CHESTOV E A RAZÃO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, terça-feira, 14 de março
de 1978
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Já
tive ocasião de apontar que em Plotino encontramos a melhor, ou
antes, a mais completa definição de filosofia. A pergunta - que
é filosofia? - ele responde: - "To timiotaton" (o que mais importa).
Essa definição destrói, logo de início e, ao que parece, não intencionalmente,
as fronteiras que, desde a antiguidade, separavam a filosofia
das vizinhas regiões da religião e da arte: também o artista e
o profeta buscam "to timiotaton" - o que mais importa. Além disso,
a definição de Plotino não só não submete a filosofia à fiscalização
e às ordens da ciência, como opõe a esta última. A ciência é objetiva,
indiferente; não se preocupa com o que é ou não importante. Contempla
friamente os inocentes e os culpados, onde os fenômenos são classificados
e não qualificados, e onde isto é assim, não pode haver distinção
entre o importante e o insignificante. Daqui se conclui que a
filosofia definida como "to timiotaton" - o que é mais importante
- não é de modo algum a ciência. Irei mais longe: deve opor-se
necessariamente à ciência, e estar acima dela, se se quiser fazer
uma hierarquia. A ciência visa à certeza, à universalidade, à
necessidade das suas afirmações. Aí residem a sua força, significação
histórica e poder sedutor. Enganam-se redondamente os sábios que
supõem apenas agrupar e descrever fatos, os fatos em si mesmos
não são da menor utilidade para a ciência, mesmo para ciências
como a zoologia, a botânica, a história, a geografia. A ciência
precisa de teorias, isto é, do que miraculosamente transforma
os acontecimentos uma vez, o que aos olhos vulgares é apenas contigentes
em necessário. Negar à ciência esse direito soberano é derrubá-la
de seu pedestal, é torná-la impotente. A mais singela descrição
do mais vulgar dos fatos pressupõe a suprema prerrogativa, a prerrogativa
do juízo final. A ciência não verifica, julga. Não reflete a verdade:
cria-se na conformidade de suas leis autônomas, por ela mesma
estabelecidas. Em outras palavras: a ciência é a vida perante
o tribunal da razão. É a razão que decide o que deve e o que não
deve ser. E decide - não esqueçamos - segundo as suas próprias
leis, sem levar em conta o que ela chama de "humano, demasiado
humano" (alusão a Nietzsche - N.T.). A matéria e a energia são
indestrutíveis, mas Sócrates e Giordano Bruno são destrutíveis
- eis o que a razão determina. E todos se inclinam sem dizer palavra,
ninguém se atreve a perguntar: - por que emite a razão essa lei,
por que se preocupa tão paternalmente com a salvaguarda da matéria
e da energia, e abandona Sócrates e Bruno? E menos ainda há quem
levante essa outra questão. Admitimos que a razão proclamou essa
lei revoltante, sem respeitar o que para os homens é sagrado -
"to timiotaton". Mas onde foi ele desencantar as forças para levar
a cabo tal decisão? E tão definitivamente, que nem uma única vez,
desde que o mundo é mundo, um átomo se sumiu sem deixar rastro,
e não só um quilogrâmetro, mas um simples miligrâmetro de energia
se perdeu no espaço? Eis, na verdade, um notável milagre. E tanto
mais quanto, afinal de contas, a própria razão não existe. Experimentem
encontrá-la, apontá-la: nada conseguirão. Como realismo, um ser
faz milagres - mas não tem existência. E nós, que nos habituamos
a duvidar de tudo, aceitamos, muito tranquilamente, este milagre.
A ciência, criada pela razão, recompensa-nos: de fatos destituídos
de qualquer valor obteve a experiência, graças à qual nos elevamos
a dominadores da natureza. A razão conduziu o homem ao cume de
uma alta montanha e, fazendo-o contemplar o universo inteiro,
disse-lhe: - "Tudo o que vês te darei, se ajoelhado aos meus pés
me adorares". O homem ajoelhou-se, adorou e recebeu o que lhe
fora prometido. Mas nem tudo. Desde então, o dever prioritário
do homem passou a ser a razão. É impossível conceber que não seja
assim. Quanto a Deus, há um mandamento: - ama a Deus sobre todas
as coisas. A razão dispensa mandamentos, porque os homens devem
amá-la de modo próprio. A teoria do conhecimento canta a audácia
de interrogar ou duvidar de seus direitos soberanos. O milagre
da transformação dos fatos em experiência, venceu e seduziu todos
os espíritos, que admitem que a razão julga e não está, por sua
vez, sujeita a passar em julgado... As lei naturais e a sua imutabilidade,
as verdades e as suas evidências não são talvez mais do que uma
sugestão análoga à sofrida por um galo, em torno do qual se trace
um risco de giz. O galo não é capaz de ultrapassar o círculo,
como se este fosse uma parede e não uma linha. Se o galo soubesse
raciocinar e exprimir por palavras os seus pensamentos, dissertaria
acerca de evidências, e concluiria que o risco era o limite da
experiência possível.
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Leon Chestov (1866-1938), é o pseudônimo pelo
qual ficou conhecido Lev Isaakovitch, nascido em Kiev, na Ucrânia,
de rica família judaica. Tomando posição contra
a revolução de 1917, emigrou para a França,
onde, a partir de 1920, sua obra começou a exercer extraordinária
influência no pensamento filosófico, sendo, sem dúvida,
um dos pais do existencialismo. É certo que seu pensamento
não acompanharia os fundamentos da ontologia de Heidegger,
os compromissos históricos de Sartre ou a ortodoxia religiosa
de Gabriel Marcel. Debruçado sobre as obras de Dostoiewski,
de Plotino, de Santo Agostinho e de Kierkegaard, a luta contra as
evidências e, pois, contra a razão, está no
cerne de seu dramático pensamento filosófico. O texto
que hoje publicamos é de seu livro "As revelações
da Morte".
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