ELÍADE E O TEMPO DE FESTA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 1978
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tempo da origem de uma realidade, quer dizer, o tempo fundado
pela primeira aparição desta realidade, tem um valor
e uma função exemplares. E por essa razão
que o homem se esforça por reatualizá-lo periodicamente
por meio de rituais apropriados. Mas a "primeira manifestação"
de uma realidade equivale à sua criação pelos
seres divinos ou semidivinos: reencontrar o tempo da origem implica,
por consequência, na repetição ritual do ato
criador dos deuses. A reatualização periódica
dos atos criadores efetuados pelos seres divinos in illo tempore
constitui o calendário sagrado, o conjunto das festas.
Uma festa desenrola-se sempre no tempo original. É justamente
a reintegração deste tempo original e sagrado que
diferencia o comportamento humano durante a festa, do de antes
ou de depois. Porque, em muitos casos efetuam-se durante a festa
os mesmo atos dos intervalos não-festivos. Mas o homem
religioso crê que vive então num outro tempo. Que
conseguiu reencontrar o illud tempus mítico.
Isto é o mesmo que dizer que, periodicamente, o homem religioso
se torna contemporâneo dos deuses, na medida em que reatualiza
o tempo primordial no qual se realizaram as obras divinas. Não
é a morfologia da festa que nos interessa. É a estrutura
do tempo sagrado atualizado nas festas. Ora, a respeito do tempo
sagrado pode dizer-se que ele é sempre o mesmo, que é
uma "sucessão de eternidades". Porque, seja qual
for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de
um acontecimento sagrado, que teve lugar ab origine, e
que é, ritualmente, tornado presente. Os participantes
das festa tornaram-se contemporâneos do acontecimento mítico.
Dito de outra forma: "saem" de seu tempo histórico,
isto é, do tempo constituído pela soma de eventos
profanos, pessoais e intrapessoais, e reúnem-se ao tempo
primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à
eternidade. O homem religioso desemboca periodicamente no tempo
mítico e sagrado. Reencontra o tempo da origem, aquele
que não se escoa, porque não participa da duração
temporal profana, porque é constituído por um eterno
presente, indefinidamente recuperável.
O homem religioso sente a necessidade de mergulhar periodicamente
neste tempo sagrado e indestrutível. Para ele, é
o tempo sagrado que torna possível o outro tempo, ordinário,
a duração profana em que se desenrola toda a humana
existência. É o eterno presente do acontecimento
mítico que torna possível a duração
profana dos eventos históricos. Para dar um só exemplo:
- foi a hierogamia divina, que teve lugar in illo tempore,
que tornou possível a união sexual humana. A união
entre o deus e a deusa passa-se num instante atemporal, num eterno
presente: as uniões sexuais entre os humanos - quando não
são rituais - desenrolam-se na duração, no
tempo profano. O tempo sagrado, mítico, funda igualmente
o tempo existencial, histórico, porque é o seu modelo
exemplar. Em suma, graças aos seres divinos ou semidivinos
é que tudo veio à existência. A origem das
realidades e da própria vida é religiosa.
Na festa reencontra-se a plena dimensão sagrada da vida,
experimenta-se a santidade da existência humana como criação
divina. No resto do tempo, há sempre o risco de esquecer
o que é fundamental: - que a existência não
é dada por aquilo que os modernos chamam de natureza, mas
sim que é uma criação dos Outros - os deuses
- ou os seres semidivinos. Mas nas festas reencontra-se a dimensão
sagrada da existência, tornando-se a aprender como é
que os deuses ou os antepassados míticos criaram o homem
e lhe ensinaram os diversos comportamentos sociais e os trabalhos
práticos.
De um certo ponto de vista, esta "saída" periódica
do tempo histórico - e sobretudo as consequências
que ela tem para a existência global do homem religioso
- pode aparecer uma recusa da liberdade criadora. Trata-se, em
suma, do eterno retorno in illo tempore, num passado que
é mítico, que nada tem de histórico. Pode
concluir-se daqui que esta eterna repetição dos
gestos exemplares revelados pelos deuses ab origine, se
opõe a todo o processo humano e paralisa toda a espontaneidade
criadora. Certamente, esta conclusão é, em parte,
justificada. Em parte, somente.
Mas de momento, deixaremos de lado este aspecto do problema. O
que nos importa, em primeiro lugar, é compreender a significação
religiosa desta repetição dos gestos divinos. Ora,
parece evidente que, se o homem religioso sente a necessidade
de reproduzir indefinidamente os mesmos gestos exemplares, é
porque deseja e se esforça por viver muito perto dos seus
deuses.
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Micea Elíade, (1907 - 1986) filósofo contemporâneo,
é considerado uma das mais altas presenças do pensamento
de nossos dias no estudo das religiões e da origem do divino
na vida dos homens. Romeno de nascimento, passou a viver em diversos
países depois da guerra, notamente nos Estados Unidos, onde
todos os anos faz uma temporada universitária. Um de seus
livros, o romance "Bosque Sagrado" passado na Europa nos
dias da guerra, entre Bucareste, Londres e Lisboa, fixa um dos momentos
mais pungentes do exílio espiritual de nosso século.
O texto que hoje publicamos é de seu famoso livro sobre a
essência das religiões, "O Sagrado e o Profano".
Tradução de Gerardo Mello Mourão do original
alemão "Das Heilige und das Profane".
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