BATAILLE E O PODER

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 16 de março de 1978


Costuma-se admitir, de maneira implícita e vaga, que a posse do poder militar é suficiente para exercer um domínio geral. Contudo à exceção das colônias, onde funciona um poder fundado, é difícil encontrar exemplos de dominações duradouras exclusivamente militares. Na verdade, a força armada simples, material, não pode fundar nenhum poder: depende, em primeiro lugar, da atração exercida por um caudilho, pois o dinheiro é insuficiente para constituir um exército.
Quando o exército quer utilizar a força de que dispõe para dominar a sociedade, deve começar por adquirir os elementos de um atrativo externo - um atrativo religioso, válido para toda a população. É certo que esses últimos elementos estão às vezes à disposição da força, embora o atrativo militar como origem do poder real não tenha, provavelmente, um valor primordial, comparado com os atrativos religiosos.
Na medida em que é possível formar um juízo válido com referência aos períodos humanos anteriores, aparece, com uma certa claridade, que a religião, e não o exército, é a fonte de toda autoridade social. Por outro lado, a introdução da herança significa regularmente o predomínio do poder de tipo religioso, que pode sustentar seu fundamento no sangue, enquanto o poder militar depende, antes de tudo, do valor pessoal.
Desgraçadamente, é difícil conferir uma significação explícita ao que, no sangue ou nos aspectos reais, é propriamente religioso: nesse ponto se chega plenamente à forma desnuda e ilimitada da heterogeneidade indiferenciada, antes que uma direção ainda difusa fixe um aspecto compreensível (suscetível de ser explicitado).
Não obstante, essa direção existe, mas as modificações de estrutura que introduz dão lugar, em todo caso, a uma projeção livre de formas afetivas gerais, tais como a angústia ou os atrativos do sagrado. Por outro lado, o que se transmite imediatamente não são as modificações de estrutura, pelo contato físico na herança, ou pelos ritos nas coroações, mas antes uma espécie de heterogeneidade fundamental.
A significação (implícita) do caráter real puramente religioso só pode alcançar-se na medida em que apareça sua comunidade de origem e de estrutura com a natureza divina. Sem que seja possível, numa exposição rápida, esclarecer o conjunto de movimentos afetivos a que deve referir-se a fundação de autoridades míticas (que culminam na posição última de uma autoridade suprema fictícia), uma simples aproximação já possui em si mesma um valor significativo suficiente. A comunidade de estrutura de ambas as formações correspondem alguns fatos inequívocos (identificações com o deus, genealogias míticas, culto imperial romano ou xintoísta, teoria cristã do direito divino). O rei, em seu complexo, é considerado, sob uma ou outra forma, como a emanação da natureza divina, com tudo o que traz consigo o princípio da emanação, em matéria de identidade, quando se trata de heterogêneos.
As notáveis modificações de estrutura que caracterizam a evolução da representação do divino - a partir da violência livre e irresponsável - não fazem mais do que expressar claramente as características da formação da natureza real.
Num e noutro caso, a posição da soberania dirige a alteração da estrutura heterogênea. Em ambos os casos, também, assistimos a uma concentração dos atributos e das forças: mas no que diz respeito a Deus, como as forças que representa estão compostas apenas numa existência fictícia (sem a limitação vinculada à necessidade de realizar) tornou-se possível alcançar algumas formas mais perfeitas, alguns esquemas puramente lógicos.
O Ser Supremo dos teólogos e dos filósofos representa a intromissão mais profunda da estrutura própria da homegeneidade na existência heterogênea.
Assim, pois, Deus encarna em seu aspecto teológico a forma soberana por excelência. Contudo, uma contra partida dessa possibilidade de perfeição resulta do fato de que a existência divina tem um caráter fictício, e sua natureza heterogênea, ao não possuir o valor limitativo da realidade, pode ser eludida em uma concepção filosófica (reduzida a uma afirmação formal vivida de maneira absoluta).
Na ordem da especulação intelectual livre, é possível substituir Deus como existência e como poder supremo pela idéia, embora isso implique, em certa medida, na revelação de uma heterogeneidade relativa da idéia (tal como ocorreu quando Hegel colocou a Idéia acima do simples dever ser). Essa exibição de fantasmas, aparentemente anacrônicos, poderia parecer inútil se, diante de nossos próprios olhos, o fascismo não houvesse recolhido e reconstituído, dos pés à cabeça - partindo, por assim dizer, do vazio - o processo de fundação do poder que acabamos de descrever.


Georges Bataille (1897-1962) Nasceu em 1897. Ingressou na Ecole de Chartes, foi bibliotecário na Biblioteca Municipal de Paris e participou do movimento surrealista, rompendo posteriormente com Breton, por motivos políticos. Colaborou em revistas filosóficas e políticas e fundou a revista "Critique". Muito influenciado por Nietzche e os autores marxistas de sua época, deixou uma obra tão mística como revolucionária, tão original como sugestiva. Seus inéditos, mais copiosos do que a obra publicada, estão em período de recopilação. A edição definitiva de sua obra, a cargo de Michel Foucault, consta já de seis volumes. O texto que hoje publicamos é do primeiro volume das "Oeuvres Complètes", ed. Gallimard.


© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.