BERGSON E O RISO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sábado, 11 de março de 1978.
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O
primeiro ponto sobre o qual quero chamar a atenção
é que, fora do propriamente humano, não existe nada
cômico. Uma paisagem poderá ser bela, sublime, insignificante
ou feia, mas nunca será ridícula. Quando rimos à
vista de um animal, é porque surpreendemos nele uma atitude
ou uma expressão humana. Um chapéu nos faz rir,
pela forma que lhe deram os homens, pelo capricho humano em que
foi modelado, e não porque o feltro ou a palha de que se
compõe suscitem por si mesmos nosso riso. Não entendo
como é que um fato tão importante em sua simplicidade
não tenha ainda chamado, de modo especial, a atenção
dos filósofos.
Muitos definiram o homem como "um animal que ri". Deveriam
tê-lo definido também como um animal que provoca
riso, porque quando algum outro animal ou qualquer coisa inanimada
motiva o riso, será, de qualquer modo, por sua semelhança
com o homem, pela marca deixada pelo homem ou pelo uso que dele
fez o homem.
Devo assinalar aqui, como sintoma igualmente notável, a
insensibilidade que quase sempre acompanha o riso. Dir-se-ia que
o cômico só se pode produzir quando é recebido
por uma superfície espiritual polida e tranquila. Seu meio
natural é a insensibilidade. O pior inimigo do riso é
a emoção. Não quero negar que se possa rir
de uma pessoa que, por exemplo, nos inspira piedade e até
afeto. Mas será preciso que neste caso nos esqueçamos
por uns instantes desse afeto e dessa piedade. É provável
que, numa sociedade de inteligências puras, não se
choraria, mas é certo que se riria. Mas entre almas em
cuja persistente sensibilidade todo sucesso produzisse um eco
sentimental, não se conheceria nem se entenderia o riso.
Tentai por um momento interessar-vos por tudo o que se diz e tudo
o que se faz. Procedei mentalmente como os que praticam determinada
ação. Senti como os que sentem. Daí, enfim,
à vossa simpatia, sua mais ampla efusão, e vereis,
como por efeito de uma vara mágica, que as coisas mais
fúteis se tornam graves, e que tudo adquire matizes severos.
Abandonai, depois, vossa impressionabilidade, tomai a vida como
um espectador indiferente, e vereis que muitos dramas se transformam
em comédia. Basta fechar ouvidos aos aspectos musicais
de um salão de dança, para que os que estão
dançando nos pareçam ridículos.
Quantos acontecimentos humanos resistirão a essa prova?
Quantas coisas não veríamos transformadas de graves
em cômicas, se as isolássemos da música do
sentimento com que geralmente as acompanhamos? Para produzir todo
o seu efeito, o cômico exige algo assim como uma momentânea
anestesia do coração, para dirigir à inteligência
pura.
Mas é necessário que essa inteligência esteja
em contato com outras inteligências. E é para este
terceiro aspecto do problema que quero chamar a atenção.
Não poderíamos gostar do cômico se nos sentíssemos
isolados, como se o riso necessitasse de um eco. Escutai bem:
não é um som articulado, claro, definido. É
algo que quisera prolongar-se a ressoar progressivamente rompendo
num estridor e retumbando como um trovão entre as montanhas.
Mas essa repercussão não pode chegar ao infinito,
porque se mantém dentro de um círculo que, por mais
amplo que seja, será também sempre limitado e fechado
em si mesmo. Nosso riso é sempre o riso de um grupo. Não
vos terá ocorrido alguma vez, num carro de trem ou numa
mesa de bar, ouvir os viajantes contarem histórias cheias
para eles de muito sabor cômico, e com as quais riem de
todo o coração? Se estivésseis na companhia
deles, também teríeis rido. Mas isso não
acontecia e, por isso, não tínheis a menor vontade
de rir.
Perguntaram um dia a um homem por que não chorava ao ouvir
um sermão que fazia chorar a todo o auditório, e
ele respondeu: "Não pertenço a esta
paróquia". O que acontecia com esse homem, com relação
às lágrimas poder-se-ia aplicar, com mais exatidão,
ao riso. Pois o riso, por mais espontâneo que pareça,
esconde sempre um preconceito de associação, e até
de cumplicidade com outras pessoas, reais ou imaginárias,
que estariam rindo da mesma coisa. Quantas vezes não se
diz que o riso, num teatro, é tanto mais frequente mais
cheia de espectadores estiver a sala? Quantas vezes não
se observa que muitos efeitos cômicos que se referem aos
costumes e às idéias de uma sociedade particular
não podem ser traduzidos em outra língua?
Só se compreende o riso, integrado-o em seu meio natural,
a sociedade, e deteminando, antes de tudo, a utilidade de sua
função, por tratar-se de uma função
integral. O riso, portanto, deve responder a certas exigências
da vida comum, e deve, assim, ter uma significação
social.
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Henri Bergson (1859-1941), filósofo francês
de excepcional importância na história do pensamento
contemporâneo. Judeu de origem, e fiel às suas raízes,
dirigiu-se espontaneamente à repartição de
Polícia de Paris, durante a ocupação, para
receber o triângulo amarelo com que as tropas nazistas obrigaram
a identificar-se os judeus considerados perigosos. Colocou-o nas
costas, e assim passou a andar, marcado e humilhado, mas buscando
nessa própria marca um sinal de orgulho e de grandeza moral.
Não era um judeu ortodoxo, e esteve muito próximo
da fé católica. "Minhas reflexões - escreveu
no fim da vida - me levaram cada vez mais perto do catolicismo,
no qual vejo a terminação completa do judaísmo".
Sua longa obra, partindo de uma revogação do racionalismo
kantiano, se funda sobretudo nos valores do conhecimento intuitivo.
É de seu belo pequeno livro "Le Rire" o texto que
hoje publicamos em tradução do francês, de Gerardo
Mello Mourão.
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