NO BOM RETIRO, EM 1910, COMEÇA ESTA HISTÓRIA

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 5 de dezembro de 1976

Neste texto foi mantida a grafia original
Ainda há quem afirme que o Sport Clube Corinthians Paulista foi fundado por um grupo de ingleses que trabalhava na extinta Companhia de Estrada de Ferro São Paulo Railway. Não é esta a verdade da origem do Coríntians. Este clube foi fundado por funcionários daquela companhia, mas todos eram brasileiros - mais precisamente paulistas do Bom Retiro.
O nome inglês foi adotado apenas porque naquela época era comum dar-se o nome de clubes estrangeiros aos times que se formavam aqui em São Paulo. Exemplos típicos são o South Africa e o Argentino, equipes que por muitos anos dominaram o futebol da várzea paulista.
Um terreno amplo, seco, e quase nivelado, na Rua José Paulino, chamou a atenção de um grupo de moradores do Bom Retiro e funcionários da São Paulo Railway. Todos os dias aquele "terreno magnífico" despertava nos desportistas passantes uma vontade enorme de transformá-lo num campo de futebol.
Era 31 de agosto de 1910 quando o Corinthians Team, de Londres, enfrentava a Associação Atlética das Palmeiras, no campo do velódromo. O grupo, formado por Joaquim Ambrósio, Carlos Silva, Rafael Perrone, Antônio Pereira (do grupo, este foi o último a falecer) e Anselmo Correia, foi assistir ao jogo que terminou com a vitória do time londrino, por 2 a 0.
Após a partida, todos voltaram para casa. Não faltaram as discussões comuns sobre um lance ou ouro. Em meio àquela conversa, o terreno baldio da Rua José Paulino fez com que o grupo parasse e o contemplasse. No pensamento de cada um aflorava uma grande idéia: a fundação de um clube. E depois de várias trocas de olhares, um ponto em comum levou aqueles desportistas ao mesmo sonho.
O grupo, depois de uma rápida conversa, estabeleceu que no dia seguinte - 1° de setembro - deveria realizar uma reunião com a participação de alguns convidados (demais moradores do bairro). Rafael Perrone lembrou que a chuva poderia atrapalhar a reunião, já que o grupo e os convidados reunir-se-iam em plena via pública, na rua José Paulino, em frente ao terreno. Não havia telhado para cobrir as palavras daqueles entusiastas idealizadores. Mas não choveu nesse dia. Tudo correu bem.
Sob a luz de um lampião, às oito e meia da noite, todos já estavam discutindo o futuro do clube sonhado. Primeiro, formaram a diretoria para, quatro dias depois, os escolhidos tomarem posse na reunião que se realizou na residência de Miguel Bataglia, o presidente eleito.
Dia 5 de setembro, às 20 horas em ponto, a sessão foi aberta e começaram os debates. Joaquim Ambrósio foi o primeiro a falar, sugerindo a denominação de Corinthians em homenagem à equipe inglesa que realizara grandes exibições há alguns dias. Todos concordaram e ficaram de pé, em sinal de aprovação.
Miguel Bataglia levantou-se e, com sua voz rouca pela emoção de declarar aprovado o nome do clube, disse: "Está adotado o nome de Sport Club Corinthians Paulista para o nosso grêmio". Agora já eram precisamente 20h07m.
Como não havia recursos para se levar à frente o "grande objetivo", já que as dificuldades surgiram a cada instante, uma campanha foi iniciada para angariar sócios. Muitas portas foram batidas contra os convites para que os moradores participassem do quadro associativo. Mas o Corinthians foi crescendo. O número de adeptos era maior que o de não-adeptos.

