BENTHAM E A UTILIDADE
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 24 de novembro de 1977
|
|
A
felicidade do povo deve ser o objetivo do legislador. Utilidade
geral deve ser o princípio racional da legislação. Saber o que
é bom para uma comunidade cujo bem-estar está em jogo constitui
a ciência; encontrar os meios de produzir este bem, constitui
a arte. O princípio da utilidade, se examinado vagamente, provoca
apenas pequenas contradições, aparentando inclusive ser domínio
comum tanto da moral como da política. Mas este consenso é apenas
superficial. As pessoas não creditam ao termo "utilidade" sentido
e valor iguais. A natureza subjugou o homem ao domínio do prazer
e da dor. A estes dois elementos devemos todas as nossas idéias
e movimento, opiniões e julgamentos. Aquele que pretender estar
livre desta influência não sabe o que diz. No exato instante em
que este incrédulo tenta evitar o prazer ele está justamente encaminhando-se
ao maior prazer. Quando anuncia que está imune à dor, está buscando,
na realidade, dor maior. O princípio da utilidade refere-se basicamente
a estes dois motivos da jornada humana. Utilidade, no entanto,
é um termo abstrato. Expressa a conveniência ou a tendência de
escapar do mal ou de procurar o bem. O mal é dor. O bem, prazer.
O que conforma a utilidade de algo é a quantidade de bem-estar
que provoca no indivíduo. No caso de uma comunidade, a utilidade
é a quantidade de bem-estar dos indivíduos. A lógica da utilidade
consiste em comparar dores e prazeres que uma medida pode provocar
e excluir deste julgamento qualquer outra consideração. Defendo
a idéia do princípio da utilidade quando posso medir as consequências
de um ato, seja ele público ou particular, no sentido de aumentar
os prazeres e diminuir a dor. Fique claro que emprego o conceito
de dor e prazer no seu significado mais comum, sem inventar sentidos
arbitrários, seja para excluir certos prazeres, seja para negar
certas dores. Basta de sutileza e metafísica: dor é dor, prazer
é prazer. Não precisamos consultar Platão ou Aristóteles para
definir dor e prazer ou para descobrir o que cada um de nós sente
e entende como dor e prazer. Estamos acostumados a falar em "virtude"
em oposição ao conceito da utilidade. Dizem que virtude é o sacrifício
do nosso interesse aos nossos deveres. Para falar claro: virtude
é o sacrifício de um pequeno interesse a um maior, de um interesse
momentâneo a um interesse perene, de um interesse dúbio a um interesse
claro. Toda idéia de virtude que não derive desta idéia é obscura
e precária. Aqueles que, por conveniência, distinguem política
da moralidade e referem-se ao princípio da utilidade mas menosprezam
o da justiça, têm uma idéia muito confusa do que é verdade. A
diferença entre moral e política é insignificante: a primeira
regula o comportamento dos homens e a segunda, as operações do
governo. Ambas, porém, têm como objetivo comum a perseguição da
felicidade. O que é politicamente bom, não pode ser moralmente
ruim. A não ser que as regras da aritmética, boas para a grande
maioria, estejam erradas para atender a minorias. Podemos enganar-nos
quando nos persuadimos que trilhamos o princípio da utilidade.
Um entendimento limitado destes conceitos pode conduzir a enganos,
tomando-se apenas uma parte do que é bom e uma fração do que é
ruim. Homens passionais podem perder-se na busca da utilidade,
superestimando certos aspectos do que é bom, que os impedem de
ver o mal que estão provocando. O princípio da utilidade é antimaquiavélico.
As máximas do Príncipe estão erradas. "O projeto de Temístocles
é muito vantajoso", disse Aristides aos atenienses reunidos em
assembléia, "mas é injusto". Aparentemente há uma oposição entre
o que é justo e o que é útil. Engano: a oposição é entre o que
é bom e o ruim. Uma coisa injusta resulta de uma situação em que
os homens não mais podem confiar uns nos outros, portanto, não
serve, não é útil. Se quisermos evitar a relatividade do conceito
de prazer e da dor, do bem e do mal, podemos examiná-los à luz
dos seguintes critérios: intensidade, duração, certeza, consequências,
pureza e extensão. Quer alguém julgar o valor de uma ação? Siga
os critérios acima, pois são os elementos do cálculo moral. Assim
a legislação será uma questão de aritmética. A ciência de governar
é como a medicina. Ambos residem numa opção entre males. Qualquer
lei pode ser considerada um malefício, porque toda lei é uma diminuição
de liberdade. Qual deve ser o objeto e intenção do legislador?
Ele deve considerar duas coisas: 1) que os incidentes que ele
pretende prevenir com sua lei são realmente maléficos e 2) que,
em caso positivo, estes malefícios não seriam maiores do que aqueles
que está tentando prevenir. O mal raramente vem sozinho. Existe
o mal que decorre do bem e o bem derivando do mal. Sem moral não
se faz política. Má-fé é apenas má-política.
|
|
Jeremy
Bentham (1748-1832), pensador inglês, foi o pai do movimento
utilitarista. Precursor e mestre de John Stuart Mill, que dispôs
as bases da democracia liberal. Foi Bentham quem formulou o princípio
do maior bem-estar para o maior número possível de
cidadãos. Com o seu "Princípio da Utilidade",
Bentham forneceu os fundamentos éticos sobre os quais ocorreram
as reformas filosóficas, políticas e econômicas
do fim do século 18 e século 19. Tornou-se cidadão
honorário francês depois da Revolução
e teve grande influência entre os fundadores da República
Americana. Até Catarina, a Grande, da Rússia, interessou-se
por seus trabalhos. Bentham produziu copiosamente mas não
se preocupava em finalizar os seus textos ou publicá-los.
Em vida Bentham cuidou apenas da publicação da "Introdução
aos Princípios da Moral e da Legislação"
(1789). O resto foi póstumo (alguns editados 150 anos depois
de sua morte), com exceção de panfletos e escritos
tópicos. O movimento benthamista chegou a fundar uma academia
de ensino superior, a "University College". O texto abaixo,
extraído dos "Princípios da Legislação"
(1802), faz parte de uma antologia publicada pela Randam House.
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|