FEIJÓ E O SÁBIO

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 1º de março de 1978

O sábio não é desconfiado, mas acautela-se de todos, principalmente dos que conhece, e até com os mesmos amigos tem uma prudente reserva, enquanto por longa experiência não conhece serem dignos de todas a sua confiança. Contudo, desconfia ainda mais de si mesmo e de seu próprio coração, que está sempre disposto a entregá-lo e a deixar-se vencer de enganosos objetos.
Teme as formidáveis setas do amor e foge para mais seguramente triunfar delas, invocando os socorros do céu, que lhe são necessários contra um inimigo tantas vezes vencedor de nossa razão, quando confia unicamente em si. Evita todas as ocasiões perigosas e vigia sempre sobre os sentidos.
Foge igualmente do vinho, porque tem quase sempre por companhia e sensibilidade, e porque de ordinário não nos deixa até a sepultura e nos atrai o desprezo de todos. Algumas vezes joga, mais por condescendência do que por gosto; e nunca sacrifica à paixão do jogo o seu tempo, os seus bens e sua virtude. Proíbe-se severamente de todos os jogos de fortuna. O ganho e a perda o acham sempre com o mesmo rosto alegre.
É moderado em seu trabalho e em seu sono. Evita o excesso dos manjares porque o uso imoderado, ainda dos mais saudáveis, os faz nocivos e venenosos. Obrigado a comer para se alimentar, não o faz para deleitar-se, mas para reparar suas forças e para cumprir melhor as suas obrigações. A dignidade de seus motivos justifica a sua ação.
Em todo o tempo de sua vida procura estar igualmente apartado de uma longa prodigalidade e de uma infame avareza, porque a virtude acaba onde o excesso principia. Liberal por gênio e econômico por justo, poupa seu dinheiro em um dia para servir-se dele a propósito em outro; persuadido de que o dinheiro é um bom servo e muito mau senhor, e ainda que se trate com parcimônia, ordinariamente é generoso nas ocasiões e sabe gastá-lo quando é preciso. Sua mesa é simples e frugal e os banquetes e jantares que dá são regulados sempre pela sua posse e pelas circunstâncias e qualidade de hóspedes e convidados, e nunca põe a sua glória em arruinar-se com eles.
O sábio é avarento de tempo, de que conhece todo o peso; não dá nem um só instante a coisas inúteis e frívolas; sempre está ocupado porque o maior incômodo para ele é não ter que fazer e reputa por um homem digno de compaixão o que não se aplica a alguma coisa sólida. A tristeza foge dele, porque, enchendo toda a sua vida de uma contínua série de ocupações virtuosas, forma delas uma cadeia de verdadeiros prazeres. Considera o trabalho como amigo dos homens, como o seu consolador, como uma coisa que lhe é sumamente precisa, e assim o ama e o abraça.


Feijó - padre Diogo Antônio Feijó - (1784-1843) foi uma das mais importantes figuras da vida política brasileira. Sua vida acidentada, de sacerdote e de homem público, o levou a Lisboa, como membro da assembléia Nacional, onde sua posições rebeldes o conduziram ao exílio na Inglaterra. Deputado, senador e regente do Império, exerceu importante influência na formação de nosso pensamento jurídico e político e nas instituições de direito público da monarquia. Sua obra filosófica reflete o moralismo da época e foi muito apreciada em seu tempo. O texto que hoje publicamos é transcrito do "Almanaque Literário de São Paulo", de 1880, e vale não apenas como uma curiosidade, mas como uma mostra da formação do pensamento ético no Brasil.


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