HAMILTON E A FEDERAÇÃO

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 29 de março de 1978

As leis dos Estados Unidos são o poder supremo neste país. E onde há um poder supremo, não pode haver uma autoridade paralela. Como decidimos nos unir em Federação de diversos Estados, as leis dos Estados não podem conflitar com a lei maior da República, até porque por ser ela que constitui o país, se chama de constituição.
Se a Constituição é a lei suprema, não pode haver outra lei que a contradiga ou lhe seja superior. Pois não pode haver duas leis supremas, a não ser que se tratem de matérias diversas.
As leis dos Estados Unidos são supremas na área própria a que estão destinadas, isto é, naquela que diz respeito aos direitos nacionais propriamente ditos, à Constituição que regula a liberdade e a igualdade dos cidadãos de todo o país.
Como somos uma Federação, os Estados gozam de autonomia para estabelecer soberanamente seus próprios princípios constitucionais, com uma única limitação: a Constituição Nacional, com a qual não pode haver qualquer tipo de colisão. E a soberania dos Estados é assegurada, e tem de ser respeitada, até porque do contrário a Constituição Federal estaria sendo violada.
As leis estaduais podem ser feitas e executadas em perfeita harmonia com a lei federal, e sustentar o contrário seria pretender o princípio da Federação, sobre o qual se funda a estrutura deste país. Debilitar ou destruir a Federação numa República de sistema presidencial de governo, ao contrário de consolidar, como aparentemente se poderia pensar, a unidade da nação, poderia, isto sim, submetê-la a um risco permanente.
Num regime presidencialista, as violações da autonomia dos Estados-membros conduz a um enfraquecimento da própria unidade nacional, pois parece inevitável que a União comece a legislar, no campo da tributação, por exemplo, ou dos melhoramentos públicos, em favor de alguns Estados e em detrimento de outros.
O respeito aos princípios federativos, que impondo aos Estados governantes práticas fiscais e políticas econômicas, conduz a União ao exercício de uma tirania inevitável. E qualquer tipo de tirania constitui uma traição à democracia em cujo nome nos organizamos em nação, fundada sobre o respeito à opinião pública.
No momento em que o governo da União deixa de respeitar a opinião de um Estado inteiro, parece claro que já perdeu todo o respeito pelos cidadãos individualmente e por isso mesmo como representante de um poder legítimo.
A tirania, por sua vez, é companheira inseparável da corrupção. Pois um governo em que os cidadãos não tem liberdade ampla, total e irrestrita de fiscalizar os atos do governo, de censurar os seus erros, de conhecer as razões de suas decisões e de impedir os atos que atentam contra o bem comum, pela força de seus jornais, de suas palavras na praça pública e de pronunciamentos de seus representantes no Congresso, estará a nação exposta à cupidez dos que dela se servem.
Enquanto o Congresso mantém a convicção da necessidade de considerar os governantes executivos como simples agentes da vontade popular que representam, pode a nação ficar tranquila. No momento em que, por esta ou aquela razão, o Congresso perde essa convicção, o governo corre e o perigo de cair nas mãos dos homens maus.
Há certos princípios naturais na natureza humana, dos quais podemos tirar as mais sólidas conclusões com respeito à conduta de indivíduos e comunidade. Na verdade, amamos a nossa família mais que a nossos vizinhos. Amamos nossos vizinhos mais do que a nossos compatriotas em geral. As afeições humanas, como o calor do sol, perdem sua intensidade à medida que se afastam do centro de incidência, e se vão debilitando na proporção em que se amplia o círculo em que atuam.
Da mesma forma, estamos mais próximos de nosso Estado do que da União. A União sabe menos sobre as coisas de nossos próprios Estados, do que nós que vivemos ali, conhecendo seus homens, seus problemas, sua razões e suas aspirações.
No dia em que os Estados perderem sua autonomia, o povo desses Estados estará perdendo também sua liberdade essencial, sua liberdade política, sua liberdade econômica, e até uma parcela essencial de sua dignidade. Se algum dia quiserdes ter a certeza de que esta nação já não está sendo governada por um democrata, por um governo legítimo, mas por um tirano, que trai toda a nossa vocação, basta verificar se ele está respeitando a autonomia dos Estados, pois, se ele estiver roubando a liberdade dos Estados da União, estará roubando, ipso facto, a liberdade deste país. E, assim, não merecerá nosso respeito, mas nosso repúdio.


Alexandre Hamilton (1757-1804) tem seu nome ligado a duas das maiores contribuições à democracia dos Estados Unidos. Foi, sem dúvida, a maior figura dos debates e das soluções da Convenção Constitucional de 1787, que deu ao país sua lei básica. Por outro lado, é considerado também o pai da organização financeira dos Estados Unidos, tendo sido o primeiro secretário do Tesouro depois da Independência, quando sustentava que "sem democracia não se constrói a riqueza de uma nação". Foi morto num duelo com Aaron Burr. O texto que hoje publicamos é um fragmento de discurso pronunciado na Convenção Constitucional, como representante de seu Estado, Nova York, para a aprovação da Constituição Federal de que foi talvez o artífice maior.


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