BODIN E OS SOBERANOS

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 09 de dezembro de 1977


Soberania é aquele poder absoluto e perpétuo de que se reveste uma comunidade. Em latim chama-se "majestas", termo que pede uma definição cuidadosa, pois, conquanto represente a marca característica de uma comunidade e o entendimento sobre sua natureza seja fundamental a qualquer regime político, nenhum filósofo político atentou para defini-lo.
Descrevi soberania como coisa perpétua porque podemos conceder poder absoluto a uma pessoa ou grupo por um período de tempo limitado que, uma vez cessado, reverte tudo à condição anterior. Assim, enquanto os recipientes do poder beneficiam-se dele, não podem ser considerados como soberanos, mas apenas como lugar-tenentes dos soberanos, até o momento em que esta concessão é revogada.
O verdadeiro soberano mantém-se sempre dono do poder intemporalmente. Assim como o senhor feudal que doa terras a outrem retém um certo domínio sobre a antiga propriedade, assim o governante que delega autoridade para julgar ou comandar, por curto ou longo período de tempo, mantém o direito de ser o juiz supremo e final dos atos do delegado, seja sob forma de uma transferência revogável, seja de uma procuração a título precário.
Por esta razão a lei requer que o governador de uma província ou lugar-tenente pelo príncipe fosse considerada como um poder soberano, este último poderia utilizá-la contra o próprio príncipe. Assim, o súdito tornar-se-ia príncipe e o servo, senhor.
Este é um absurdo manifesto, considerado que o soberano, por uma questão de direito, mantém a integridade e a perenidade do poder. Por mais que o príncipe conceda parcelas da autoridade permanece com ele o bojo do poder. Desta forma ele pode intervir, revogar e transformar qualquer situação em que sua soberania se veja ameaçada.
Supondo que um monarca transfira o poder absoluto a um seu lugar-tenente vitaliciamente, não converterá este num soberano perpétuo? Se confinamos o termo "perpétuo" àquilo que não tem término, então, soberania só poderá existir nas aristocracias e nos Estados populares, que nunca morrem.
De que servem estas considerações? Se o poder absoluto é transferido simples e incondicionalmente, sem missão ou comissão específica a um determinado indivíduo, então ele pode ser considerado como soberano absoluto. O povo neste caso terá renunciado a exercer seu poder soberano, alienando-o a outrem. Se o povo dá este poder vitaliciamente a qualquer lugar-tenente, neste caso, este será sempre um lugar-tenente e não um soberano. Se um magistrado entrega todos os poderes vitaliciamente a um lugar-tenente, continua apto a julgar todos os atos do substituto.
Isto significa que o poder comissionado não é poder soberano. Vamos agora examinar a outra parte da definição de soberania verificando o teor da palavra "absoluto". O povo ou mandatários de uma comunidade podem conferir incondicionalmente a alguém de sua escolha o poder soberano de dispor de suas vidas, propriedades, etc. Neste caso agem como proprietários que doam suas posses a outrem. Mas esta transferência deve ser incondicional, ilimitada por condições e prejudicadas por obrigações não são doações. O poder soberano concedido a um príncipe se diminuído por condições deixa de ser soberano e absoluto.
Por outro lado é inerente e intrínseco ao poder soberano não estar sujeito a nenhum outro poder que possa comandá-lo. O soberano é quem faz a lei e não quem a obedece. Na lei civil está dito que o príncipe esta acima das leis. Por outro lado, o poder absoluto e soberano está contido no conceito de vitaliciedade. Cada novo príncipe deve confirmar ou desfazer as leis e a posturas anteriores, tudo deve começar de novo, caso contrário sua própria soberania estará limitada. Assim como pela praxe canônica um Papa não pode ter as mãos atadas, assim também o príncipe soberano não pode submeter-se a algo que não deseja. É por esta razão que todos os editos reais sempre mencionam a frase "que isto se faça por nosso prazer". Um decreto real, mesmo procedendo dos ditames da justiça e do direito, deve derivar-se da espontânea vontade e gosto de quem o edita. A soberania do príncipe não precisa ser consentida nem aprovada, se assim o fosse não seria soberania. Se o poder legiferante de um príncipe tiver que ser aprovado por instância superior, ele será um súdito e não um monarca. Um rei faz leis, súditos produzem costumes. Existe uma diferença entre ambos. Um costume estabelece-se gradualmente no decorrer de anos. Leis são instantâneas. Costumes não necessita ser imposto, leis devem ser impostas. Costumes não exige castigo, leis necessitam de penalidades. Mas enquanto uma lei pode quebrar costumes, costumes não podem derrogar lei. É por isto que se compara costumes aos reis e leis aos tiranos. Fazer e desfazer leis - este o grande atributo do poder soberano. O resto está contido nesta prerrogativa.


Jean Bodin (1530-1596), pensador e homem de Estado francês. Um dos primeiros a teorizar sobre economia. Foi também um dos precursores do pensamento absolutista. Acreditando que a monarquia francesa seria a forma ideal de governo (era funcionário da Coroa na ocasião) montou um conjunto de doutrinas em torno do conceito de soberania como poder absoluto e perpétuo. Suas obras mais importantes são "Seis Livros da Comunidade" (1576) e o "Método para uma Compreensão Fácil da História" (1566). No campo religioso, "Diálogo entre os Sete Sábios" (um de cada religião conhecida na época, inclusive um cético) constituiu a sua grande contribuição ao humanismo renascentista, do qual foi típico representante. O absolutismo de Bodin pressupunha sempre um governante justo, por isto pairando acima dos desígnios de outros poderes. Esta concepção idealista de soberano total e perfeito foi aperfeiçoado pelos filósofos ingleses, que prefeririam um governante com menos poderes, justamente para enfrentar a falibilidade humana e as eventualidades em que o monarca não fosse tão justo e bom. O texto abaixo foi extraído dos "Seis Livros da Comunidade", numa tradução inglesa (Oxford, 1955).


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