DEWEY E A INTELIGÊNCIA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 02 de dezembro de 1977
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Democracia
é algo bem mais amplo do que o mero formato político,
ou um método de conduzir governos, fazer leis, administrar
a coisa pública ou organizar eleições. Democracia
compreende estes aspectos, naturalmente. Mas é muito mais
abrangente e profunda do que isto.
O aspecto governamental e político da democracia compreende
certos meios -os melhores até hoje encontrados- para alcançar
certos fins no terreno das relações humanas e do
aperfeiçoamento das pessoas. Já o repetimos tantas
vezes que provavelmente deixamos de perceber o exato significado
desta afirmação. Democracia não se resume
à aplicação destes meios -é um modo
de vida.
A tônica da democracia como modo de vida pode ser representada
pela necessidade da participação de todos os homens
maduros na formação dos valores que vão reger
a vida social. E isto é necessário não apenas
para o bem estar e ordem sociais mas para o próprio desenvolvimento
pessoal dos cidadãos.
Sufrágio universal, calendários eleitorais, responsabilidade
dos eleitos perante os eleitores e os demais ingredientes da vida
política democrática são os meios hábeis
encontrados para expressar a democracia como uma forma de viver
continuamente aperfeiçoada.
Constitui-se numa espécie de idolatria venerar meios e
transformá-los em fins. O formato político democrático
compreende os meios mais eficientes até agora encontrados
para levar adiante a filosofia democrática. Votar não
é um fim em si. O conceito democrático reside na
idéia de que nenhum homem e nenhum agrupamento limitado
de homens são suficientemente aptos a governar os outros
sem o devido consentimento. Democracia não se resume em
instituições ou mesmo legislação.
A existência dos três poderes não basta. Necessário
é viger o conceito que garante a todos aqueles afetados
por determinada instituição social o direito de
nela influir.
Os arranjos sociais que envolvem subordinação fixa
são mantidos por coerção. Existem arbítrios
que não são físicos. Todos nós conhecemos
uma forma ou outra de despotismo benevolente. A exclusão
de alguns do processo participatório é uma forma
de violência. Discriminar alguns no ato de optar retira
destes a possibilidade de refletir, que precede e é a razão
do ato de votar.
O fundamento da democracia é a fé na capacidade
da natureza humana, fé na inteligência humana e no
poder de associação que comanda toda atividade vital.
Todas as situações autoritárias e autocráticas
apoiam-se na crença de que a inteligência é
um dom confinado a uns poucos que, por circunstâncias especiais,
possuem os dotes de discernir o que é bom para os demais.
Ainda que reconheçamos que aquilo que se chama inteligência
não se encontra em todos os seres humanos num mesmo estágio,
não podemos, por esta razão, impedir que os menos
afortunados o sejam para sempre, nem admitir que os bem-aventurados
eternamente desfrutem destes dons. Estimulada, a inteligência
se desenvolve. Acomodada ao poder ou à sua supressão,
a inteligência se atrofia.
Temos nos concentrado muito em nossas pregações
democráticas em doutrinar sobre a liberdade de ação.
Mas esquecemos totalmente da liberdade da inteligência.
É a liberdade de inteligência que comanda a liberdade
de ação. Suprimida aquela, esta torna-se passiva
ou, muitas vezes, inconsequente.
A idéia democrática da liberdade não se reduz
ao clichê de permitir a cada um fazer o que desejar, desde
que não interfira na liberdade de outrem. A liberdade democrática,
essencialmente, consiste na liberdade de exercitar a inteligência.
Quando educamos uma criança estamos ensinando-a a escolher.
O momento da escolha é o momento crucial da humanidade
de cada ser -é quando este exerce sua faculdade fundamental
de cogitar e cumpre sua vocação de existir.
Existem eleições sem democracia, mas não
existe democracia sem eleições. O aperfeiçoamento
constante da inteligência humana só encontrou uma
forma clara e inequívoca para institucionalizar-se - o
sistema democrático. Através de escolhas sucessivas
e constantes, através da distribuição de
responsabilidades, através do estabelecimento de um clima
de confiança nos semelhantes participamos de uma forma
democrática de convivência. Mas igualmente, através
deste magnifico instrumental, somos agentes do aperfeiçoamento
da condição humana.
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John Dewey (1852-1952), pensador, educador e crítico
social americano, é considerado o filósofo da moderna
democracia. Ao longo da sua extensa e profícua existência
foi um incansável defensor do sistema democrático
não apenas como forma política de governo mas como
modelo de vida. Em 1937, com 78 anos, Dewey presidiu uma comissão
de inquérito que foi ao México para averiguar as acusações
imputadas a Leon Trotsky nos famosos julgamentos de Moscou. O veredito
da comissão presidida por Dewey foi: "Inocente".
Em 1941, Dewey liderou uma campanha pela liberdade acadêmica
quando o City College de Nova York negou autorização
a Bertrand Russel -arquiinimigo intelectual de Dewey - para lecionar.
Como educador, Dewey tornou-se célebre ao advogar a idéia
de que a escola é o lugar onde se processam as reformas sociais.
O presente texto foi extraído do artigo "Democracia
e Educação" (1939), que integra o livro "Inteligência
no Mundo Moderno" (Radan House).
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