A bola

Para se comprar a primeira bola, uma lista percorreu por todo o bairro, pois era necessário 6 mil-réis para se adquirir o principal instrumento do time. E muitos foram os que se privaram de um cafezinho, de um refresco, de uma passagem de bonde, para ajudar o clube. Mas só poderia contribuir quem fosse sócio. Era uma exigência dos diretores.
De níquel em níquel foi-se juntando o dinheiro. Os tostões e os duzentos-réis escreviam a sorte do clube que muitos anos depois não necessitaria de listas para comprar a bola, mas de sua direção para vencer os insucessos que há alguns anos vem acompanhando-o.
Sobre o balcão de uma lojinha na Rua São Caetano, os diretores derramaram os tostões, duzentos-réis e até vinténs que completavam o preço daquela bola de capão, oficial. A bola foi acariciada. Todos queriam passar a mão sobre aquele instrumento que rolaria pelos campos da várzea paulista, desfilando o sacrifício que levava um grupo de idealistas a transformar o futebol paulista. A acabar com seu elitismo, como realmente foi o início do futebol em São Paulo. Esse esporte era reservado apenas para um determinado grupo social. Não havia popularidade, mas uma cortina que dividia os ricos e os estudantes dos pobres e dos analfabetos.

O primeiro jogo

Era domingo, 14 de setembro de 1910, quando o Corinthians entrou em campo pela primeira vez, para enfrentar o União-Lapa, uma das mais respeitáveis equipes do futebol varzeano. Mas o adversário venceu por 1 a 0, resultado que não desmerecia o futebol apresentado pelos primários corintianos.
Equipes mais tradicionais ficaram pasmadas com a derrota mínima do Coríntians, pois o União era considerado um quadro de respeito. Por isso todos julgaram uma vitória aquela derrota mínima do Coríntians.
Não desanimaram, porém, e convidaram a Associação Atlética Lapa, outro quadro de respeito no futebol de várzea, para a segunda partida. Houve um certo temor porque essa equipe era formada apenas por ingleses os mestres do futebol na época. Mas não se intimidaram. Partiram para o campo adversário, mas uma vez, para defender aquele que era conhecido como "o pequeno do Bom Retiro".
Nesse dia, o bairro foi todo festa. O Coríntians derrotou a Atlética Lapa por goleada: 5 a 0. Começou aqui a se enraizar a fibra corintiana. O destemor já fazia parte da vida esportiva do Coríntians, o time que despertava curiosidade e simpatia aos que acorriam à várzea para assistir à prática de bom futebol.
Até então o Coríntians não possuía uniforme. Estava jogando com as camisas comuns, brancas. Camisas de trabalho diário. Daí, compraram-se novo uniforme: camisas creme, com gola, punho e barras pretas. Com o decorrer das lavagens, o creme desbotou e as camisas ficaram brancas. Como não havia disponibilidade para a compra de mais um uniforme, o branco juntou-se ao preto dos calções e assim ficou determinado as cores do time.
Na época quem dominava o futebol da várzea - sobretudo no Carmo eram os "Alianças", os "Parnaíbas", os "Argentinos", os "Domitilas", clubes que detinham muita fama. Mas o Coríntians já despontava como "o galo brigador do Bom Retiro".
O Coríntians foi ganhando a simpatia popular através de suas humildes exigências: na ficha de sindicância -para o quadro associativo era mais credenciado aquele que se apresentasse como operário comum, trabalhador braçal, enfim, todos os interessados, pois não havia preconceito de cor nem privilégios para esse ou aquele.

O primeiro titulo

O Coríntians conquistou seu primeiro titulo no futebol, em 1914, quando venceu o campeonato desse ano, apesar da inexperiência de seus jogadores, pois o time ainda disputava jogos na várzea e não tinha condições de enfrentar equipes de renome do certame paulista daquela época.
Mas, com garra, brio e otimismo, o time conquistou uma façanha que entrou para a história do futebol paulista, e para os arquivos de glórias do clube: foi a primeira equipe a sagrar-se campeão paulista sem ter perdido um único ponto. Durante os 15 campeonatos disputados, nos 13 anos do futebol de São Paulo, nenhum outro clube conquistara semelhante título.
O quadro que defendeu o Coríntians e conquistou o primeiro troféu de um campeonato formou com: Sebastião, Fulvio e Casimiro II, Police, Bianco e César, Américo, Peres, Amilcar, Aparício e Neco. O goleiro Aristides Oliveira também participou de alguns jogos.

