BACON E OS ÍDOLOS

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 25 de janeiro de 1978

Quatro são as espécies de ídolos que bloqueiam a inteligência humana. Para melhor entendimento, designei-os com certos nomes: os da primeira espécie são ídolos da tribo; da segunda espécie, os ídolos da caverna; da terceira espécie, os ídolos do foro; da quarta, os ídolos do teatro.
A formação de noções e princípios por meio da verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio adequado para afastar e destruir os ídolos. É, porém, de grande utilidade explicar em que consistem os ídolos. Pois a teoria dos ídolos guarda, com respeito à interpretação da natureza, a mesma relação que a teoria dos elenco sofísticos com a dialética corrente.
Os ídolos da tribo se plantam na índole da própria natureza humana na mesma tribo ou espécie humana. Porque é sem razão que se afirma que o sentimento humano é a medida das coisas. Muito ao contrário: todas as percepções, tanto dos sentidos como da inteligência, guardam mais analogia com o homem do que com o universo. O entendimento humano é uma espécie de espelho que não reflete de igual maneira os raios das coisas. Sua natureza o confunde com as coisas, e deste modo as deforma e corrompe.
Os ídolos da caverna são os ídolos próprios do homem considerado como indivíduo, porque cada homem traz consigo, além dos erros que afetam a natureza humana em geral, uma caverna ou gruta particular, que desvia ou adultera a luz da natureza: tanto pela índole própria e singular de cada um, como por sua educação e convívio com os outros, tanto pela leitura dos livros e a autoridade das pessoas com que cada um trata e a que admira, como, enfim, pela diferença das impressões, que podem verificar-se num espírito preocupado e ressentido, ou num espírito sereno e tranquilo. De modo que, manifestamente, o espírito humano, tal como se acha constituído em cada homem, é uma coisa variável, profundamente alterada e, até certo ponto, aleatória. Por isso, bem disse Heráclito que os homens buscam a ciência no pequeno mundo, e não no grande, o universal.
Há também ídolos procedentes, em certo modo, da reunião e aliança recíproca dos indivíduos pertencentes à espécie humana, aos quais chamaria ídolos do foro, porque derivam do comércio e da associação humana. Os homens, com efeito, se associam por meio da linguagem, mas as palavras se empregam com o sentido que têm na boca do povo. Por conseguinte, o emprego indevido e inadequado das palavras estabelece estranhas dificuldades ao estabelecimento humano. Nem as definições nem as explicações com que os homens doutos costumam proteger-se e defender-se em alguns assuntos conseguem, de qualquer forma, restituir a coisa à sua verdadeira situação. Pois as palavras pressionam, sem dúvida, o entendimento, e perturbam tudo, arrastando os homens a inumeráveis controvérsias e comentários sem sentido.
Existem, finalmente, ídolos que se insinuam no ânimo dos homens através dos dogmas dos sistemas filosóficos e, inclusive, dos piores métodos da demonstração. É o que chamam de ídolos do teatro. Pois, quantas forem as filosofias inventadas e admitidas, tantas serão, em nosso entender, as fábulas criadas e representadas, que reproduzem a figuração de mundos fictícios e teatrais.
Não falamos apenas da filosofia atual ou das filosofias e seitas antigas. Há sempre margem para imaginar e construir muitas outras semelhantes; as causas de erros até diversos entre si são quase as mesmas. Também não nos referimos somente à filosofia em geral, mas também a muitos princípios e axiomas das ciências, que acabaram se tornando vigentes graças à tradição, à credulidade e à irreflexão. Todavia, com relação a cada uma dessas espécies de ídolos, falaremos com mais detalhes e clareza, para alertar o entendimento humano.
Os ídolos do foro são os mais perigosos. Insinuam-se no entendimento através da linguagem. Os homens, com efeito, crêem que sua razão governa as palavras. Mas acontece também que as palavras projetam sua força sobre o entendimento, o que converte a filosofia e as ciências numa coisa sofística e inútil. As palavras, quase sempre revestidas do sentido que lhes dá o povo, recortam as coisas pelas linhas de percepção mais acessíveis à inteligência vulgar. Pois bem: quando uma inteligência dotada de maior perspicácia, ou uma observação mais diligente quer transformar essas linhas para que coincidam melhor com a natureza das coisas, as palavras o impedem. Ai está exatamente a raiz das grandes e solenes disputas dos homens doutos, que degeneram em discussões sobre o sentido das palavras. Seria, assim, mais pudente começar seguindo o uso e a prudência dos matemáticos, colocando as coisas em ordem, por meio de uma definição.


Francis Bacon (1561-1626) é considerado o pai da filosofia moderna, embora esta, na verdade, só se tenha realmente incorporado em sua plenitude a partir de Descartes. Mas Bacon significa, na história do pensamento, a culminação da Renascença, entendendo-se por esse admirável período a época germinal e
titubeante que se estende entre a última fase da escolástica medieval e o racionalismo do século XVII, entre Ockan e o pensamento cartesiano. Educado no Trinity College, de Cambridge, ali se iniciou seu antiaristotelismo e o plano de sua reforma filosófica. Foi membro do Parlamento e lorde chanceler da Inglaterra, tendo o título de barão de Verulam. Caído em desgraça política, foi acusado de corrupção, destituído e afastado da política até sua morte. O texto que publicamos é extraído de sua obra mais importante, o "Novum Organum".


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