DESCARTES E A RAZÃO

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 12 de novembro de 1977.


Reparei que os povos que, tendo sido outrora semi-selvagens, civilizaram-se pouco a pouco fazendo leis senão à medida que a pressão dos crimes e querelas a isso os obrigou, não poderiam ser tão bem policiados como aqueles que, a partir do momento em que se organizaram, observaram as constituições de prudente legislador.
Julgo que se Esparta foi outrora florescente, não o deveu à bondade de cada uma das leis em particular —algumas muito extravagantes— mas de ao fato de, tendo sido inventadas apenas por um só, tendem todas para um mesmo fim. Lembrando-me disto persuadi-me de que, na verdade, não fazia sentido que um simples particular intentasse reformar um Estado, mudando-lhe tudo desde os alicerces, derrubando-o para o levantar de novo.
Não aprovo estes temperamentos e iniciativas conflituosas e inquietas que, não sendo convocadas nem pelo nascimento nem pela fortuna à administração dos negócios públicos, jamais prescindem de neles introduzir qualquer reforma.
E se este escrito contiver algo que possa ser suspeito de semelhante loucura, desgostar-me-ia muito. Nunca meu intento foi mais longe que procurar reformar meus próprios pensamentos. A simples resolução de nos libertar-mos de todas as opiniões que antes aceitávamos como verdadeiras não é exemplo bastante. O mundo é quase composto de duas espécies de espíritos: aqueles que, julgando-se mais hábeis do que são, não resistem a precipitar seus juízos, nem têm paciência bastante para conduzir por ordem seus pensamentos, e os outros que, por razão ou modéstia, achando que são menos capazes, contentam-se em seguir as opiniões dos outros.
De minha parte acho que nada se pode criar ou imaginar de tão estranho que já não tenha sido criado ou pensado anteriormente por artistas ou filósofos. Ao viajar pelo mundo percebi que os que têm sentimentos contrários aos nossos nem por isso devem ser chamados de bárbaros. Muitos destes povos usam, tanto ou mais do que nós, da razão.
Como um homem que anda só e na treva, resolvi ir lentamente, o que me levou a imaginar um método diferente dos até então usados (lógica, análise e álgebra). Como a diversidade das leis serve muitas vezes de desculpa aos vícios, de sorte que um Estado é muito melhor administrado quando, tendo embora muito poucas, se aplicam rigorosamente, julguei conveniente tomar emprestados da lógica apenas quatro postulados: o primeiro consistia em nunca aceitar como verdadeira qualquer coisa sem a conhecer evidentemente como tal; o segundo — dividir cada uma das dificuldades no maior número de parcelas; terceiro — conduzir meu pensamento ordenadamente, começando pelos mais simples para chegar aos mais difíceis; quarto — fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão amplas que impeçam alguma omissão.
Isto me sugere que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento do homem se encadeiam da mesma maneira e que, contanto que nos abstenhamos de aceitar como verdadeiro algo que não o seja e que observemos sempre a ordem necessária para deduzir uma coisa da outra, nenhuma razão pode estar tão afastada a que ela não se chegue por fim, nem tão oculta que não se descubra.
Estabeleci então três máximas: a primeira — conduzir-me segundo as opiniões mais afastadas do exagero e dos extremos. Em especial, incluía entre os extremos todas as diminuições por menores que sejam da liberdade; a segunda — consistia em ser o mais firme e resoluto nas minhas ações, imitando os viajantes que perdidos numa floresta caminham decididamente para um determinado rumo ao invés de vagar tontamente; a terceira — vencer a mim próprio antes de vencer a fortuna, modificando meus desejos e paixões antes de modificar o mundo. É nisto que reside o segredo dos antigos filósofos que souberam outrora subtrair-se ao império da fortuna. Ocupando-se constantemente em considerar os limites que eram prescritos pela natureza, persuadiram-se de que nada estava em seu poder além dos próprios pensamentos. E sendo senhores apenas dos seus pensamentos podiam considerar-se mais ricos e poderosos, livres e felizes que quaisquer outros que, não tendo esta filosofia, por muito que sejam favorecidos pela natureza e fortuna nunca chegam a este poder
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René Descartes (1596-1650), filósofo francês, estudou Medicina e Direito, mas, desiludido da cultura oficial, resolveu procurar a cultura em si mesmo. Foi voluntário de duas guerras religiosas até que na noite de 10 para 11 de novembro de 1619 teve três sonhos que alteraram sua vida e que devidamente interpretados levaram-no à Filosofia. Considerado o pai do racionalismo moderno, pretende estabelecer o primado do pensamento. Seu sobrenome acabou gerando o qualificativo "cartesiano". Escreveu, entre inúmeras outras, "As Paixões da Alma", onde pretendia explicar a "mecânica do espírito", obra que acabou por exercer profunda influência na Psicologia moderna. Seu trabalho mais famoso é o "Discurso do Método", do qual foi extraído o texto acima, sintetizado da segunda parte, utilizando-se tradução portuguesa de Newton Macedo (Liv. Sá Costa).

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