BOLÍVAR E O CONGRESSO
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 6 de abril de 1978
|
|
Feliz
o cidadão que, depois de ter alcançado o poder pela força das
armas, convoca a soberania nacional para que exerça sua vontade
absoluta. Incluo-me, assim, entre as pessoas mais favorecidas
pela Divina Providência, pois tive a honra de reunir os representantes
do povo da Venezuela neste Congresso, fonte da autoridade legítima,
depósito da vontade soberana e árbitro do destino da nação. Ao
transmitir aos representantes do povo o poder supremo que me havia
sido confiado, faço todos os votos de meu coração, os de meus
concidadãos e os de nossas gerações futuras, para que alcancemos
tudo o que se espera de vossa sabedoria, retidão e prudência.
Ao cumprir este grato dever, liberto-me da imensa autoridade que
me sufocava, da ilimitada responsabilidade que pesava sobre minhas
débeis forças. Somente uma imperiosa necessidade ocidental me
havia submetido ao terrível e perigoso encargo de ditador chefe
supremo da República. Já agora posso respirar, ao devolver-vos
esta autoridade que, com tanto risco, dificuldade e sacrifício,
tive que manter, em razão de terríveis atribulações sociais...
Legisladores, em vossas mãos deposito o comando supremo da Venezuela.
Vosso é agora o augusto dever de consagrar-se à felicidade da
República; em vossas mãos está a balança de nossos destinos, a
medida de nossa glória; elas selarão os decretos que fundarão
nossa liberdade. Já neste momento, o chefe supremo da República
não é mais do que um simples cidadão, e assim, deseja permanecer
até a morte... A pátria possui grande número de filhos beneméritos,
capazes de dirigi-la. Talentos, virtudes, experiências e tudo
quanto se requer para governar homens livres são patrimônio de
muitos dos que aqui se encontram representando o povo. E mesmo
fora deste colégio soberano, há cidadãos que já demonstram seu
valor, sua prudência e sua capacidade para governar-se a si mesmos
e aos outros. Estes ilustres cidadãos merecerão, sem dúvida, os
sufrágios do Congresso, e por ele serão encarregados do governo
a que acabo de renunciar, espontânea e cordialmente. A continuação
do poder total num único indivíduo costuma ser a morte da democracia.
As eleições repetidas são essenciais nos sistemas populares, porque
nada é tão perigoso como deixar por muito tempo no governo um
mesmo cidadão. O povo se habitua ao mandonismo. Esta é a origem
da usurpação e da tirania. E já que por este ato de minha adesão
à liberdade da Venezuela, posso aspirar à gloria de ser um de
seus filhos mais leais, permiti-me que vos submeta, com a franqueza
de um verdadeiro republicano, minha respeitosa contribuição neste
projeto de Constituição que tomo a liberdade de oferecer-vos,
como prova da sinceridade e da pureza de meus sentimentos. Bem
sei que vossa sabedoria não precisa de conselhos, e sei que meu
projeto poderá parecer falho e impraticável... Aumentando na balança
dos poderes o peso do Congresso Nacional, pelo número dos legisladores
e pela natureza do Senado, procurei dar bases sólidas a este primeiro
órgão da nação, e revesti-lo de prestígio capaz de assegurar o
êxito de sua funções soberanas. Separando com limites bem nítidos
a jurisdição do Executivo e do Legislativo, não tive o propósito
de dividir, mas de unir, com os vínculos da harmonia que nasce
da independência, esses dois poderes supremos cujo choque prolongado
é fonte de permanente desequilíbrio. Ao pedir a estabilidade dos
juizes, a criação de jurados e um novo Código, o que pedi ao Congresso
foi a garantia da liberdade civil, a mais preciosa, a mais justa,
a mais necessária. Numa palavra: a única liberdade, pois sem ela
todas as outras se anulam... Começai, senhores, as vossas funções.
Eu terminei as minhas.
|
|
Simon
Bolívar (1783-1830) nasceu em Caracas. Foi chamado O Libertador,
título que lhe deram os povos da América espanhola, cuja independência
conseguiu numa guerra do Panamá ao Peru, e sem a qual não se teriam
sustentado as campanhas libertadoras de O Higgins no Chile e de
San Martin na Argentina. E vice-versa. Figura romântica da Independência,
contrastando com o ascetismo de O'Higgins e a figura de herói clássico
de San Martin, tem com eles um traço comum: - conquistado o país
pelas armas, entregou o governo ao poder civil e quis que os Congressos
dessem ao povo uma Constituição. É o que distingue, além de outros
valores, os três heróis da Independência, da chusma de caudilhos
quer ainda hoje existem no Continente. A História, que sabe o que
faz, só guardou o nome desses três. É de seu famoso discurso ao
Congresso de Angostura o texto que hoje publicamos.
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|