DA BELEZA COMO SÍMBOLO DA MORALIDADE
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sábado, 29 de dezembro de 1990.
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Immanuel
Kant
A prova da realidade de nossos conceitos requer sempre intuições.
Se se trata de conceitos empíricos, as intuições
chamam-se exemplos. Se aqueles são conceitos de entendimento
puros, elas são chamadas esquemas. Se além disso
se pretende que seja provada a realidade objetiva dos conceitos
da razão, isto é das idéias e na verdade
com vistas ao conhecimento teórico das mesmas, então
se deseja algo impossível, porque absolutamente nenhuma
intuição pode ser-lhes-dada adequadamente.
Toda hipotipose (apresentação, "subjectio sub
adspectum") enquanto sensificação é
dupla; ou esquemática, em cujo caso a intuição
correspondente a um conceito que o entendimento capta é
dada "a priori"; ou simbólica, em cujo caso é
submetida a um conceito, que somente a razão pode pensar
e ao qual nenhuma intuição sensível pode
ser adequada, uma intuição tal que o procedimento
da faculdade do juízo é (212) mediante ela simplesmente
analógico ao que ela observa no esquematismo, isto é
concorda com ele simplesmente segundo a regra deste procedimento
e não da própria intuição, por conseguinte
simplesmente segundo a forma da reflexão, não do
conteúdo.
Trata-se de um uso na verdade admitido pelos mais recentes lógicos,
mas incorreto e subvertedor do sentido da palavra simbólico
quando se a opõe ao modo de representação
intuitivo; pois o modo de representação simbólico
é somente uma espécie do modo de representação
intuitivo. Ou seja, este (o intuitivo) pode ser dividido no modo
de representação esquemático e no modo de
representação simbólico. Ambos são
hipotiposes, isto é apresentações ("exhibitiones");
não são simples caracterismos, isto é denotações
dos conceitos por sinais sensíveis que os acompanham e
que não contêm absolutamente nada pertencente à
intuição do objeto, mas somente servem a esses segundo
a lei da associação da faculdade da imaginação,
por conseguinte como meio de reprodução de um ponto
de vista subjetivo; tais sinais são ou palavras ou sinais
visíveis (algébricos e mesmo numéricos) enquanto
simples expressão de conceitos. (213)
Todas as intuições que submetemos a conceitos "a
priori" são ou esquemas ou símbolos, cujos
primeiros contêm apresentações diretas e os
segundos apresentações indiretas do conceito. Os
primeiros fazem isto demonstrativamente e os segundos mediante
uma analogia (para a qual nos servimos também de intuições
empíricas), na qual a faculdade do juízo cumpre
um dupla função: primeiro de aplicar o conceito
ao objeto de uma intuição sensível e então,
segundo, de aplicar a simples regra da reflexão sobre aquela
intuição a um objeto totalmente diverso, do qual
o primeiro é somente o símbolo. Assim um Estado
monárquico é representado por um corpo animado,
se ele é governado segundo leis populares internas, mas
por uma simples máquina (como porventura um moinho), se
ele é governado por uma única vontade absoluta,
em ambos os casos porém só simbolicamente. Pois
entre um Estado despótico e um moinho não há
na verdade nenhuma semelhança, mas certamente entre as
regras (214) de refletir sobre ambos e sua causalidade. Este assunto
até agora ainda foi pouco analisado, por mais que ele também
mereça uma investigação mais profunda; só
que este não é o lugar para ater-se a ele. A nossa
linguagem está repleta de semelhantes exposições
indiretas segundo uma analogia, pela qual a expressão não
contém o esquema próprio para o conceito mas simplesmente
um símbolo para a reflexão. Assim as palavras fundamento
(apoio, base), depender (ser segurado por cima), fluir de algo
(ao invés de suceder), substância (como Locke se
expressa: o portador dos acidentes) e inumeráveis outras
hipotiposes e expressões não esquemáticas,
mas simbólicas para conceitos, não mediante uma
intuição direta mas somente segundo uma analogia
com ela, isto é segundo a transferência da reflexão
sobre um conceito totalmente diverso, ao qual talvez uma intuição
jamais poderá corresponder diretamente. Se um simples modo
de representação já pode ser denominado conhecimento
(o que é perfeitamente permitido), se aquele modo é
um princípio não da determinação teórica
do objeto, do que ele é (215) em si, mas da determinação
prática, do que a idéia dele deve ser para nós
e para o uso dela conforme a fins. Assim todo o nosso conhecimento
de Deus é simplesmente simbólico; e aquele que o
toma por esquemático com as propriedades de entendimento,
vontade etc., que provam unicamente a realidade objetiva de entes
mundanos, incide no antropomorfismo, assim como, se ela abandona
todo o intuitivo, no deísmo, pelos quais em parte alguma
é conhecido algo, nem mesmo em sentido prático.
Ora, eu digo: o belo é o simbolo do moralmente-bom; e também
somente sob este aspecto (uma referência que é natural
a qualquer um e que também se exige de qualquer outro como
dever) ele apraz com uma pretensão de assentimento de todo
o outro, em cujo caso o ânimo é ao mesmo tempo consciente
de um certo enobrecimento e elevação sobre a simples
receptividade de um prazer através de impressões
dos sentidos, e aprecia também o valor de outros segundo
uma máxima semelhante de sua faculdade do juízo.
