HOBBES E A IMAGINAÇÃO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sábado, 4 de março de
1978.
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Quando
uma coisa está quieta, permanecerá sempre quieta, a menos que
alguma outra coisa a venha perturbar. Esta é uma verdade que ninguém
põe em dúvida. Mas quando uma coisa está em movimento, continuará
eternamente em movimento, a menos que alguém a detenha. A razão
para as duas coisas é a mesma: uma coisa não pode mudar-se a si
própria.
Os homens medem não só os outros homens, mas a todas as coisas,
por si mesmos, e como se vêem submetidos, depois do movimento,
a moléstias e fadigas, julgam que todas as coisas se cansam com
o movimento e buscam o repouso. Daí, a explicação dos escolásticos
de que os corpos pesados caem para baixo por um desejo de repouso,
por uma necessidade de conservar sua natureza no lugar que lhes
é mais cômodo, atribuindo às coisas inanimadas um atributo que
nem os homens possuem, isto é, o de saber o que lhes é melhor
e mais conveniente.
Uma vez que um corpo está em movimento, a menos que alguma coisa
o impeça, move-se perpetuamente. E o elemento que o embarace não
o imobiliza de repente, só conseguindo extinguir completamente
o movimento de maneira gradual e dentro de um certo limite de
tempo. É o que vemos na água: mesmo depois de cessado o vento,
as ondas continuam a agitar-se ainda por algum tempo. O mesmo
acorre com o homem, quando vê ou quando sonha. Pois, depois que
desaparece o objeto, ou que se fecham os olhos, conservamos ainda
a imagem da coisa vista, embora mais apagada do que quando a estávamos
vendo propriamente. É a isto que os latinos chamam de "Imaginação",
pela imagem que se forma ao ver. A mesma designação se aplica,
embora impropriamente, a todos os outros sentidos. Os gregos chamam
a mesma coisa de "Fantasia" palavra que significa "aparência",
e esta designação é tão apropriada a um como a outro sentido.
A "Imaginação" não é, portanto, mais do que a "sensação diminuída",
e se encontra no homem como em outras criaturas vivas, tanto dormindo
como despertas.
O empobrecimento da sensação nos homens despertos não é uma diminuição
do movimento produzido nos sentidos, mas um obscurecimento, à
maneira da luz do Sol, que obscurece a das estrelas, cuja verdadeira
luz é tão brilhante de dia como de noite. Mas assim como os muitos
choques recebidos por nossos olhos, ouvido e demais órgãos, provocados
por corpos externos, da mesma forma a luz solar compromete a luz
das estrelas. Qualquer objeto pode desaparecer de diante de nossos
olhos, deixando, entretanto, a presença de sua imagem. Mas se
outros objetos se impõem mais poderosamente à nossa vista, a imagem
anterior se debilita e desaparece, como uma voz que se afasta
e se dilui no meio do burburinho da rua. Conclui-se, assim, que
quanto maior for o tempo transcorrido depois da visão ou sensação
de um objeto, mais débil se faz sua imagem. Pois a contínua mudança
de corpos diante dos homens destrói as faculdades da percepção.
Deste modo, as distâncias no tempo e no espaço têm sobre nós o
mesmo efeito. Assim como olhamos para um lugar muito distante,
e suas partes vão ficando mais obscuras, menores e mais indecisas,
assim também a voz longínqua se torna débil e inarticulada. Da
mesma forma, nossas lembranças do passado se atenuam. Das cidades
que vimos há muito tempo, esquecemos os contornos de certas ruas,
da mesma forma como esquecemos aspectos e detalhes de acontecimentos
do passado. Quando queremos lembrar essas coisas afastadas pelo
tempo ou pelo espaço, recorremos à fantasia ou à imaginação. Mas
quando queremos expressar o debilitamento da imagem que vimos
e das coisas que conhecemos, quando nem a fantasia nem a imaginação
nos ajudam, recorremos à Memória. Desse modo, a imaginação e a
Memória são uma e a mesma coisa, que por diversas circunstâncias,
tomam nomes diferentes. A memória densa, a memória de muitas coisas,
chama-se "experiência". Quando uma pessoa se ocupa só da visão
ou do sentido de alguma coisa ou de algum acontecimento, joga
apenas com a imaginação simples. Mas quando nos lembramos de uma
coisa ou de uma pessoa associada a um acontecimento, trata-se,
então, de uma imaginação composta... As imaginações dos que dormem
chamamos de "sonhos". Essas imaginações também estiveram antes,
no todo ou em parte, em nossos sentidos... A maior dificuldade
para distinguir o sonho de um homem de seus pensamentos em vigília,
ocorre quando, por algum acidente, não nos damos conta exatamente
se estamos despertos ou adormecidos, o que é frequente
quando se cochila numa poltrona.
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Thomas
Hobbes (1588-1679). Viveu, pois, 91 anos, tendo sobrevivido
a Spinoza e Descartes, embora sua data de nascimento o inclua na
geração pré-cartesiana. Nascido em Malmesbury, estudou em Oxford,
foi preceptor de vários nobres, inclusive do futuro rei Carlos II,
quando ainda Príncipe de Gales. Foi secretário de Bacon, amigo de
Mersenne, íntimo de Descartes e conheceu Galileu. Ocupou-se com
a matemática, o latim e o grego e seu pensamento filosófico está
voltado para os problemas da sociedade e do Estado. Sua obra mais
importante é o "Leviatã", do qual é o texto que hoje publicamos.
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