BERDIAEV E A SERVIDÃO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 09 de dezembro de 1977
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homem procura a liberdade. Dentro dele existe uma poderosa força
que o empurra em direção à liberdade mas, no entanto, o ser humano
facilmente despenca na escravidão. Existem três condições humanas,
três diferentes estruturas de consciência, distinguidas sob os
nomes de "senhor", "escravo" e "homem livre". Senhores e escravos
são correlativos. Não podem existir independetemente. O homem
livre, porém, pode existir individualmente -possui suas próprias
qualidades, sem estar preso a correlações de oposição.
O mundo da escravidão é o mundo do espírito que se aliena de si
mesmo. A exteriorização é a fonte da escravidão, enquanto que
liberdade é consequência da interiorização. No mundo objetivado
em que vivemos, o homem só consegue ser relativamente livre e,
não, absolutamente livre. Esta semiliberdade resulta de conflitos
e resistências às necessidades colocadas diante dele. A liberdade
resultante da necessidade não é liberdade real, é apenas um elemento
na dialética da necessidade.
O homem não deve almejar ser amo e senhor mas aspirar em converter-se
em homem livre. A submissão de outros homens traz sempre a própria
submissão. Quem escraviza é escravo. O amo é a figura do escravo
ao contrário. Prometeu era um homem livre e um libertador, enquanto
que o ditador é um escravo escravizador. A aspiração de poder
é um desejo vil. Cristo é o protótipo do homem livre, César é
o exemplo do escravo do mundo, submetido ao desejo de poder, percebendo
apenas a vocação das massas para torná-lo senhor. Mas os servos
também derrubam os amos e os césares. Liberdade é libertação não
apenas dos opressores mas dos outros escravos igualmente. A condição
de senhor é determinada por necessidades externas, não é uma imposição
de personalidade, é uma injunção. Somente o homem livre é uma
personalidade. Os demais são arranjos.
A queda do homem se expressa na sua inclinação para tiranizar.
O homem tende à tirania, seja em grande ou pequena escala, se
não como governante, como marido, pai. O homem tiraniza com ódio
e com amor. Sobretudo, tiraniza-se a si próprio. Esta autotirania
se manifesta através de uma falsa consciência de culpa. Uma consciência
de culpa verdadeira tornaria o homem livre. Mas, atormentado por
falsas culpas, produz insalubre auto-estima que o tiraniza nos
projetos e visões. A exploração do homem pelo homem, que Marx
considera o demônio fundamental da sociedade humana, é um derivativo,
só ocorre quando se encontram homens dispostos intimamente a exercer
este poder. Um homem verdadeiramente livre não deseja comandar
os demais, mesmo que as condições o favoreçam. O líder das massas
está no mesmo estado de servidão da massa - ele não tem existência
autônoma alguma fora da massa. Sem os escravos, não se pode desempenhar
o papel de senhor. Sem senhores, não há escravos. Este é um jogo
duplo.
César - ditador, herói do desejo imperialista, não pode limitar-se
nem interromper. Prossegue insaciavelmente sempre em direção à
perdição, é um escravo do seu destino glorioso. Mas o homem pode
ser escravizado também através de violências que não são físicas.
Sugestões e condicionamentos a que são submetidos homens desde
sua infância fazem deles escravos. Um sistema educacional errôneo
pode extrair totalmente de um homem sua capacidade de ser livre
nos seus julgamentos e apreciações.
Violações, torturas e assassinatos são fraquezas. Não são poder.
Os grandes valores da humanidade são sempre menosprezados. O policial
e o sargento são sempre mais fortes do que poetas e filósofos.
Escravos e senhores triunfam sempre sobre os homens livres, pois
no mundo objetivado e exteriorizado ama-se o finito, ninguém aguenta
o infinito.
A verdade está sempre ligada à liberdade. Escravidão está subordinada
à negação da verdade. O amor à verdade é o triunfo sobre o medo
escravizador. O homem primitivo pulsando dentro do homem moderno
é dominado pelo medo. Medo e escravidão são passivos. A vitória
sobre a escravidão é obtida com atividade criativa. O homem não
vive apenas no tempo cósmico e histórico, mas também no tempo
existencial. Vive igualmente fora da objetividade que construiu
em torno de si, para aprisionar-se.
Homens livres têm uma responsabilidade: escravos não podem preparar
um novo reinado, pois a revolta de escravos estabelece sempre
novas formas de escravidão.
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Nicolai
Berdiaev, pensador religioso russo, nasceu em 1874 e morreu
em 1948. Como alguns dos nobres de seu tempo, associou-se à
causa revolucionária, no início do século,
lutando contra a tirania czarista. Com a vitória da revolução
soviética, Berdiaev foi nomeado professor de filosofia da
Universidade de Moscou, mas foi exilado para Paris em 1922, diante
da sua rebeldia em aceitar totalmente a doutrina marxista. Preocupou-se
muito com a questão da liberdade individual. Escreveu "A
Nova Idade Média", "Solidão e Sociedade"
e "Escravidão e Liberdade", de onde foi adaptado
o texto acima (capítulo II).
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