COMTE E O POSITIVISMO

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira 24 de fevereiro de 1978

O positivismo se compõe essencialmente de uma filosofia e de uma política, necessariamente inseparáveis, formando uma a base e a outra o fim de um mesmo sistema universal, no qual se acham intimamente combinadas a inteligência e a sociabilidade. Por um lado, com efeito, a ciência social não é só a mais importante de todas, mas também e sobretudo é ela que proporciona o único vínculo, ao mesmo tempo lógico e cientifico que suporta, desde logo, o conjunto de nossas contemplações reais. Pois bem: essa ciência final, menos até do que as ciências preliminares pode desenvolver seu carater verdadeiro numa exata harmonia geral com a arte correspondente. Mas, por uma coincidência, que não é fortuita, sua fundação teórica se encontra imediatamente depois de uma destinação prática, para presidir, de forma total, a atual regeneração da Europa Ocidental. Por outro lado, à medida em que o curso natural dos acontecimentos caracteriza a grande crise moderna, a reorganização política se apresenta cada vez como necessariamente impossível, sem a prévia reconstrução das opiniões e dos costumes. Uma sistematização real de todos os pensamentos humanos constitui, pois, nossa primeira necessidade social, analogamente referente à ordem e ao progresso. A realização gradual dessa vasta elaboração filosófica fará surgir espontaneamente, em todo o Ocidente, uma nova autoridade moral, cujo inevitável ascendente há de instaurar a base direta da reorganização final, unindo os diversos povos, cujo progresso resultará de uma mesma educação geral, que oferecerá, em toda parte, tanto na vida pública como na vida privada, princípios fixos de julgamento e de conduta. É assim que o movimento intelectual e a comoção social, cada vez mais solidários, conduzirão, a partir de agora, a elite da humanidade ao advento decisivo de um verdadeiro poder espiritual, a um tempo mais consistente e mais progressivo que aquele cujo esboço admirável foi prematuramente tentado pela Idade Média. Esta é, pois, a missão fundamental do positivismo: - generalizar a ciência real e sistematizar a arte social. ... a natureza intelectual do positivismo e seu destino social não lhe permitem um êxito verdadeiramente imediato no meio onde o bom-senso, preservado de uma cultura viciada, deixa que prevalecem melhor as perspectivas de conjunto, e onde os sentimentos generosos, de um modo geral, se encontram reprimidos. A esse duplo titulo, os proletários e as mulheres constituem necessariamente os auxiliares essenciais da nova doutrina geral, que, mesmo quando destinada a todas as classes modernas, não alcançará um verdadeiro predomínio nas camadas superiores, senão quando aparecer sob esse irresistível patrocínio. A reorganização espiritual não pode começar senão com o concurso dos mesmos elementos sociais que devem, mais tarde, secundar melhor seu normal florescimento. Por sua mínima participação do governo político, são eles os mais aptos para sentir a necessidade e as condições do governo moral, destinado sobretudo a defendê-los contra a opressão temporal... Um sistema que erige diretamente o aperfeiçoamento universal em fim principal de toda nossa existência pessoal e social atribui, necessariamente, um papel capital às faculdades destinadas sobretudo a cultivar em nós o instinto da perfeição em todos os sentidos. Os estreitos limites desse discurso não me impedirão, além disso, de indicar aqui que, ao abrir uma grande carreira à arte moderna, o positivismo oferecerá, não menos espontaneamente, novos meios gerais. Desse modo, bosquejado o verdadeiro caráter da doutrina regenerada, apreciada em todos os seus aspectos principais, entende-se o encadeamento natural, de sua fundação filosófica, primeiro, ao seu destino político, depois, à sua influência feminina e, finalmente, à sua aptidão estética... Ao formular essas conclusões características, vejo-me naturalmente levado a assinalar também, de um modo geral, com referência ao contexto do passado, a marcha ulterior da regeneração humana, que, limitada, primeiro, sob influência da iniciativa francesa, à grande família ocidental, deverá estender-se depois, de acordo com as leis previsíveis, a todo o resto da raça branca e, finalmente, inclusive, às duas outras raças principais.


Augusto Comte (1798-1857) é o fundador do positivismo. Se se tiver em vista sua influência e sua fama, pode-se dizer, com Julián Marias, que é o mais importante dos filósofos do século XIX, posteriores ao idealismo alemão. No Brasil, suas idéias dominaram o pensamento político da geração que fez a república, e seu pensamento afetou profundamente nossa primeira Constituição republicana e nossas instituições de direito público, bem como a teoria de sociedade e nação das mais efetivas lideranças militares do País no final do século passado e no início deste século. Para Comte, são as idéias que conduzem o mundo e o transformam. Sua explicação do universo histórico da humanidade, fundada na lei dos três Estado, não deixa de projetar-se, de certa forma, sobre as três classes que explicam, em Marx, o desenvolvimento da sociedade. Comte - mau escritor, de estilo pesado e sem graça - mas cheio de idéias valiosas, pretendeu mesmo fundar uma nova Igreja, para o culto da religião da humanidade. Deixou uma caudalosa obra, da qual se destacam os seis grandes volumes do Curso de Filosofia Positiva e os quatro do Sistema de Política Positiva, de cujo prólogo é tomado o texto que hoje publicamos.


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