É o inteligível que - como o parágrafo anterior
indicou - o gosto tem em mira, com o qual concordam mesmo as nossas
faculdade de conhecimento superiores e sem o qual cresceriam meras
contradições entre sua natureza e as pretensões
do gosto. Nesta faculdade o juízo ("die Urteilskraft")
não se vê submetido a uma heteronomia das leis da
experiência, como de mais a mais ocorre no ajuizadamente
empírico; ela dá a si próprio a lei com respeito
aos objetos de uma complacência tão pura, assim como
a razão o faz com respeito à faculdade de apetição;
e ela vê-se referida, quer devido a esta possibilidade interna
no sujeito, quer devido à possibilidade externa de uma
natureza concordante com ela, a algo no próprio sujeito
e fora dele que não é natureza e tampouco liberdade,
mas que contudo está conectado com o fundamento desta,
ou seja o supra-sensível no qual a faculdade teórica
está ligada, em vista da unidade, com a faculdade prática
de um modo comum ("gemeins-chartlionen") e desconhecido.
Queremos apresentar alguns elementos sem so mesmo tempo deixar
de conservar sua diferença.
1) O belo apraz imediatamente (mas somente na intuição
reflexiva, não como a moralidade no conceito). 2) Ele apraz
independentemente de todo interesse (o moralmente-bom na verdade
apraz necessariamente ligado a um interesse, mas não a
um interesse que perceba o juízo sobre a complacência
e sim que é pela primeira vez produzido através
dele). 3) A liberdade da faculdade da imaginação
(portanto da sensibilidade de nossa faculdade) é representada
no ajuizamento do belo como concordante com a legalidade do entendimento
(no juízo moral a liberdade da vontade é pensada
como concordância da vontade consigo própria segundo
leis universais da razão). 4) O princípio subjetivo
do ajuizamento do belo é representado como universal, isto
é como válido para qualquer um, mas não como
cognoscível por algum conceito universal (o princípio
objetivo da moralidade é também declarado universal,
isto é como cognoscível por todos os sujeitos, ao
mesmo tempo por todas as ações do mesmo sujeito
e isso através de um conceito universal). Por isso o juízo
moral não somente é capaz de determinados princípios
constitucionais, mas somente é possível pela fundação
de máximas sobre os mesmos e sobre sua universalidade.
A consideração desta analogia é também
habitual ao entendimento comum; e nós frequentemente damos
a objetos belos da natureza ou da arte nomes que parecem pôr
a fundamento um ajuizamento moral. Chamamos edifícios ou
árvores de majestosos ou suntuosos, ou campos de risonhos
e alegres, mesmo cores são chamadas de inocentes, modestas,
ternas, porque elas suscitam sensações que contêm
algo analógico à consciência de um estado
de ânimo produzido por juízos morais. O gosto torna
por assim dizer possível a passagem do atrativo dos sentidos
ao interesse moral habitual sem um salto demasiado violento, na
medida em que ele representa a faculdade da imaginação
como determinável também em sua liberdade como conforme
a fins para o entendimento e ensina a encontrar uma complacência
livre mesmo em objetos dos sentidos e sem um atrativo dos sentidos.
Notas
212, "é", acrescentado por Erdmann.
213,
O intuitivo do conhecimento tem que ser oposto ao discursivo (não
ao simbólico) enquanto representação segundo
uma simples analogia (Nota de Kant).
214
Kant: "a regre", corrigido por Erdmann e Windelband.
215
"é", acréscimo de Erdmann; Windelband
propõe "seja".
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Kant A
"Crítica da Faculdade do Juízo" divide-se
em duas partes. A primeira trata do juízo estético.
A segundo, do juízo teleológico. Partes dessa obra
já tiveram uma edição publicada no Brasil,
na coleção "Os Pensadores", na tradução
de Rubens Rodrigues Torres Filho. O parágrafo 59, que reproduzimos
acima na íntegra, na tradução de Valerio Ronden
e Antônio Marques, faz parte da segunda seção
da primeira parte da "Crítica", "A Dialética
do Juízo Estético", não incluída
na tradução de Torres Filho; esta trazia os 22 primeiros
parágrafos da obra (que compõe a chamada "Analítica
do Belo") e os parágrafos 43 4 (que tratam da relação
entre arte e o gênio). Há uma dificuldade na leitura,
intrínseca aos problemas criados pelos temas (a idéia
de beleza, de sublime, de fim último da natureza), ao rigor
com que Kant trabalhava seus textos e ao vocabulário especial,
que mesmo tomando emprestado da discussão filosófica
corrente em sua época, moldava segundo seu próprio
entendimento. Evidentemente , é um texto difícil.
Mesmo assim, vale a pena lê-lo, ao menos como um exemplo.
Como um lembrete, na tradução já existente,
o título alemão "Kritik der Urteilkraft"
foi vertido por "Crítica do Juízo". A nova
tradução da obra deverá sair no começo
do ano que vem, pela Forense Universitária.
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