HELLO E A HONRA
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 30 de abril de 1978
|
|
Honra:
- que quer dizer esta palavra? De tanto ignorá-la, vi-me induzido,
durante muito tempo, a acreditar que não significa nada. Dizia
comigo mesmo: - há o bem, e há o mal, que é uma negação. Mas a
honra é uma palavra vazia. Todo bem é honroso, todo mal é desonroso.
Mas a honra não é nada de particular, e para ela há outra lei
que não é a lei que ordena o bem e proíbe o mal. A honra consiste,
pois, no nome que toma a moral na boca dos que não a conhecem.
A honra é um ídolo. É o Deus daqueles que não têm Deus. O discurso
que eu ia alinhavando certamente não é inverossímil. Mas inclino-me
a acreditar que sua verdade é falha, todas as palavras têm um
sentido, e o importante é descobrir esse sentido. Quando uma palavra
foi profanada pelo erro, chega a ser difícil separá-la dele. Dir-se-ia
que essa palavra estabeleceu um domicílio nas trevas, e que é
preciso fazer violência para arrancá-la ao inimigo. A honra é
uma dessas palavras. A mentira apoderou-se dela e a tratou como
um de seus bens, como propriedade sua. A mentira quis confiscar
o nome da honra, até o ponto de tirar-lhe inclusive as aparências
de uma palavra séria. Colocou-se a honra nas vizinhanças do desafio,
e essa máscara lhe cobriu tão perfeitamente o rosto, que parece
até que o substituiu. Mas as palavras têm direito à justiça. Não
se devem excluir as que foram caluniadas. Devem ser restituídas
à língua e novamente expostas à luz. A humanidade é uma imensa
reunião de pecadores. Quem quer que se olhe a si mesmo, se espanta
do que vê e retrocede diante do objeto que contempla. Quanto mais
o homem conhece o homem, mais cresce aos seus olhos o abismo.
É espetáculo horrível olhar para qualquer lado. Pois, por onde
haja passado o homem, deixou seu sinal, e seu sinal é espantoso.
Assim mesmo, a humanidade que, em seu extravio, conserva o instinto
da justiça, fala andando. Fala à natureza. Fala-se a si mesma.
Fala a Deus, e deve prestar atenção às suas palavras, talvez pronunciadas
em delírio. Pois o instinto da justiça acha-se enterrado debaixo
das ruínas do homem, e não é impossível descobri-lo, mesmo na
escuridão da noite. Pode-se descobrir ao clarão da lua um ninho
de águias sob os escombros dum antigo monumento. O homem, pois,
fala desde as profundezas de sua ruína, e se é de boa fé, se diz
culpado, e não nega quando se diz que é culpado, e sente igualmente
culpado a seus irmãos. Mas nessa multidão, há alguns aos quais
não chama de culpados, nem de pecadores, declarando-os simplesmente
desonrados. Essa imensa diferença que estabelece a linguagem entre
os homens, quando a uns chama de pecadores e a outros de desonrados;
quando declara que todos perderam a inocência, mas que alguns
perderam também a honra - essa diferença imensa marcada pela linguagem,
deve encontrar seu princípio, sua razão de ser nalguma imensa
diferença que as coisas têm entre si. Pois a linguagem não tem
muitos caprichos. Foi feita para nomear as coisas, e nelas sempre
se recorda um pouco de sua origem. A linguagem respirou seu ar
natal nas sombras do Éden no dia em Adão, que penetrava a intimidade
das coisas, julgou as criaturas, nomeando os animais. Uma vez
que a linguagem humana distingue tão bem a desonra da falta, deve
existir um abismo entre esses dois abismos. O homem que cai desperta
a compaixão naquele que o vê cair. Qual é, porém, o sentimento
que provoca aquele que se desonra a vossos olhos? A palavra capaz
de responder a esta pergunta talvez não exista, ou se talvez existe,
eu não a conheço. Mas, ao menos: - que faz o homem que se desonra
e em que difere do que cai de outro modo? Toda desonra contém
uma falta: - mas nem toda falta contém uma desonra. Não sei se
a resposta que vou propor parecerá arbitrária, ou, pelo contrário,
fundada na natureza das coisas. Talvez o primeiro movimento do
leitor se incline para a primeira das duas afirmações, e o segundo
para a segunda. Que é que faz que um culpado não seja apenas culpado,
mas também infame? Qual seria a essência da desonra, se é que
a desonra tem uma essência? Seria, se não me engano, esta: - prometer
e não cumprir. A vergonha tem muitas formas, muitos aspectos,
muitos rostos. Três mil maneiras de desonrar-se. Mas toda multiplicidade
se resolve numa unidade qualquer. O pecado produz aspectos mais
diversos. Não obstante, no início de todo pecado, há um monstro
único - o orgulho. A vergonha possui todas as vestes: muda-as
com frequência, e usa-as segundo as circunstâncias. Sua fisionomia
também muda: ora ri, ora chora. Mas se com a luz na mão se procurasse
suas fealdades, e entre elas o tipo que resume o princípio que
as gerou, ver-se-ia que o desonrado é aquele que prometeu e não
cumpriu. Se se pudesse interrogar o desprezo, para perguntar-lhe
qual é o segredo de sua marca e sua identidade, ele responderia:
- eu sou aquele que conhece alguém que promete e não cumpre.
|
|
Ernest
Hello - (1828 - 1885) é um dos mais importantes representantes
do pensamento católico francês do séculos XIX.
Situando-se na mesma linha de Joseph de Maistre e de Lamennais,
foi, ao mesmo tempo, um teólogo, um místico e uma
espécie de panfletário religioso, preocupado com o
sentimento da ordem eterna existente nas coisas. Sua voz tem às
vezes os ecos de Pascal e dos profetas bíblicos, não
perdendo nunca, porém, a assombrosa originalidade que é
a marca de seu pensamento. Traduziu para o francês o livro
de Ruysboeck, o Admirável, escreveu em jornais e deixou inúmeros
livros, como "Les Paroles de Dieu", "Les Plateaux
de la Balance", "Physionomie des Saints" e muitos
outros. O texto que hoje publicamos é de seu livro "L'Homme",
editado pela primeira vez em 1872.
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|