BOÉCIO E A FELICIDADE
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Publicado
na Folha de S.Paulo, terça-feira, 28 de fevereiro
de 1978
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Todos
os homens do mundo, fatigados e mergulhados em muitas ocupações,
sempre tentaram chegar, embora por caminhos diversos, àquele que
é o fim comum de todos -a felicidade.
Este é um bem tão perfeito, que quando alguém o possui, não precisa
desejar mais nada, porque é o maior dos bens, contendo em si todos
os outros. Pois, se algum lhe faltasse, já não seria o maior,
uma vez que se poderia sentir falta exatamente de algum dos bens
desejados. Deste modo, parece que a felicidade é um estado perfeito
em que se encerra todo bem. Desta ou daquela maneira, todos os
homens a desejam e buscam alcançá-la, pois o desejo natural do
verdadeiro bem está inserido na vontade de todas as pessoas.
E certo que, muitas vezes, o homem se equivoca sobre o que seja
o bem verdadeiro e se deixa iludir pelos bens mentirosos. Alguns,
supondo que o maior bem dos homens é não haver nada que lhes falte,
tratam de se tornar muito ricos. Outros acham que o sumo bem é
gozar de um conceito honroso, e então trabalham para arranjar
titulos e dignidades que lhes conquistem o respeito de todo mundo.
Outros, imaginando que o supremo bem é o poder, procuram alcançar
o governo ou conviver com os que o exercem. Há os que acham que
a maior felicidade é ser famoso, e não fazem outra coisa senão
buscar o caminho da glória, na paz ou na guerra. Muitos outros,
por se comprazerem no gozo e na alegria, pensam que a grande felicidade
é viver entre deleites. E há também certas pessoas que procuram
possuir um desses bens, para utilizá-lo como um meio para a obtenção
de outros, como, por exemplo, os que desejam ser ricos para se
tornar poderosos ou para levar uma vida de prazeres, ou ainda
os que querem ser poderosos para conquistar a fama e o dinheiro.
Os cuidados dos homens geralmente estão postos nestas coisas e
outras semelhantes e nelas se reduz sua ocupação. Transformam
em fama a nobreza ou o favor que recebem do povo. Transformam
em prazer a companhia dos filhos e da mulher. Ter amigos, o que
é uma das maiores felicidades, não se consegue com dinheiro, mas
com muita virtude.
É um erro buscar a felicidade nos objetivos do poder ou do deleite.
De um modo geral, esses são os bens materiais ao alcance do homem.
A grandeza e as forças do corpo podem levar ao poder. A disposição
cavalheiresca, a gentileza e o trato ameno podem levar à fama.
A boa saúde pode proporcionar o deleite. O que é certo é que todo
mundo busca nessas coisas é a felicidade, pois a felicidade parece
ser a posse das coisas desejadas. De forma que quem tem todos
os desejos cumpridos, pensa haver alcançado a felicidade. A riqueza,
a honra, a fama e o deleite são, assim, as coisas perseguidas
pelos que aspiram à felicidade. Epicuro determinou que o prazer
era a maior das felicidades, até porque quando os homens buscam
qualquer tipo de bem, o que têm em mira é alcançar um contentamento,
isto é, ter um prazer. Penso no cuidado de todos os homens, empenhados
na busca da felicidade, tão certos de que ela existe, como estão
certos da casa em que moram. O que se dá é que, às vezes, estão
bêbados e não acertam o caminho de casa.
Nunca deixa de buscar a felicidade quem procura ter tudo o que
está a seu alcance. Pois não há nada tão próprio da verdadeira
felicidade do que não ter carência de coisa alguma, e gozar da
abundância de todas elas. Também não estão enganados os que consideram
que a felicidade é um motivo de honra. Pois não pode ser uma coisa
vil nem desprezível aquilo que todos tentam e desejam obter. O
poder, acaso, não uma boa coisa? É claro que sim. Se não fosse
assim, a debilidade e a impotência seriam uma boa coisa e, evidentemente,
não são. E a fama, será legitimo desprezá-la? É óbvio que não,
até porque tudo que é excelente, se torna automaticamente famoso.
Parece desnecessário provar que a felicidade não é triste nem
penosa, nem provoca mágoa. Pois tudo aquilo que temos empenho
em procurar e encontrar, por mais insignificante que seja, há
de ser sempre uma coisa que nos agrada. Todos os homens, portanto,
desejam a suprema felicidade. E é por isso que procuram riquezas
e dignidades, poder e glória e prazeres, pois acreditam que essas
coisas lhes trazem honra, prestígio, fama e alegria. De modo que,
de uma forma ou de outra, todos os homens desejam o bem. E, assim,
parece evidente que o desejo natural é uma força poderosa no homem,
tão poderosa que, embora manifestando-se sob formas diversas e
até contrárias, concorrem todas elas a um mesmo fim, que é a busca
do bem maior - a felicidade.
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Boécio
(480-525). Nascido em Roma, onde foi também homem de
Estado, o filósofo Boécio exerceu as funções
de conselheiro do rei ostrogodo Teodorico, que depois o mandou encarcerar
e decapitar. Não há certeza de que tenha sido cristão,
embora a Igreja o considere, não oficialmente, como um de
seus mártires. Traduziu do grego o "Isagogo" de
Porfírio, e exerceu grande influência no pensamento
medieval, inclusive entre os poetas e, notadamente, na "Divina
Comédia", de Dante. Sua filosofia retoma os princípios
de Platão e dos estóicos e fixa a paz e a virtude
como únicos caminhos da felicidade. Sua obra maior. "De
Consolatione Philosophiae", foi escrita no cárcere e
dela é o fragmento que hoje publicamos.
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