CAMUS E O SUICÍDIO

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 21 de outubro de 1977.


Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.
Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental de filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder. E, se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo, para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância desta resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo.
São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso aprofundá-las para as tornar claras ao espírito. Se pergunto a mim próprio como decidir se determinada interrogação é mais premente do que outra qualquer, concluo que a resposta depende das ações a que elas incitam ou obrigam. Nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico.
Galileu, que possuía uma verdade científica importante, dela abjurou com a maior das facilidades deste mundo, logo que tal verdade pôs a sua vida em perigo. Fez bem, em certo sentido. Essa verdade não valia a fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente. A bem dizer, é um assunto fútil. Em contrapartida, vejo que muitas pessoas morrem por considerarem que a vida merece ser vivida. Outros vejo que se fazem paradoxalmente matar pela idéias ou pelas ilusões que lhes dão uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver só ao mesmo tempo uma excelente razão de morrer).
Julgo pois que o sentido da vida é o mais premente dos assuntos —das interrogações. Como responder-lhes? Em todos os problemas essenciais (e por tal entendo os que podem fazer morrer e os que decuplicam a paixão de viver) só há provavelmente dois métodos de pensamento, o de La Palisse e o de Don Quixote. É o equilíbrio da evidência e do lirismo o único que nos faculta ao mesmo tempo o acesso a emoção e à clareza.
Num assunto ao mesmo tempo tão humilde e tão cheio de patético, a dialética sábia e clássica deve pois ceder o seu lugar mais modesto que deriva ao mesmo tempo do bom senso e da simpatia.
O suicídio nunca foi tratado senão como fenômeno social. Aqui, pelo contrário, para começar, importa-nos a relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto como este prepara-se, tal como acontece com uma grande obra, no silêncio do coração. O próprio homem o ignora. Uma bela noite, dá um tiro ou atira-se à água. De um gerente de prédios de rendimentos que se matara, diziam-se certo dia que ele perdera a filha havia cinco anos, que mudara muito, desde então e que essa história "o havia consumido". Não se pode desejar palavra mais exata. Começar a pensar é começar a ser consumido. A sociedade não tem grande coisa a ver com estes princípios. O veneno está no coração do homem. É aí que ele deve ser procurado. Esse jogo mortal, que vai da lucidez perante a existência à evasão fora da luz, é preciso segui-lo e compreendê-lo. Há muitas causas para um suicídio, e, de um modo geral, as mais aparentes não têm sido as mais eficazes. As pessoas raramente se suicidam (a hipótese, no entanto, não se exclui) por reflexão. Aquilo que provoca a crise é quase sempre incontrolável. Os jornais falam muitas vezes de "desgostos íntimos" ou de "doença incurável". São explicações válidas. Mas era preciso saber se nesse próprio dia um amigo do desesperado não lhe falou num tom indiferente. É ele o culpado. Porque isso pode bastar para precipitar todos os rancores e todos os cansaços ainda em suspenso. Mas é difícil de fixar o momento preciso, o movimento sutil do espírito em que este se determinou pela morte, é mais fácil de tirar do próprio gesto as consequências que ele implica. Matar-se, em certo sentido (e tal como no melodrama), é confessar. É confessar que se é ultrapassado pela vida e que a não compreendemos.
Não vamos, em todo caso, tão longe nas analogias: voltemos às palavras correntes. O suicídio é apenas a confissão de que a existência "não vale a pena". Viver, naturalmente, nunca é fácil. Continuamos a fazer os gestos que a existência ordena, por muitas razões, a primeira das quais é o hábito. Morrer voluntariamente implica reconhecermos, mesmo instintivamente, o caráter irrisório desse hábito, a ausência de qualquer razão profunda de viver, o caráter insensato dessa agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento. Qual é então esse incalculável sentimento que priva o espírito do sono necessário à sua vida?
Um mundo que se pode explicar, mesmo com más razões, é um mundo familiar, mas, pelo contrário, num universo subitamente privado de ilusões e de luzes, o homem sente-se um estrangeiro. Tal exílio é sem recursos, visto que privado das recordações de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e a sua vida, entre o ator e o cenário. É que é verdadeiramente o sentido do absurdo. Como todos os homens sãos já pensaram no seu próprio suicídio, pode reconhecer-se, sem mais explicações, que há um elo direto entre tal sentimento e a aspiração ao nada.
O assunto deste ensaio é precisamente essa relação entre o absurdo e o suicídio, a médida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo.
Pode-se admitir-se como princípio que para um homem que não faz batota, o que ele considera verdade deve regular a sua ação. A crença no absurdo da existência deve pois ordenar a sua conduta. É uma curiosidade legítima, perguntarmos a nós próprios, claramente e sem falso patético, se uma conclusão desta ordem exige que se abandone, o mais depressa possível, uma condição incompreensivel. Falo aqui, bem entendido, dos homens dispostos a porem-se de acordo consigo próprios. Apresentado em termos claros, este problema pode parecer ao mesmo tempo simples e insolúvel. Mas supõe-se erradamente que as perguntas simples determinam respostas que o não são menos e que a evidência implica evidência. A priori, e invertendo os termos do problema, da mesma maneira que a gente se mata ou não se mata, parece haver unicamente duas soluções filosóficas: a do sim e a do não. Seria belo demais.
