ERASMO E A LOUCURA

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 27 de novembro de 1977

A sabedoria só pode inspirar temor, o que faz com que a condição de verdadeiro filósofo chegue a causar piedade aos homens de bom senso. Com o cérebro repleto de belíssimas e sólidas especulações, o sábio sente o estômago doer de fome e nem sequer sabe onde encontrar o necessário. É abandonado, odiado, evitado por todos, enquanto os tolos - verificando que o precioso metal que os anima constitui o móvel maior da sociedade civilizada - são escolhidos para os cargos públicos e, em tudo, favorecidos pela fortuna.
A sabedoria e, por conseguinte, o olho crítico são as coisas mais detestadas nos paços, cortes, palácios. Um sábio não saltitaria feliz quando acolhido por um potentado, nem bailaria eufórico quando convidado para empresa corrupta. Quereis enriquecer-vos no comércio? Renunciai à sabedoria. Ambicionais as dignidades? Um búfalo poderia consegui-las mais facilmente que um filósofo. Amais a volúpia do poder? As mulheres que a têm como principal escopo procuram os tolos e fogem dos sábios como escorpiões.
Quem deseja gozar os prazeres da vida sem perceber o que é vida deve cortar qualquer relação com os sábios e preferir tratar com pessoas insensíveis. Em suma, para resumir tudo numa só idéia: voltai-vos para todos os lados e vereis que os príncipes, centuriões, magistrados, cortesões e invejosos agem em função do ouro sonante. E como o filósofo, fora do estritamente necessário, considera como esterco este metal, não é de admirar que todos desprezem sua intimidade.
E aqui entro eu, a loucura. Não existe um ditado que se ensina até aos meninos dizendo "procura-se muita sabedoria para se poder passar por louco"? Horácio, que a si mesmo chamava de lúcido, aconselhava a temperar a loucura com a sabedoria. Qual o argumento da dívida na "Iliada"? Não serão talvez furor e loucura dos reis e dos povos? Cícero nunca disse coisa tão sensata quando sentenciou: "Todas as coisas estão cheias de loucura". No Eclesíastes está escrito que "o número de loucos é infinito". Jeremias vai mais longe: "Todos os homens tornaram-se loucos à força da sabedoria". Salomão, monarca iluminado, chegou à perfeição dizendo: "Eu sou o mais louco dos homens". S. Paulo, o apóstolo das gentes, disse aos coríntios: "Como louco, afirmo que sou o maior de todos".
Platão definiu a filosofia como sendo "a meditação da morte", porque tanto a filosofia como a morte destacam nosso espírito das coisas visíveis e corporais. Creio provir igualmente deste conceito a faculdade que têm os moribundos de dizer coisas prodigiosas, como que inspirados. A paixão também produz esta alienação dos sentidos - que não parece ser o mesmo gênero de loucura mas desta aproxima de tal forma que se lhe dá o mesmo nome.
A principal ocupação dos mundanos é acumular riquezas e poderes, contentando sempre e, em primeiro lugar, o próprio corpo, pouco ou nada importando-se com a alma, cuja existência, por ser impalpável, sempre põem em dúvida.
Um amante apaixonado não vive mais em si mesmo, mas na pessoa que se apoderou do seu coração e quanto mais sai de si para fundir-se no objeto do seu amor, tanto mais sente redobrar sua paixão. Não teremos igualmente razão de qualificar com o nome de furor o próprio estado da alma devota que arde de desejo para alcançar a perfeição espiritual e que não procura senão sair do seu corpo pelo desprezo dos sentidos?
Todos estes só sabem de uma coisa: acham-se felicíssimos no seu delírio. Eis porque tudo sacrificariam de bom grado para serem perpetuamente loucos.
Esperais, agora, um epílogo para tudo o que vos disse até agora? Sois tolos, verdadeiramente, se imaginais que eu tenha podido reter na memória esta mistura de palavras que vos impingi. Ofereço-vos em troca duas sentenças: 1) Jamais desejaria beber com um homem que se lembrasse de tudo. 2) Odeio o ouvinte de memória fiel demais. Sendo assim, sede sãos, vivei, bebei, ó celebérrimos iniciados nos mistérios da loucura.


Desiderius Erasmo ou Erasmo de Rotterdam (1466-1536), o grande humanista e acadêmico da Renascença, nasceu na Holanda, filho ilegítimo de um padre. Chegou a ser ordenado como padre mas abandonou a vida monástica. Estudou em Paris e morou em Londres, tornando-se grande amigo de Thomas Morus. Tentou combinar o espírito humanista de sua época com o pensamento cristão. Seus primeiros escritos, de caráter teológico, tentaram reviver o espírito do Cristianismo primitivo. Na Inglaterra (1509), escreveu "Moride Encomium" ("O Elogio da Loucura"), sua obra mais famosa. Sua posição critica e sarcástica contra as práticas religiosas da época levou-o inclusive a contraditar Lutero com a obra "De Libero Arbitrio" (1524), em que tenta provar que o homem deve ter autonomia sobre seus desígnios. Lutero respondeu com "De Servo Arbitrio" (1525). Erasmo tentou evitar o cisma da Igreja, criticando tanto os reformistas radicais como os extremados conservadores. A Inquisição espanhola colocou sua obra no Index. O texto abaixo foi extraído do "Elogio da Loucura", utilizando-se combinação de duas versões em língua portuguesa ( Ed. Ouro e Estúdios Cor. Lisboa).


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