JASPERS E O MUNDO

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 16 de abril de 1978

Se voltarmos à fonte da noção do mundo, perceberemos que ela está afetada por um irredutível equívoco. O mundo, com efeito, é, antes de tudo, o "não-eu" que se opõe ao "eu", o "outro", com quem eu estou sempre, pois não esgoto nunca o ser em mim mesmo. Este é o fato fundamental, a situação em geral. Com isso, porém, não descubro, de início, senão um mundo misturado a mim mesmo, um mundo que é a extensão, o reflexo ou o suporte do eu, o "meu" mundo, e não o mundo propriamente. Como defini-lo, então, se não por suas relações comigo?
Esse mundo é, sobre o plano vital, o que os biologistas chamam "o meio ambiente" (Umwelt), que se compõe ao mesmo tempo de um mundo percebido (Merkwelt) e de um mundo agido (Wirkungswelt), cuja estruturas foram estudadas por Uxkuehl. Desse modo, pode-se falar de um mundo dos ouriços ou de um mundo das formigas. De um modo geral, o mundo é o espaço e o tempo em que vivo, onde tenho minhas referências, onde exerço meus poderes, o conjunto de minhas perspectivas e de minha história, o meio do qual estou a serviço e que marco com meu selo pessoal.
Meu mundo é este mundo onde sou e estou, de que fala Heidegger, e cujas análises recentes têm mostrado como ele está fortemente aderido a mim e quantos diversos semblantes me poderia oferecer, conforme as intenções com que o encaro. Sua descrição é a primeira tarefa de uma fenomenologia.
O essencial é o compreender que neste mundo privado em que consigo ser e estar, que me contém e me nutre, no qual eu poderia sentir-me à vontade como um animal, nele, na verdade, eu me recuso a ser sepultado. Em lugar de viver nele uma vida cega e passiva, o que desejo é pensá-lo como um panorama. Promovo em mim a consciência de um modo geral e, assumindo uma "vontade original de saber", me entrego a uma pesquisa que não terá fim.
Essa exigência, que provoca uma crise da qual veremos mais tarde o último sentido, pode ser constatada como um fato: - o homem tenta romper o círculo do "eu" e do "não-eu", estendendo cada vez mais longe as antenas de seu conhecimento, de descobrir o mundo objetivo sobrevoando os mundos particulares.
É assim que faz o biologista, que situa o mundo do animal num mundo comum, do qual o primeiro não é senão um aspecto particular.
Este mundo objetivo é o outro, que se basta a si mesmo e se sustenta em si mesmo, dispensando referências universalmente válidas, e objetivo exatamente num duplo sentido: -povoado de objetos, objeto ele mesmo, e inteligível segundo o entendimento.
Todavia -uma pessoa que pensa o mundo objetivo poderá abandonar o mundo subjetivo? Não apenas o prende a ele tudo o que nele é animal, mas também sua salvação espiritual, pois é nesse mundo que ele pode ser o que realmente é, e realizar suas mais altas possibilidades. Sua vocação é conhecer o mundo objetivo, seu destino é viver num mundo subjetivo. Tanto sua vida como seu pensamento correm, assim, o risco de ser mutilados. Pois, será que é possível chegar à discriminação desses dois mundos? Eles não podem justapor-se sem confusão e, por um jogo inevitável, ora meu mundo torna-se parte do mundo objetivo, ora o mundo objetivo torna-se uma perspectiva do meu mundo.
Uma insuperável confusão envolve e baralha, então, a noção do mundo. Vejamos um pouco o movimento dessa dialética sem saída. Poderia eu, se não estivesse picado pela vontade de saber, contentar-me com pensar apenas o mundo em que sou e estou? Absolutamente não, pois ele não é inteligível para mim senão em relação a um mundo objetivo que o engloba e onde ele se determina. Quando falo dele, em vez de simplesmente viver nele, transformo-o num objeto no mundo dos objetos, e o situo numa realidade mais vasta, entregando-o ao saber objetivo.
Pensar o mundo objetivo é, portanto, negá-lo como subjetivo e anexá-lo à objetividade. Mas o mundo objetivo, por sua vez, não pode reivindicar a exclusividade, pois no momento mesmo em que reduzo tudo a ele, eu me transformo numa pessoa que perde o prumo. E isto pode ser entendido em dois sentidos. Por um lado, fico sendo o sujeito que não tem objeto, mero centro de referência para todo o saber -o que equivale a dizer que o princípio de imanência não pode ser descolado. Por outro lado, quer dizer que o mundo objetivo se ordena no mundo do sujeito que sou. É a partir de meu corpo que se desenrola o espaço, como a partir do meu presente que se desenrola o tempo. Sou eu o "hic et nunc" em que se apoia toda realidade objetiva. E por mais despojada que ela seja, meu conhecimento fica sempre ligado a meu ponto de vista. Por mais que eu queira deixar de ser o centro, nunca posso colocar-me do ponto de vista de Sírius, que seria o único e o verdadeiro.
O homem, na verdade, conseguiu extraordinários esforços de abstração. Exilou-se da sensação imediata para definir o espaço geométrico, renunciou ao considerar a terra como o centro do universo - situando o centro em toda parte e a circunferência em parte alguma.


Karl Jaspers (1883 - 1969) é um dos mais famosos representantes das correntes filosóficas da Alemanha contemporânea. Sua obra exerceu grande influência no moderno pensamento da França. Situado, de certa forma, na linha do existencialismo heideggeriano, tem seu interesse voltado de forma direta e profunda para a circunstância de seu meio e de seu tempo. Tomando sua obra como uma dramática especulação da filosofia da existência, dela se pode dizer que não é apenas o itinerário de uma consciência individual, pois encerra, na verdade, um apelo a uma linguagem comum dos indivíduos. O texto que hoje publicamos é do livro de Mikel Dufrenne e Paul Ricoeur, "Karl Jaspers et la Philosophie de l'Existence" - aux Editions du Seuil - Coll. Esprit.


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