DILTHEY E O CONHECIMENTO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sábado, 29 de abril de 1978
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A
filosofia analisa, mas não produz. É a concepção
de Schiller. A filosofia, portanto, não cria nada. Decompondo
e analisando, não pode mais do que mostrar e resumir a
uns poucos aquilo que existe e aquilo que encontra entre os fatos
da consciência.
Os pontos de referência por meio dos quais a consciência
imediata constrói -a identidade, o mundo, a divindade-
encontram-se todos na filosofia. Os conjuntos de representações
assim construídos têm já uma ordem, quando
esta ordem aparece. A filosofia não constrói, mas
encontra de antemão a articulação produzida
na nossa própria totalidade.
Da exposição da origem da religião e da arte,
especialmente da Poesia, resulta a conexão em que estão
entre si esses diversos campos da vida espiritual. Mas a conexão
significa ao mesmo tempo uma relação deste grandes
efeitos, como partes, com um todo, que no caso atual é
o conhecimento.
Isto pode mostrar-se também historicamente. A cultura intelectual
de uma época qualquer se forma mediante uma cooperação
das diversas manifestações da vida espiritual. Essas
manifestações se harmonizam, de certo modo, numa
totalidade. Não importa a diversidade das atitudes da inteligência
diante de seu objeto, numa época dada: o "Nathan"
de Lessing não é completamente independente dos
escritos religiosos de um Spalding ou dos escritos filosóficos
de um Mendelsson: -só reunindo-os é que se verá
de que maneira aquele tempo possui a Deus, ao mundo e a si mesmo.
Isto se torna ainda mais claro se se considera o problema isoladamente.
Formou-se em nossa literatura, com Lessing e outros, um ideal
de vida na Poesia, que passou logo a ser explicitado cientificamente.
Nisto, portanto, tem que residir o fundamento de que a Filosofia,
e em geral a ciência como conhecimento, não é
capaz de expressar coisas importantes que como religião
e como poesia se podem expressar. Se fosse possível à
ciência explicar a conexão dos fatos, isto é,
estabelecer um fundamento unitário, então não
haveria lugar para nenhuma outra atividade do espírito
na esfera da representação.
Hegel formulou um ponto de vista semelhante. Na verdade, o que
nos é proporcionado ao conhecimento é irracional,
e os elementos com que jogamos são racionalmente irredutíveis
a uma conexão. O próprio Kant não vê
limites para uma faculdade humana de conhecer.
A arte, especialmente a poesia, cria o típico, que ocupa
um lugar importante em nossas representações. O
típico, aparece junto ao regular. Regular é aquilo
que é expressão comum de um comportamento geral
na natureza. Típico é o que expõe, num caso
singular, algo universal. O típico, se lhe quisermos dar
uma expressão conceitual abstrata, pressupõe uma
conexão teológica. Na sua própria esfera
é aquilo que dá significação e harmonia
a nosso sentimento da vida...
A pura luz da verdade, só a podemos ver num raio refratário,
de modos diversos. É uma antiga e funesta combinação.
O filosofo busca um saber universalmente válido e, através
dele, uma decisão acerca dos enigmas da vida. É
preciso resolvê-la.
A filosofia mostra uma dupla face. A inextinguível tendência
metafísica busca a solução do enigma do mundo
e da vida, e nisto os filósofos se assemelham aos religiosos
e aos poetas. O filósofo, porém, se distingue deles
ao querer resolver esse mistério por meio de um saber de
validez universal. Hoje, é preciso dissolver essa antiga
união.
O começo e a missão suprema da filosofia é
isto: -elevar o pensamento objetivo das ciências empíricas,
que faz derivar dos fenômenos uma ordem conforme a leis
determinadas, à consciência de si mesmo, em si mesmo
justificada. Há, nos fenômenos, uma realidade acessível:
a ordem conforme as leis. Esta é a única verdade
que nos é dada de um modo universalmente válido,
inclusive na linguagem de signos de nossos sentidos e de nosso
entendimento. Este é o objetivo da ciência filosófica
fundamental. Esta fundamentação de nosso saber é
a grande função da ciência filosófica
capital, em cuja constituição trabalham todos os
verdadeiros filósofos, desde Sócrates.
Outra missão da Filosofia é a organização
das ciências experimentais. O espírito filosófico
esta presente onde quer que se simplifiquem os fundamentos de
uma ciência, ou se estabeleça sua relação
com a idéia do saber, ou se comprovem os métodos
referentes a seu valor de conhecimento. Parece-me, porém,
que está terminando a época em que ainda havia uma
Filosofia separada da Arte e da Religião, do Direito e
do Estado.
Esta é a função suprema da Filosofia: a fundamentação,
a justificação, a consciência crítica,
a energia organizadora, que abarca todo pensamento objetivo, todas
as determinações de valor e fixações
de finalidade. O poderoso complexo que assim se origina está
destinado a guiar o gênero humano. As ciências experimentais
da natureza transformaram o mundo exterior, e agora começou
a idade em que as ciências da sociedade adquirem crescentes
influxo sobre essa mesma sociedade.
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Wilhelm Dilthey - (1833-1911) foi, segundo Julián
Marías, o filósofo do século passado que mais
contribuiu para o descobrimento da idéia da vida. Alemão,
professor da Universidade de Berlim, era nutrido por imensa cultura,
que ia dos gregos aos contemporâneos, incluindo os filósofos
árabes, cristãos e judeus da Idade Média. Influenciado
pelo idealismo alemão, notadamente por Schleiermacher, forma,
com Brentano, a chave da filosofia do século XIX e a gênese
da atual. Sua obra mais importante é "Einleitung in
die Geisteswissenschaften" - "Introdução
às Ciências do Espírito". Seu pensamento
é fundamental para o nexo e a interpretação
dos fatos históricos. O texto que hoje publicamos é
da "Teoria das Concepções do Mundo".
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