ABENJALDUN E A LEI

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 24 de janeiro de 1978.


A exceção de um pequeno número de pessoas que se constituem em autoridade, ninguém consegue ser dono de suas próprias ações na sociedade mal-organizada. Quase sempre se fica submetido a uma autoridade superior —o que traz consigo, necessariamente, resultados negativos.
Se a autoridade se distingue por sua suavidade e justiça, se não exerce exageradamente a violência e a repressão, os que lhe estão submetidos desfrutam de um regular espírito de independência. Acreditando-se livres de todo controle, mostram uma presunção que acaba por tornar-se uma segunda natureza. Mas se a autoridade, ao contrário, em vez de apoiar-se numa lei, se apoia na força e na violência, os súditos perdem sua energia e seu espírito de resistência. Porque a opressão embota as almas, como se demonstrará mais adiante.
Omar, o segundo califa, proibiu a Saad que se conduzisse com violências em relação aos seus subordinados, e isto numa ocasião especialíssima: na batalha do Cadcira, um de seus oficiais, chamado Zehra ibn Haouwia, começou a perseguir a El-Djalenos, a quem matou, tomando-lhe todos os seus bens. Saad o censurou por ter perseguido um inimigo sem autorização, e confiscou-lhe o botim que, segundo diz, valia setenta e cinco mil peças de ouro. Escreveu imediatamente a Omar para justificar sua conduta, e recebeu uma contestação concebida nos seguintes termos:
— "Ousaste tratar desse modo a um homem como Zehra, que já enfrentou os perigos da guerra, enquanto tu ainda precisa fazer muita coisa para afirmar teu próprio valor. Devolve-lhe seus despojos."
Sob um governo que se mantém sob a severidade ou sob o arbítrio de um poder não regulado pela lei, as pessoas perdem seus direitos. Castigadas sem poder opor resistência, caem num estado de humilhação que destrói suas energias em todos os sentidos. Se um governante trata da reforma dos costumes e da instrução do povo, a conduta dos cidadãos é regulada desde a infância, e a proteção desse regulamento —a lei— aprimora o seu caráter.
Um povo educado desde a juventude no temor e na submissão não aprende a orgulhar-se de sua independência. Entre os árabes meio selvagens que se entregam à vida nômade, mas que não são oprimidos por tiranias, encontramos, às vezes, um grau de bravura superior àquele de que são capazes os homens civilizados.
Os povos que desde sua primeira juventude viveram sob o controle absoluto de uma autoridade que se substitui à lei no ensino das artes, das ciências, da religião e dos costumes, perdem seu caráter e não sabem resistir à opressão. Veja-se, por exemplo, a situação dos jovens que estudam o Corão, e que, querendo assistir às lições dadas por mestres competentes e sábios professores, frequentam assembléias em que tudo inspira submissão e disciplina. Se não viverem como os companheiros do Profeta, protegidos pelas prescrições da religião e da lei, não saberão conservar o vigor de sua alma e de seu caráter e aquele sentimento de dignidade humana que distingue os homens que vivem sob o império do direito.
O califa Omar dizia:
— "Aquele que não é corrigido pela lei, nem Deus o corrigirá".
Desejava o sábio califa que cada um tivesse por mestre o próprio coração, fonte da lei natural, na qual se hão de fundar as leis da sociedade. Pois é fundado neste princípio que o legislador se torna capaz de estabelecer o que melhor convém à felicidade das pessoas. Com o progressivo debilitamento do sentimento religioso, a lei tornou-se uma necessidade para a convivência entre os homens. A ausência da lei, como poder superior sobre os príncipes, só era possível e tolerável no tempo em que os homens viviam todos subordinados à lei divina, atentos à vontade de Deus. A criação das cidades desligou muitos homens de seu vínculo com Deus, e assim a lei se tornou uma necessidade. E isto, por dois motivos: para que não se instale entre os homens a desunião destruidora e para que não corram o risco de se verem escravizados ao jugo de um tirano. Quando um povo é governado por um déspota, acaba perdendo todo o seu sentimento de honra, toda a sua dignidade. Porque subjugar um ser humano é uma indignidade. A pessoa vencida sempre é induzida a imitar o vencedor, porque julga que, se ele a venceu, é porque era superior. Tinha qualidades melhores. Então, o vencido procura adquirir, imitar as qualidades do vencedor. Um povo subjugado começa a adorar os que o subjugam e a copiar seus vícios, como se fossem virtudes.
Os muçulmanos estão se corrompendo na Espanha em nossos dias. Na Andaluzia, em razão de sua vizinhança com as Galícias, estão imitando os povos dessa região, adotando seus usos e até sua maneira de vestir. Os povos dominados por prepotentes, violentos e desrespeitadores das leis, se depravam, a ponto de todos os cidadãos se tornarem também, com o tempo, prepotentes, violentos, covardes e desrespeitadores dos direitos de seus semelhantes.
O melhor imperador é a lei. E o melhor povo é o que vive sob o império da lei.


Abenjaldun (1332-1406), é uma das figura mais originais e estranhas da filosofia árabe do século 14. Nasceu em Túnis e morreu no Cairo, tendo viajado muito, vivendo algum tempo na Espanha, onde floresceram alguns extraordinários sábios e filósofos árabes e judeus. Ortega y Gasset considera que sua obra é uma da mais interessantes experiências de fundação da Filosofia da História. Deixou escrita uma História Universal, de cujos "Prolegômenos" é extraído o texto que publicamos, e que Julian Marias considera um importante capítulo de filosofia da História. Sua obra foi publicada por Quatremère em "Notices Extraits" - Vol.16-18, nos manuscritos traduzidos por Slane. Ainda sobre Abenjaldun, recomenda Julian Marias o estudo de Ortega em "El Espectador", VIII.

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