FICHTE E A SABEDORIA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 31 de março de 1978
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Qual
é o destino do homem erudito? Quais são suas relações,
tanto com a humanidade em sua totalidade, como com cada uma das
classes sociais que a integram? De que meios terá de valer-se
para conseguir com eficácia seu excelso destino?
O erudito só é erudito na medida em que se confronta
com homens que não o são. Seu conceito nasce da
comparação, de sua relação com referência
à sociedade, que compreende não apenas o Estado,
mas, de um modo geral, toda a sociedade de seres racionais que,
convivendo no mesmo espaço, entram, por isto mesmo, em
relação mútua.
O destino do homem, desde que seja um erudito, só pode
ser imaginado dentro da sociedade. E, por conseguinte, a resposta
à pergunta: - "Qual é o destino do homem erudito?
- supõe a prévia contestação de uma
outra pergunta: - "Qual é o destino do homem dentro
da sociedade?"
A resposta a esta pergunta, por sua vez, supõe a de uma
outra, ainda mais elevada, a saber: "Qual é o destino
do homem em si, isto é, do homem tomado apenas em sua qualidade
de homem, isolado e desligado de toda conexão, não
entranhada necessariamente em seu conceito?"
Permito-me dizer desde logo, sem maiores demonstrações,
aquilo que está claro para alguns e que outros também
sentem embora vagamente, mas nem por isso com menor vigor: toda
filosofia, todo pensar e ensinar humanos, todo estudo que eu possa
expor, agora e sempre, não pode ter outra finalidade senão
a resposta aos problemas aqui colocados, especialmente a este
último e supremo: qual é o destino do homem, em
geral, e quais são os meios para alcançá-lo
com a maior eficácia?
O que se pressupõe é uma filosofia completa e, por
certo, sólida e tratada em toda sua extensão, para
a compreensão precisa, clara e plena deste destino, embora
não, é claro, para a possibilidade de seu sentimento.
Este destino do homem em si é simultaneamente o objeto
de minha presente exposição...
Que coisa seria o autenticamente espiritual no homem, no eu puro
- absolutamente isolado em si mesmo - e sem conexão alguma
com tudo aquilo que não está inserido nele? Esta
pergunta é inconciliável - e, examinada com precisão,
uma antinomia consigo mesma. Não há dúvida
de que é errôneo considerar que o eu puro seja um
produto do não-eu - entendendo-se por essa designação
tudo aquilo que se imagina não incluído no eu, dele
diferenciado e a ele se opondo. É errôneo, repito,
considerar que o eu seja um produto do não-eu.
Uma proposição dessa ordem seria a expressão
de um materialismo transcendente, que é completamente absurdo.
Por isso, se é positivamente certo - e é - que o
eu nunca chega a tomar consciência de si mesmo, nem pode
chegar a tê-la senão em suas determinações
empíricas, que necessariamente pressupõem algum
outra coisa não inserida no eu...
Qual é, então, o destino do homem, isolado de tudo
que não seja o próprio eu? Que lhe corresponde como
homem, que não corresponde igualmente ao não-homem,
entre os seres que conhecemos? Que o distingue de todos os outros
seres que conhecemos e que não são um homem?
O homem é a harmonia geral - a coincidência de todas
as coisas que nele não estão inseridas, como o conceito
que delas ele tem, conceitos estes que determinam como é
que hão de ser as coisas, e que não o fim supremo
do homem. Esta harmonia geral é, empregando a terminologia
da filosofia crítica, o que Kant designa com o nome de
"bem supremo". Este bem supremo, em si, não possui
componentes simples: é a harmonia do ser racional consigo
mesmo...
O que é bom não é o que nos faz felizes.
Bom é o que procura a felicidade. Sem moralidade não
há felicidade possível. É certo que há
sentimento agradáveis mesmo sem moralidade, e até
contra ela. Mas esses sentimentos não integram a felicidade
e, em geral, até conflitam com ela.
O homem existe para ser moralmente melhor, torna-se cada vez mais
feliz, porque a felicidade se difunde na circunstância em
que se encontra. Este é o destino do homem, considerado
como indivíduo, isto é, fora de toda relação
com os demais seres racionais, seus semelhantes.
Contudo, não vivemos isolados e, embora não possa,
nestas reflexões, encaminhar minhas observações
à conexão geral que impera entre os seres racionais,
nem por isso me é lícito omitir o nexo que nos une
uns aos outros, os seres humanos. E o sábio, o douto, o
que eu chamava antes de eu erudito, é aquele que procura
conhecer e chega a conhecer, em maior profundidade, a vigência
dos vínculos que ligam os homens à circunstância
em que têm de viver, ficando claro, desde logo, que a mais
importante dessas circunstâncias é a presença
de nossos próprios semelhantes.
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Johann Gottlieb Fichte - (1762-1814) é o primeiro dos
grandes filósofos pós-kantianos que constituem o chamado
grupo dos idealistas alemães. Filho de um tecelão,
estudou graças à ajuda de um protetor, que se surpreendeu
com a inteligência do rapaz. Fez teologia em Jena e foi professor.
Foi amigo de Kant. Ensinou em Jena. São famosos seus "Discursos
à Nação Alemã", escritos depois
da ocupação napoleônica. Acusado de ateísmo,
perdeu sua cátedra na Universidade de Jena. Passou a ensinar
em Erlangen, depois em Koenisberg. Sua obra mais importante é
"Wissenschaftslehre". De um de seus capítulos é
o texto que hoje publicamos.
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