemplo, que alguém contrai uma doença por imprudência. A seguir declara-se o mal, e desde esse momento, é uma realidade, cuja origem está cada vez mais no passado. Seria cruel e monstruoso censurar continuamente o doente por estar em vias de contrair a doença, com o fim de dissolver a cada instante a realidade do mal na sua possibilidade. Bem! Contraiu-a por sua culpa, mas só uma vez foi por sua culpa. A persistência do mal não é senão a simples consequência da única vez que a contraiu, à qual não se pode, a todo instante, remontar o seu agravamento; ele a contraiu, mas não pode dizer que ainda a contrai.
As coisas se passam diversamente no desespero. Cada um dos seus instantes reais é remontável à sua possibilidade; a cada momento em que se desespera; se contrai o desespero; o presente sempre se desvanece em passado real; a cada instante real do desespero o desesperado carregada todo o possível passado como presente. Isto provém de ser o desespero uma categoria do espírito, e concerne, no homem, à sua eternidade. Mas não podemos estar quites com esta eternidade para toda eternidade; nem, sobretudo, rejeitá-la de uma vez, a cada instante em que estamos sem ela, é porque já a rejeitamos ou a estamos rejeitando - mas ela volta, isto é, em cada instante em que desesperamos contraímos o desespero. Porque o desespero não é uma consequência da discordância, mas da relação orientada sobre si mesma.


Soren Kierkegaard, pensador cristão, dinamarquês, nasceu em 1813 e morreu em 1885. É considerado o fundador do existencialismo. Educado muito rigidamente, revoltou-se mais tarde, entregando-se a uma vida de dissipação. Voltou ao estudos e à religião, vivendo uma vida solitária. Não obstante sua religiosidade, enfrentou publicamente a Igreja Luterana. No leito de morte recusou os sacramentos do pastor: "Pastores são funcionários reais e funcionários reais nada têm a ver com o cristianismo". Escreveu "Temor e Tremor", "Diário de Um Sedutor", "Conceito de Angústia", "Tratado do Desespero", entre outros. Deste último (publicado pela Ed. Coordenada, Brasília) foi extraído o texto acima.


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