Talvez
só se possa colocar a questão "o que é
a filosofia" tarde, quando vem a velhice e a hora de falar
concretamente. É uma questão que se coloca quando
não se tem mais nada a perguntar, mas suas consequências
podem ser consideráveis. Antigamente, ela era colocada,
não se parava de colocá-la, mas era demasiado artificial,
demasiado abstrata, ela era exposta, era dominada mais que dominava.
Existem casos em que a velhice dá, não uma eterna
juventude, mas, ao contrário, uma soberana liberdade, uma
necessidade pura em que se goza de um momento de graça
entre a vida e a morte e onde todas as peças da máquina
se combinam para enviar ao futuro um traço que atravessa
as idades: Turner, Monet, Matisse. Turner velho adquiriu ou conquistou
o direito de levar a pintura por um caminho deserto e sem volta,
que não se distingue mais de uma última questão.
Assim também na filosofia, a "Crítica do Juízo",
de Kant, é uma obra de velhice, uma obra desembestada,
atrás e da qual não vão parar de correr seus
descendentes.
Nós não podemos aspirar a um tal status. Simplesmente
veio a hora de perguntar o que é a filosofia. Não
tínhamos cessado de fazê-lo anteriormente, e já
tínhamos chegado à resposta, que não variou:
a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar
conceitos. Mas não era suficiente que a resposta recolhesse
a pergunta, era preciso que determinasse uma hora, uma ocasião,
circunstâncias, paisagens e personagens, condições
e incógnitas da questão. Era preciso poder colocá-la
"entre amigos", como uma confidência ou uma confiança,
ou então ante o inimigo, como um desafio, e de uma só
vez alcançar essa hora, no lusco-fusco, em que se desconfia
até mesmo do amigo.
É que os conceitos precisam de personagens conceituais
que contribuam para a sua definição. "Amigo"
é um desses personagens, e diz-se mesmo que ele testemunha
a origem grega da "filo-sofia", as outras civilizações
tinham sábios, mas os gregos apresentam esses "amigos",
que não são apenas sábios mais modestos.
Os gregos teriam enterrado de vez o sábio, substituindo-o
pelos filósofos, os amigos da sabedoria, os que buscam
a sabedoria, mas não a possuem formalmente. Poucos pensadores
entretanto, se perguntaram o que significa "amigo",
mesmo e sobretudo entre os gregos. Amigo designaria uma certa
intimidade competente, uma espécie de gosto material ou
uma potencialidade, como a do marceneiro com a madeira: o bom
marceneiro tem a madeira em potencial, ele é o amigo da
madeira? A questão é importante já que o
amigo, tal como aparece na filosofia, não designa um personagem
extrínseco ao pensamento, um exemplo ou uma circunstância
empírica, mas uma presença intrínseca, uma
condição de possibilidade do próprio pensamento,
em suma, uma categoria viva, uma experiência transcendental,
um elemento constituinte do pensamento. E de fato, desde o nascimento
da filosofia, os gregos dobram o amigo, que não entra mais
em relação com um outro, mas com uma "entidade",
uma "objetividade", uma "essência".
É o que exprime bem a fórmula tão frequentemente
citada, que é preciso traduzir: sou o amigo de Pedro, de
Paulo, ou mesmo do filósofo Platão, mas mais ainda
amigo da "verdade", da "sabedoria" ou do "conceito".
O filósofo está por dentro dos conceitos, e da falta
deles, sabe quais são inviáveis, arbitrários
ou inconsistentes, não se sustentam um único instante,
quais ao contrário são bem feitos, resultado de
uma criação, mesmo inquietante ou perigosa (...).
O filósofo é o amigo do conceito, ele tem o conceito
em potencial. Isso quer dizer que a filosofia não é
uma simples arte de formar, inventar ou fabricar conceitos, pois
esses não são necessariamente formas, achados ou
produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina
que consiste em criar conceitos. O amigo seria o amigo de suas
próprias criações? Criar conceitos sempre
novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito
deve ser criado que ele remete ao filósofo, como àquele
que o tem em potencial, ou que guarda a sua potência e competência.
Não se pode objetar que a criação seja atribuída
antes ao sensível e às artes, já que a arte
dá existência a entidades espirituais e que os conceitos
filosóficos são também "sensibilia".
Na verdade, as ciências, as artes, as filosofias são
igualmente criadoras, embora caiba somente à filosofia
criar conceitos em sentido estrito. Os conceitos não nos
esperam já prontos, como corpos celestes. Não há
céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados,
ou melhor criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles
que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando
escreveu: "Os filósofos não devem se contentar
em aceitar os conceitos que lhes são dados, apenas para
limpá-los e lustrá-los, mas é preciso que
comecem fabricando-os, criando-os colocando-os e persuadindo os
homens a recorrer a eles. Até hoje, em suma, cada um confiava
em seus conceitos, como num dote milagroso vindo de um mundo qualquer,
igualmente milagroso", mas é preciso substituir a
confiança pela desconfiança, e é dos conceitos
que o filósofo deve desconfiar mais, já que não
foi ele mesmo que os criou (Platão o sabia bem, embora
tenha ensinado o contrário...). De que valeira um filósofo
de quem se poderia dizer: ele não criou conceito? Vemos
ao mesmo o que a filosofia não é: ela não
é contemplação, nem reflexão, nem
comunicação, mesmo se às vezes acreditou
ser uma coisa, às vezes outra, em razão da capacidade
de toda disciplina de engendrar sua próprias ilusões
e se esconder por trás de uma névoa que emite especialmente.
Ela não é contemplação, pois as contemplações
são as próprias coisas vistas na criação
de seus próprios conceitos. Ela não é reflexão,
porque ninguém precisa da filosofia para refletir sobre
o que quer que seja: acreditamos estar dando muito à filosofia
ao fazer dela a arte de reflexão, mas estamos lhe tirando
tudo, pois os matemáticos nunca esperaram os filósofos
para refletir sobre a matemática, nem os artistas sobre
a pintura ou a música; dizer que eles se tornam então
filósofos é uma brincadeira de mau gosto, já
que a reflexão deles pertence à sua criação
respectiva. E a filosofia não encontra nenhum refúgio
último na comunicação, que só trabalha
com opiniões em potencial, para criar "consensus"
e não conceito.
Tradução: Bernardo de Carvalho