DIÓGENES E O CONSUMO

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 27 de abril de 1978

Não tendo um amigo providenciado o quarto que solicitara para morar, passou a viver num tonel. No verão, deitava sobre as areias ardentes. No inverno abraçava-se às estátuas cobertas de neve, para habituar-se à dureza da vida. Era cáustico com as pessoas. Chamava a escola de Euclides de "Xolén", que quer dizer "bílis". A escola de Platão chamava de "consumação". Chamava às bacanais de "grandes maravilhas dos néscios". Aos governantes, de "ministros da patuléia".
Quando via os magistrados, os médicos e os filósofos aplicados no governo da vida, dizia que o homem é o mais recomendável dos animais. Mas ao ver os intérpretes de sonhos, os adivinhos e quantos neles acreditavam, ou aos que se cegam pela glória mundana e as riquezas, julgava o homem o mais néscio dos seres.
Dizia que seu pensamento era que nesta vida ou nos valemos da razão ou duma corda de enforcar. Vendo a Platão que, numa recepção, comia azeitonas, disse: - "Por que, ó sábio, navegas para a Sicília em busca de mesas ricas, e agora que as tens diante de ti, não as desfrutas?" Platão respondeu-lhe: - "Mas lá, também, o que eu comia eram as azeitonas, Diógenes". - "Então, para que navegar tão longe, se as azeitonas estão aqui mesmo na Ática?" - contestou Diógenes.
Pisando certa vez nos tapetes de Platão, em presença de Dionísio, disse: "Estou pisando na diligente vaidade de Platão", que lhe respondeu: - "Como te mostras o luxuoso." - "Estou pisando no teu luxo" - emendou Diógenes". - "Mas pisas o meu com o teu" - tornou Platão. Outra vez mandou pedir a Platão vinho e figos secos. Platão mandou-lhe um cântaro cheio de vinho, e Diógenes respondeu-lhe: -"Se te perguntarem quanto são dois e dois, responderás que são vinte. Tu nem dás conforme te pedem, nem respondes como te perguntam". Queria assim acusá-lo de verboso.
Perguntaram-lhe onde havia visto homens bons na Grécia, e respondeu: - "Homens em nenhuma parte; mas jovens sim, na Lacedemônia". Uma vez estava fazendo um discurso muito sábio e proveitoso, e como ninguém o ouvisse, começou a cantar. A multidão o cercou, então. Parou de cantar, e exclamou: - "Todos gostam de ouvir charlatães e tapeadores, mas são lerdos e negligentes para ouvir os que são honestos e bons". Escandalizava-se com os gramáticos que esmiuçam os trabalhos de Ulisses e ignoram os seus próprios. Também com os músicos, que, afinando as cordas de sua lira, desafinam a de seus costumes. E com os matemáticos, que ficavam olhando o sol e a lua e não viam o que tinham debaixo dos pés. Com os avarentos, porque falam mal do dinheiro, quando na verdade o adoram. Repreendia os que louvam os jutos porque desprezam o dinheiro, mas imitam os endinheirados.
Achava cômico que oferecessem sacrifícios aos deuses pela saúde, mas nesses mesmos sacrifícios se banqueteavam prejudicando a saúde. Admirava-se dos escravos que, vendo a voracidade de seus amos, não os furtavam. Louvava muito os que podem casar-se e não se casam; os que precisam navegar e não navegam; os que podem abusar dos mancebos e de abstêm; os que têm oportunidade de conviver com os poderosos e não o fazem.
Refere Menipo que, tendo sido feito escravo, perguntaram-lhe o que sabia fazer. Respondeu: - "Sei mandar nos homens". E ao leiloeiro que apregoava o escravo, disse: - "Anuncia se alguém quer comprar um patrão". Mandaram-no ficar sentado, e respondeu: - "Ora bolas, os peixes se vendem em qualquer posição". Dizia-se maravilhado porque quando compravam uma panela ou prato, examinavam minuciosamente, enquanto, para comprar um homem, bastava-lhe a aparência. E a Xeníades, que o comprou, dizia: - "Tens de obedecer-me, por mais que eu seja teu escravo; pois o médico e o piloto também são escravos e todos lhes obedecemos".
Conta Eubulo, em "O Leilão de Diógenes", que foi preceptor dos filhos de Xeníades, e depois de ter-lhes ensinado as disciplinas, os adestrou na arte de montar a cavalo, disparar flechas, atirar com a funda e lançar dardos. Mas não permitia que esses exercícios os tornassem atletas, mas que os aprendessem apenas para ter saúde e boas cores. Os rapazes sabiam de memória várias sentenças dos poetas e outros escritores, inclusive do próprio Diógenes, que lhes fizera um compêndio. Ensinava-os também a servir em casa, a comer pouco e a beber água. Fazia-os raspar a cabeça e os levava pelas ruas, descalços, em silêncio e olhando só para ele. Os discípulos o adoravam e o recomendavam a seus pais. Diz-se que envelheceu e morreu na casa de Xeníades, que lhe perguntou como queria ser enterrado. "De boca para baixo" - respondeu - "porque as coisas vão virar todas um dia de baixo para cima". Disse isso, porque já os macedônicos começavam a ameaçar os gregos com seu poder. Um dia o levaram a uma casa luxuosa, e o dono o advertiu para não cuspir no chão. Cuspiu-lhe, então na cara, explicando: - "É o lugar mais sujo da casa". Usava, frequentemente, um silogismo que dizia: - "Todas as coisas são os deuses; os sábios são amigos dos deuses, e as coisas dos amigos são comuns. Logo, todas as coisas são dos sábios". E ao ver em Megara as ovelhas cobertas de peles, e as crianças nuas, observou: - "Nesta sociedade, é melhor ser caneiro do que ser gente".


Diógenes, o Cínico, terá nascido mais ou menos em 414 a.C. Fundador da escola cínica, a sábia filosofia de viver que reúne as virtudes dos estóicos e dos epicuristas, nele se inspiram os modernos pensadores que pregam a luta contra a civilização do consumo, inclusive Marcuse. Apesar da grande importância de sua obra, dela nada resta, a não ser fragmentos reproduzidos em livros de alguns escritores da antiguidade. Diógenes Laércio, de cujo texto são os fragmentos da vida do filósofo que hoje publicamos, explica que houve cinco sábios chamados Diógenes. O filósofo cínico era filho de um banqueiro, tendo sido acusados, ele ou o pai - ou ambos - de falsificação de dinheiro. Foi escravo e preceptor de jovens. Diógenes Laércio coleciona umas quinhentas histórias que definem seu pensamento. Algumas delas se tornaram populares, como a da moradia no tonel e a da lâmpada em busca de um homem verdadeiro.


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