GRATRY E O ATEÍSMO

Folha de S.Paulo, sábado, 6 de maio de 1978.


Será possível demonstrar a existência de Deus? Será necessário? Não será a verdade sobre a existência de Deus evidente por si mesma, indemonstrável como um axioma? Pode haver ateus?
Parece à primeira vista que esta proposição —"Deus é"— não é outra coisa senão uma proposição idêntica a esta outra: "o ser é". E assim é, realmente, para quem conhece o sentido da palavra Deus, uma vez que esta palavra quer dizer "aquele que é". Trata-se, pois, de uma proposição daquelas que são evidentes desde quando se conhecem seus termos. Seus termos implicam sua verdade, pois o sujeito e o atributo são idênticos, trazendo sua certeza em si mesma, como quando se diz que o todo é maior do que sua parte.
Nem todos os homens, porém, conhecem o sentido da palavra Deus. Pois nem todos entendem que Deus é precisamente aquele que é. A verdade da existência de Deus não é evidente para todos, e requer sua demonstração a partir das noções comuns. A proposição que a afirma é idêntica, mas sua identidade não é visível a todos os olhos.
E de fato, há ateus. O ateísmo, teórico e prático, é um vício profundo, ou, em termos mais claros, o vício radical do coração e do espírito humano. Século algum se viu livre dele, e o nosso está mais contagiado do que se imagina. O ateísmo prático é bem visível a todos os olhos, e o ateísmo filosófico se desenvolve sob a forma de panteísmo. Mais ainda: — o ateísmo formal, preciso, confessado, declarado, tem sua escola. E esta escola de ateísmo antigo, se eleva sobre uma base que é a chamada ciência moderna.
Não é difícil, na verdade, fazer justiça a esta pretensa ciência moderna. Ela não é outra coisa senão o vício radical do coração e do espírito humano reduzido a doutrina, e sua aparência científica decorre do fato de aplicar, mas ao contrário, o verdadeiro método, o procedimento fundamental da razão.
Antes de tudo, porém, afirmamos que a existência de Deus pode ser rigorosamente demonstrada, e que não há teorema de geometria mais exato. Esta é, além disso, a opinião de Descartes como de Leibnitz. E o sábio Cardeal Gerdil sustenta a mesma coisa.
Trataremos deste assunto, no qual se envolve toda a metafísica, toda a moral, toda a lógica e toda a teoria do método com a extensão que merece esta questão maior da filosofia, da qual é o fundamento e o resumo.
Antes de tudo, se há provas verdadeiras da existência Deus, estas provas têm que estar ao alcance de todos os homens. Pois a luz de Deus ilumina e devia iluminar a todo homem que vem a este mundo.
Para achar, portando as provas úteis da existência de Deus, é preciso buscar sua origem e sua realidade em alguma operação vulgar e quotidiana do espírito humano. E uma vez encontrada esta sublime e singela operação, bastará descrevê-la e traduzi-la em linguagem filosófica.
Pois bem: esta operação vulgar e quotidiana da alma humana, espírito e coração, inteligência e vontade, não é outra coisa senão o fato universal da "oração", em filosofia, exatamente o que entendia Descartes quando diz: — "Sinto que sou um ente limitado, que tende e aspira sem cessar a algo melhor e maior do que aquilo que sou". A oração é o movimento da alma para elevar-se do finito ao infinito.
O desprezo da realidade presente, tão natural ao homem; a espera do futuro ideal, tão habitual na alma; o instinto do maravilhoso e o pressentimento do infinito, são a fonte dessa operação sublime e singela que demonstra a existência de Deus.
Quem não o sabe? A alma do homem, sobretudo quando é elevada, pura, em seu vigor e sua juventude, concebe e deseja ilimitadamente todos os bens de que vê algum vestígio. Apagam-se todos os limites, todos os entraves e todas as imperfeições se afastam. Concebe-se o ser em toda sua plenitude: concebe-se o amor eterno, a felicidade sem vicissitudes, a verdade sem sombras, a vontade mais forte que qualquer obstáculo, a força que se burla do espaço e do tempo, além das maravilhosas criações súbitas, realizadas com uma palavra, com um gesto, com um desejo.
Todos estes pressentimentos do coração do homem, todos estes sonhos dourados da infância, todas estas inebriações do néctar ideal, implicam um método verdadeiro e rigorosamente científico. Analisadas pela razão, esta poesia, esta fé, contêm a demonstração rigorosa da existência de Deus e de seus atributos.
De fato, este é o procedimento poético e vulgar que, por pedagogia e tradição, eleva a maioria dos homens ao conhecimento de Deus. Mas há também os procedimentos da razão, o procedimento silogístico e o procedimento dialético de Leibniz, por ele também chamados de "lógica de invenção" e "lógica de dedução", e que correspondem ao silogismo e à indução de Aristóteles, tanto como ao silogismo e à dialética de Platão.


Alphonse Gratry — (1805 - 1872). É um filosofo francês particularmente voltado para os problemas do conhecimento e sua epistemologia. Tendo-se tornado ateu na juventude, estudou matemática na Escola Politécnica, converteu-se ao Catolicismo, recebeu ordens sacerdotais e reformou a Congregação do Oratório, em cuja comunidade viveu alguns anos. Ensinou teologia na Sorbonne e foi membro da Academia Francesa. No Concílio Vaticano I, estabeleceu uma polêmica contra o dogma da infalibilidade papal, cuja proclamação julgava não ilegítima, mas inoportuna. Terminou aceitando a decisão conciliar. Entre sua obras mais importantes estão "Logique", "La Connaissance de l'Ame" e "La Connaissance de Dieu", da qual é o texto que hoje publicamos.

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