CONDORCET E O FUTURO

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 5 de maio de 1978

Se o homem pode predizer, com segurança quase total, os fenômenos cujas leis lhe são conhecidas; e se, quando não conhece os fenômenos, pode, contudo, amparado nas experiências do passado, prever, com grande probabilidade, os sucessos do futuro - por que haverá de olhar-se como uma empresa quimérica a ousadia de traçar, com alguma verossimilhança, o quadro dos destinos futuros da espécie humana, em função dos resultados da História? O único fundamento da crença nas ciências naturais é esta idéia de que as leis gerais, conhecidas ou ignoradas, que regulam os fenômenos do universo, são necessárias e constantes. E por que razão este princípio será menos válido no desenvolvimento das faculdades intelectuais e morais do homem, do que nas demais operações da natureza? Finalmente, uma vez que as opiniões formadas com referência à experiência do passado, sobre objeto da mesma ordem, são a única regra de conduta dos homens mais sábios - por que se impedirá ao filosofo que apoie suas conjecturas sobre esta mesma base, sempre que não lhes seja atribuída uma certeza superior à que pode nascer do número, da constância, da exatidão da observação? Nossas esperanças sobre o estado futuro da espécie humana podem reduzir-se a estes três pontos importantes: a destruição, a desigualdade entre as nações, os progressos da igualdade no seio de um mesmo povo, e, afinal, o aperfeiçoamento real do homem. Será que todas as nações devem aproximar-se um dia do estado de civilização a que chegaram os povos mais esclarecidos, os mais livres, os mais libertos de preconceitos, como os franceses e os anglo-americanos? Esta distância imensa, que separa esses povos do servilismo das nações submetidas a reis, da barbárie dos povos africanos, da ignorância dos selvagens - deverá ela desaparecer pouco a pouco? Existem acaso, no globo, países nos quais a natureza condenou os habitantes a jamais gozarem da liberdade, a nunca chegarem ao exercício de sua própria razão? Esta diferença de luzes, de meio ou de riquezas até aqui observadas entre todos os povos civilizados, e entre as diferentes classes de que cada um deles se compõe; esta desigualdade, aumentada pelos primeiros progressos da sociedade e, de certo modo, por eles produzida - dever-se-á à própria civilização, ou às imperfeições atuais do sistema social? Será que é necessário debilitar a civilização continuamente para chegar-se a dar lugar a esta igualdade de fato, último fim do processo social, que, diminuindo, inclusive, os efeitos da diferença natural das faculdades, não deixe subsistir mais que uma desigualdade útil aos interesses de todos, porque favorecerá os progressos da civilização, da instrução e da indústria, sem levar consigo nem dependência, nem humilhação, nem desprendimento? Numa palavra, será que os homens se aproximarão deste estado no qual terão todos as luzes necessárias para conduzir-se de acordo com sua própria razão nos assuntos comuns da vida, mantendo-a isenta de preconceitos, para bem conhecer os seus direitos e exercê-los segundo sua opinião e sua consciência, e onde todos poderão, por meio do desenvolvimento de suas faculdades, obter meios seguros de prover as suas necessidades e onde, enfim, a estupidez e a miséria não serão mais do que acidentes, e não o estado habitual de uma parte da sociedade? Em suma: deve a espécie humana melhorar, seja mediante novos descobrimentos nas ciências e nas artes e, por uma consequência necessária, nos meios de bem-estar particular e de prosperidade comum - ou, finalmente, por um aperfeiçoamento real de suas faculdades morais e físicas, que pode ser, igualmente, a consequência, ou dos instrumentos que aumentem a intensidade e dirijam o emprego destas faculdades, ou, inclusive, o da organização natural do homem? Respondendo a estas três perguntas, encontraremos, na experiência do passado, na observação dos progressos, que as ciências e que civilização fizeram até aqui, na análise da marcha do espírito humano e do desenvolvimento de suas faculdades, os maiores motivos para acreditar que a natureza não colocou nenhum limite a nossas esperanças. Se lançarmos um olhar sobre o estado atual do globo, veremos, em primeiro lugar que, na Europa, os princípios da constituição francesa são já os de todos os homens esclarecidos. E veremos que estão demasiadamente difundidos e elevadamente processados, para que os esforços dos tiranos possam impedi-los de penetrar até nas cabanas dos escravos. Estes princípios hão de despertar, a curto prazo, o que resta de consciência em todos os povos, e esta surda humilhação que o costume da humilhação e do terror não pode abafar na lama dos oprimidos.


Condorcet (1743-1794) é o último dos pensadores da "Illustration", o último "philosophe", o único que participou ativamente da Revolução, e foi uma de suas vítimas. Estudou com jesuítas, aos quais sempre detestou. Foi amigo de D'Alembert, de Helvetius e, sobretudo, de Turgot. Atuou na política em 79, voltou contra a execução de Luís XVI. Denunciado como conspirador, refugiou-se na casa de Madame Vernet, mas acabou detido e encarcerado. Foi encontrado morto na prisão. Falou-se em suicídio, mas o que parece certo é que foi assassinado. Era um homem suave, mas ardente. Dele dizia D'Alembert que era um "vulcão coberto de neve". O mais importante de seus escritos é "Esquisse D'Un Tableau Historique des Progrés de L'Esprit Humain", do qual é o texto que hoje publicamos..


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