BECCARIA E OS INTERROGATÓRIOS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 17 de novembro de 1977.
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Nossa
legislação proíbe que se façam interrogatórios sugestivos, pois,
de acordo com nossos juristas, apenas se deve interrogar a propósito
de como o crime se cometeu, a respeito das circunstâncias que
o seguem. Um juiz não pode permitir que sejam feitas questões
diretas, que sugiram ao interrogado uma resposta pronta. O juiz
ao interrogar, dizem os criminalistas, apenas deve aludir ao fato
indiretamente e jamais em linha reta. O método foi estabelecido
para evitar que o acusado receba a sugestão de resposta salvadora
e para evitar ao réu acusar-se a si próprio. São estes os chamados
interrogatórios sugestivos. Existirá interrogatório mais sugestivo
do que a dor? O criminoso robusto enfrenta com coragem as sevícias
e se vê absolvido. Contudo, o homem inocente e débil, quando torturado,
oferece qualquer confissão, por meio da qual se liberte da dor
atual que o afetará mais duramente do que todos os sofrimentos
futuros. É uma barbárie utilizar de violência contra um acusado,
enquanto se faz o processo, seja para que confesse a autoria do
crime, seja para esclarecer contradições em que tenha caído, revelar
cúmplices ou outros crimes de que não é acusado. Um homem não
poder ser tratado como culpado antes que a sentença dos juizes
assim o declare. A sociedade apenas pode retirar-lhe a proteção
pública depois que seja decidido que ele violou as normas em que
tal proteção lhe foi concedida. Aí está uma proposição simples:
um crime é certo ou incerto. Se a culpabilidade está evidente,
o réu deve ser punido com a pena que a lei fixa, e neste caso
a tortura é inútil. Se o crime é incerto ou dúbio, não é hediondo
atormentar alguém que pode ser inocente, já que perante as leis
é inocente todo aquele cujo delito não está provado? Qual a finalidade
política dos castigos? O terror que imprimem nos corações com
tendências ao crime. O que pensar, portanto, destes suplícios
secretos que a tirania utiliza na obscuridade das prisões e que
são reservados tanto ao inocente como ao culpado? Toda a ação
violenta faz sumir as pequenas diferenças dos movimentos pelos
quais se distingue a verdade da mentira. No uso da tortura o inocente
encontra-se em situação muito pior do que a do culpado. Ou será
condenado por confessar um crime que não cometeu ou será absolvido
depois de passar por tormentos que não mereceu. Já o culpado tem
tudo a ganhar: será absolvido se conseguir suportar as sevícias,
pagando apenas uma parcela do castigo em troca da absolvição.
Desse modo, com a tortura, o inocente tem tudo a perder e o culpado
apenas pode ganhar. Acreditar-se-ia que as contradições tão comuns
aos homens, inclusive quando estes têm o espírito tranquilo, não
se multiplicarão nestes instantes conturbados da tortura, quando
a idéia de escapar à dor absorve toda a alma? A pretensa necessidade
de purgar a infâmia constitui também uma das absurdas razões para
o uso das torturas. Um homem a quem a lei declarou infame tornar-se-ia
puro ao confessar um crime, enquanto lhe partem os ossos? Terá
a dor, que é uma sensação, o poder de destruir a infâmia, que
é uma correlação moral? Em verdade, abusos tão ridículos não podem
ser tolerados no século XVIII. As leis militares não admitem a
tortura. Coisa inaudita para aquele que não meditou sobre a tirania
dos costumes: homens acostumados às batalhas e ao sangue dão aos
legisladores de um povo em paz o exemplo de julgar os homens com
a maior humanidade.
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Cesare
Bonesana Beccaria (1738-1794), criminalista e economista italiano
que trouxe para as leis e a justiça as doutrinas humanistas
da Europa antes da Revolução Francesa. Através
de um amigo visitou as prisões de Milão, sua cidade
natal, e pôde colher material informativo e estímulo
moral para sua mais famosa obra, "Dos Delitos e das Penas".
Partindo dos princípios do Contrato Social de Rousseau, Beccaria
foi o primeiro a valer-se deles na aplicação das penas
e castigos judiciais. O artigo oitavo da "Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão", aprovada pela Assembléia
Nacional Francesa em 1789, é praticamente um aproveitamento
textual do pensamento de Beccaria. O ensaio de Beccaria editado
na França em 1776 teve seis edições em 18 meses,
sendo que uma delas prefaciada por Voltaire. A igreja de Roma colocou
a obra de Beccaria em seu índex, mas o governo da Áustria,
que controlava Milão, viu a obra de Beccaria com bons olhos.
O texto acima, extraído dos capítulos dez e doze,
foi aproveitado da versão brasileira de "Dos Delitos
e das Penas" (Ed. Humus), com tradução de T.
Guimarães.
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