Há que contar, porém, como aqueles que, sem tirarem conclusões, interrogam sempre. Aqui, mal ironizo: trata-se da maioria. Vejo igualmente que os que respondem não agem como se pensassem sim. De fato, se aceito o critério nitzscheano, eles pensam sim de uma maneira ou de outra. Pelo contrário, acontece muitas vezes que precisamente os que se suicidam eram os que estavam certos de haver encontrado um sentido da vida. Essas contradições são constantes. Pode-se mesmo dizer que nunca foram tão vivas como neste ponto em que a lógica parece, pelo contrário, tão desejável. É um lugar-comum comparar as teorias filosóficas e a conduta dos que as professam. Mas há que reconhecer que, de entre os pensadores que recusam um sentido à vida, nenhum exceto Kirilov, que pertence à literatura, peregrino, que nasce da lenda, e Jules Lequier, que vem do mundo da hipótese, levou a sua coerência lógica ao ponto de recusar essa vida.
Cita-se muitas vezes, para rir, Schopenhauer, que fazia o elogio do suicídio diante de uma mesa bem guarnecida. Tal não deve, entretanto, constituir motivo de riso. Esta maneira de não tomar o trágico a sério não é assim tão grave, mas acaba por nos dar ela própria a medida do homem. Ante estas contradições e estas obscuridades, devemos então acreditar que não há nenhuma relação entre a opinião que podermos ter da vida e o gesto que fazemos para a deixar? Não exageramos tampouco nesse sentido. Na afeição de um homem pela vida há qualquer coisa de mais forte que todas as misérias do mundo. O julgamento do corpo vale bem o do espírito e o corpo recua ante o aniquilamento. Ganhamos o hábito de viver, antes de adquirimos o de pensar. Nesta corrida que todos os dias nos precipita um pouco mais para a morte, o corpo guarda esse avanço irreparável.
Enfim, o essencial de tal contradição reside naquilo a que chamarei a esquiva, porque ela é ao mesmo tempo menos e mais do que a diversão no sentido pascaliano. A esquiva mortal, que constitui o terceiro tema deste ensaio, é a esperança. Esperança noutra vida que é necessário "merecer", ou batota dos que vivem não pela própria vida mas por qualquer idéia que a ultrapassa, a sublima, lhe dá um sentido e a atraiçoa. Tudo contribui assim para baralhar as cartas. Não é em vão que se tem jogado com as palavras e fingindo acreditar que recusar um sentindo a vida conduz forçosamente a declarar que ela não vale a pena ser vivida.
Na verdade, não há nenhuma relação de obrigatoriedade entre estes dois juízos. Importa, sim, consentirmos que nos dominem as confusões, divórcios e inconsequências, assinalados até aqui. É preciso afastar tudo e ir direito ao verdadeiro problema. As pessoas matam-se porque a vida não vale a pena ser vivida, eis uma verdade, sem dúvida —infecunda, no entanto, porque é truísmo. Mas virá esse insulto à existência, esse desmentido em que a mergulhamos, de ela não ter sentindo algum?
Será que o seu absurdo exige que lhe escapemos, pela esperança ou pelo suicídio —eis o que é necessário aclarar, prosseguir e ilustrar, afastando todo o resto. Averiguar se o absurdo determina a morte, tal problema a que se tem de dar a primazia, fora de todos os métodos do pensamento e dos jogos do espírito desinteressado. As cambiantes, as contradições, a psicologia que um espírito "objetivo" sabe sempre introduzir em todos os problemas, não têm lugar nesta procura e nesta paixão. É unicamente um pensamento injusto, quer dizer, lógico, o que é mais fácil. É até cômodo ser-se lógico, mas é quase impossível ser-se lógico até o fim.
Os homens que morrem às suas próprias mãos seguem deste modo até o fim da tendência do seu sentimento. A reflexão sobre o suicídio dá-me então ocasião de apresentar o único problema que me interessa: haverá uma lógica até à morte?
Só posso sabê-lo prosseguindo, sem paixão desordenada, à luz única da evidência, o raciocínio cuja origem aqui indico absurdo. Muitos o começaram. Ainda não sei se o respeitam. Quando Karl Jaspers, revelando a impossibilidade de constituir o mundo em unidade, exclama: "Essa limitação conduz-me a mim próprio ao ponto onde já não me escondo por detrás da mera representação de um ponto de vista abstrato, onde nem eu nem a existência de outrem podem tornar-se objeto para mim" —então ele evoca, depois de muitos outros, esses lugares desertos e sem água onde o pensamento chega aos seus confins. Depois de muitos outros, sim, sem dúvida, mas que pressa eles tinham em sair de lá! A essa última curva onde o pensamento vacila, muitos homens chegaram e, dos mais humildes, esses abedicavam então daquilo que tinham de mais querido, que era a sua vida. Outros, príncipes entre os senhores do espírito, abdicaram também, mas procederam ao suicídio do seu pensamento, na sua revolta mais pura.
O verdadeiro esforço consiste, pelo contrário, em aí nos aguentarmos, tanto o quanto possível, e examinarmos de perto a vegetação barroca. Dessas regiões afastadas. A tenacidade e a clarividência são espectadores privilegiados nesse jogo desumano em que o absurdo, a esperança e a morte travam o seu diálogo. O espírito pode então analisar as figuras dessa dança elementar e sutil, antes de ele próprio as ilustrar e as reviver.


Albert Camus, nascido na Argélia, em 1913, morreu num desastre de automóvel, em 1960. Jornalista, romancista, teatrólogo e pensador francês. Prêmio Nobel de Literatura. Escreveu "A Peste", "O Mal-entendido", "Caligula", "O Homem Revoltado", "A Queda". Seu mais importante trabalho como filósofo é o "Mito de Sísifo — Ensaio sobre o Absurdo", onde examina o problema do suicídio e do qual foi extraído o texto acima. Manteve uma famosa polêmica com Jean Paul Sartre sobre as questões políticas da atualidade.

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