ARISTÓTELES
E A CIDADE
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1978.
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Uma
vez que toda cidade (polis) é uma sociedade, e toda sociedade
está constituída tendo em vista algum bem (pois todas as coisas
que fazemos têm sempre algum bem em vista), é evidente que todas
as sociedades tendem a um bem e, principalmente, ao bem supremo.
O bem supremo, o que abrange todos os outros, é a chamada cidade,
a sociedade política.
Pois bem: enganam-se os que pensam que uma pessoa apta a exercer
a administração da cidade também poderá ser líder, governo e senhor,
até mesmo em sua própria casa, considerando que essas funções
diferem em relação ao maior ou menor número de subordinados, embora
não refiram formalmente. O que governa a uns poucos é o que governa
sua gente, é um chefe de família, e o que governa a muitos é o
político ou rei.
O governante, em geral, portanto, é político ou rei. Quando governa
por sua própria conta é rei. Quando, de acordo com os princípios
da ciência política, exerce o governo e é, ao mesmo tempo, governado
por compromissos, então, chama-se político...
A primeira sociedade constituída é a família, e com razão dizia
o poeta Hesíodo:
"Primeiro, casa, mulher e boi de carro".
Porque o boi é o criado do pobre. Assim, pois, a sociedade estabelecida
segundo a natureza para atender as necessidades quotidianas, é
a família, a cujos membros Carondas chama de "companheiros", e
Epimênides, de Creta, de "comensais" ("companheiros" são os que
comem o mesmo pão, e "comensais" os que se sentam à mesa. N.T.).
A primeira sociedade composta de várias famílias, para a satisfação
de necessidade que vão além das coisas quotidianas, é a aldeia.
A aldeia parece ser uma colônia da família, inteiramente conforme
às leis da natureza, e seus membros se chamam "parentes", filhos
e netos. Esta é a razão pela qual as cidades eram a princípio
governadas pelos reis, como ainda acontece com as tribos...
Mas a sociedade perfeita, composta de várias aldeias, é a cidade,
que alcançou, por assim dizer, o mais alto grau de suficiência,
originando-se, sem dúvida, em razão da própria vida, mas estruturando-se
e existindo em função do bem-estar.
Por isso, se as primeiras sociedades se constituíram por lei da
natureza, a cidade também é uma decorrência dela. Pois a natureza
é uma decorrência dela. Pois a natureza é um fim. E é um fim,
porque a natureza de cada coisa é atender a um fim, e isto vale
para um homem, para um boi ou para uma casa. De tudo isso, resulta
claro que a cidade existe por lei da natureza e que o homem é,
por sua natureza, um animal político. E o que vive sem cidade
(o apolis) por natureza, e não por vicissitude, ou é um ser inferior
ou superior ao homem, como aqueles a que se refere Homero, "sem
lei, nem grei, nem lar".
A razão pela qual o homem é um animal político em grau mais elevado
do que as abelhas ou qualquer outro animal, é clara: a natureza,
como dissemos, não faz nada em vão, e o homem é o único animal
que tem palavra (logos); a voz (fone) expressa a dor e o
prazer, e os animais também possuem, já que sua natureza vai até
aí a possibilidade de sentir dor e o prazer e expressá-los
entre si.
A palavra, porém, está destinada a manifestar o útil e o nocivo
e, em consequência, o justo e o injusto. E esta é a característica
do homem diante dos demais animais: possuir, só ele, o
sentido do bem e do mal, do justo e do injusto, etc. É a comunidade
dessas coisas que faz a família e a cidade.
A cidade, portanto, é anterior, por natureza, à família e a cada
um de nós, já que o todo é, necessariamente, anterior à parte.
Com efeito, destruído o todo, não haverá pé nem mão, a não ser
de um modo equívoco, como se chamássemos "mão" a uma espécie de
mão de pedra, porque, ao morrer, a mão acaba tornando-se um mineral...
é claro, pois, que a cidade é, por sua natureza, anterior ao indivíduo.
Com efeito, se cada um não se basta a si mesmo separadamente,
estará na mesma situação das demais partes com referência ao todo.
E o que não pode viver em sociedade, e não necessita de nada para
sua própria suficiência, não fazendo parte da cidade, ou é uma
fera ou é um deus. Desse modo, existe em todos uma tendência natural
a essa associação, e o que primeiro a estabeleceu trouxe à humanidade
o maior dos bens. Porque, da mesma forma que o homem aperfeiçoado
é o mais excelente dos animais, o que está afastado da lei e da
justiça é o pior de todos. E a mais perigosa das injustiças é
aquela que dispõe de armas.
O homem nasce dotado pela natureza das armas e da inteligência
e das qualidades morais que pode usar para as coisas mais diversas.
Por isso, quando não tem virtude, é o mais ímpio e o mais selvagem
dos animais.
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Aristóteles
(384-322 A.C) chamado o Estagirita, do nome de sua cidade natal,
figura, ao lado de Platão, como um momento estelar da filosofia
grega. Frequentou a academia platônica, mas depois da morte do mestre
retirou-se de Atenas e viveu algum tempo em Lesbos, estudando assuntos
de biologia. Filipe da Macedônia o chamou para preceptor de Alexandre,
a quem educou dos 13 aos 20 anos. Voltou a Atenas e, perto de um
bosque consagrado a Apolo, fundou sua escola de filosofia, a que
chamou Liceu, em homenagem a Apolo Lício. Sua obra abrange todos
os ramos do conhecimento humano de sua época, e sobre seu pensamento
constituiu Santo Tomás a sabedoria católica do mundo moderno. O
texto que hoje publicamos é tirado de "Política".
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