FÉDON E A PALAVRA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sábado, 18 de março de
1978.
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Dizem
alguns que o silêncio é de ouro. Um homem sábio, porém, não o
dirá. Pois de ouro é a palavra. De ouro e de fogo. Porque uma
vez dita, ela é uma idéia forjada e duradoura, assim como as jóias,
de metal, cuja forma resiste aos tempos. E de fogo, porque ela
está sempre acesa, para iluminar ou para queimar. E tanto queima
para destruir e reduzir a cinzas as coisas perecíveis em que toca,
como para curar alguma corrupção da matéria.
A palavra é, assim, um fogo, com todas as virtudes do fogo, inclusive
a virtude curativa do cautério. Creio que esse provérbio que diz
o silêncio é de ouro foi inventado pelos governos despóticos.
Pois a perversidade dos tiranos e a truculência dos déspotas sempre
foram os maiores inimigos da palavra, e isto porque nenhuma prepotência
consegue reduzir à escravidão o homem que se serve de sua palavra.
Ai da cidade em que os homens desertam o uso da palavra, acuados
pelo medo, silenciados pelo egoísmo das próprias conveniências
ou emasculados pela indiferença! Na cidade em que os homens se
decidem a servir-se livremente da palavra, não podem medrar os
déspotas. E se houverem surgido, serão derrubados e reduzidos
a cinza pelo fogo da palavra dos cidadãos livres. Já que a palavra
é a arma mais poderosa de que dispõe o homem para defender-se
contra a injustiça e a oposição, a mais terrível maldade que pode
cometer um tirano contra seu povo é proibir-lhe o uso da palavra
na ágora da cidade (ágora - praça e mercado - N.T.).
Mas se os cidadãos souberem avaliar o peso e a força da palavra,
não há tirano que dela os consiga privar. Pois se um cidadão quiser,
sempre poderá levantar a voz no meio do povo e clamar contra o
tirano, se os soldados e fiscais do tirano o silenciarem matando-o,
os outros cidadãos continuarão o clamor pelo que morreu.
O tirano atilado sabe que, numa cidade amante da liberdade, se
matarem um cidadão pelo uso que ele fez da palavra, terá de matar
a cidade inteira, pois a cidade inteira repetirá, dia e noite
como um eco, a palavra do que morreu por utilizar-se do poder
de falar. E o tirano atilado sabe que não pode matar todo o povo
de uma cidade inteira, pois então ele também deixara de existir
como tirano, uma vez que não terá sobre quem reinar. E como só
morto o cidadão pode ser impedido de falar, parece óbvio que só
existe a tirania do despotismo naquela cidade em que o povo desertou
do direito de usar a palavra. Onde houver alguém capaz de falar
contra a opressão e a prepotência, o déspota será despojado de
seu poder. E quando digo que só a morte pode impedir o homem de
servir-se da palavra, é porque na verdade assim é. O homem arrastado
ao cárcere poderá ir clamando pelo caminho seu protesto, contra
a injustiça, pois quando chegar à porta do calabouço, seu protesto
já será um coro. Ou então, quando chegar diante do juiz, sua palavra
de fogo terá queimado os ouvidos do magistrado. Se cortarem a
língua de um homem, como fizeram a Karibides em Mégara, bastará
que ele fique no meio da ágora, com a boca aberta e falando com
os olhos e as mãos, para que os demais cidadãos traduzam em sons
a palavra que está dizendo e julguem os malfeitores.
Foi, de resto, o que aconteceu aos que torturaram o inocente Karibides.
Se os fiscais do tirano mandarem amarrar um pano na boca do cidadão
ou meter um freio de cavalo dentro dela, prendendo-lhe a língua,
poderá ele ainda ir para o meio da praça, como fizeram Magonides
de Magnésia e Philautos de Queronéia: o primeiro rasgou o pano
com os dentes, até poder falar, e o segundo, tratado torpemente
como um cavalo, começou a dar coices para o ar, e cada coice era
uma palavra, entendida pelo povo, denunciando a iniquidade do
déspota.
Todos devem usar a palavra permanentemente, para corrigir os erros
do mundo. O servo deve clamar mais alto, para que os outros servos
saibam que um senhor cruel está maltratando um de seus companheiros
e atraia contra o injusto a autoridade dos outros senhores ou
a união de todos os servos contra todos os maus senhores. Devem
clamar o filósofo e o poeta, para que os apresentadores de idéias
falsas e de versos descompostos não corrompam o povo inteiro com
a mentira e a desarmonia. Deve falar o soldado, para corrigir
os erros do capitão, quando o general não os corrige. E o capitão
para corrigir os erros do estratego, quando a cidade não os corrige.
O silêncio, no caso, não seria de ouro. De ouro é a palavra corajosa,
que impede a perdição da cidade, mergulhada nos próprios erros,
ou desbaratada à mão dos inimigos, por falta de uma palavra. Uma
palavra de ouro, que dure tanto como o ouro, e uma palavra de
fogo, que alumie e queime tanto como o fogo.
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Fédon,
contemporâneo e companheiro de Platão, dá o nome a um
dos diálogos de Sócrates. Sabe-se que foi prisioneiro quando sua
cidade foi vencida, e se viu reduzido a viver miseravelmente, preso
num quarto estreito e escuro, até que Sócrates convenceu Alcibíades
(ou Criton), a libertá-lo. Passou, desde então, a se dedicar inteiramente
a filosofia. Segundo alguns, teria sido escravo. Escreveu vários
diálogos, que se perderam. Alguns deles são também atribuídos a
Esquines ou a Polienes. O texto que hoje publicamos é tomado do
diálogo "Eretiriakos", um dos apócrifos do livro de Gerhard Walterius
sobre os apócrifos da Grécia. Sua linha de panegírico à palavra,
como expressão da idéia, traz o sabor do pensamento socrático.
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