O primeiro campo

Com o grande nome que possuía, o Coríntians não tinha um campo próprio para receber os adversários. Mas, por interferência do dr. Alcântara Machado, em 1918, a Municipalidade arrendou ao clube um terreno na chácara do Floresta, na Ponte Grande.
Foi necessário, porém, que trabalhadores capinassem o terreno para lhe dar o aspecto de campo de futebol. E todo início de noite, sábados, domingos e feriados, lá estavam as foices, os martelos, as pás, enfim, todos os instrumentos essenciais ao serviço.
O mais importante, contudo, era o suor que caía sobre o corpo de quem tentava dar ao Coríntians seu próprio campo. E ninguém recebeu nenhuma recompensa financeira pelo trabalho, pois quem executava aquele serviço eram os dirigentes, os associados, e os jogadores do clube.
10 anos depois o Coríntians inaugurava o Parque São Jorge, adquirido junto a dois sírios, torcedores do Sport Club Sírio, que cediam seu campo para esse clube treinar e receber os adversários. Muitos desportistas, aliás, noticiam - por falta de conhecimento - que o Parque São Jorge pertenceu àquele clube.
Na inauguração do novo campo - agora um estádio - o América do Rio foi convidado para ali realizar a primeira disputa. O jogo terminou empatado em 2 a 2, mas o primeiro goleador do Parque São Jorge foi o ponteiro-esquerdo Dé Maria, do Coríntians, que abriu o marcador quando ainda não havia decorrido um minuto de partida.
A equipe que disputou esse jogo, e que mais tarde seria denominada de esquadrão mosqueteiro, por causa de seu famoso trio final, marcou início de uma grande época na história do Coríntians: Tuffy, Grané e Del Debbio; Nerino, Soarez e Munhoz; Aparício, Neco, Gambinha, Rato e De Maria.

Um título diferente

Vencer o Campeonato Paulista de 1922 era a ambição de todos os clubes que disputavam esse torneio, pois ao campeão seria concedido o título de Campeão do Centenário. Nesse ano, o Brasil comemorava os 100 anos de sua emancipação política, daí determinar-se ao ganhador aquela denominação, válida por um século.
O Coríntians sagrou-se campeão nesse ano e conquistou o sonhado título de Campeão do Centenário. Como no Rio de Janeiro havia outro campeonato com o mesmo título, impuseram-se um confronto entre os dois. E o América veio a São Paulo, para jogar contra o Coríntians no campo do Floresta. O clube paulista venceu a partida por 2 a 0 e levou para o seu arquivo o título de "Campeão do Brasil, no Centenário do Brasil".
A equipe campeã do Centenário da Independência do Brasil formou com: Mário, Rafael e Del Debbio; Gelindo, Amilcar e Ciasca; Peres, Neco, Gambarotta, Tatu e Rodrigues.

Ultimo título

Depois de correr pelos muitos campos e futebol e ter enfrentado os mais diversos adversários, o Coríntians tornou-se um dos grandes nomes dentro do futebol mundial. Em 1954 São Paulo comemorava o IV Centenário de sua fundação. E, tal como em 1922, o clube campeão desse ano receberia a denominação de "Campeão do IV Centenário da Fundação de São Paulo".
O Coríntians já havia-se sagrado bicampeão do Torneio Rio-São Paulo. Mas não se descuidou porque tinha um outro objetivo: conquistar o título do Campeonato Paulista. O mesmo feito de 1922 veio a se repetir em 1954, pois o Coríntians conquistou o título que lhe deu não somente aquela denominação comemorativa, como também o título de "Campeão dos Centenários".
Os jogadores que disputaram esse campeonato hoje estão imortalizados, já que a sorte do Coríntians fechou sua sala de troféus para a entrada de uma conquista que o time busca há 22 anos e - não se sabe explicar o motivo - não consegue.
Nesse ano, defenderam o Coríntians: Gilmar (Cabeção), Honero e Alan (Olavo); Idário, Goiano (Clóvis) e Roberto; Cláudio, Luisinho, Baltazar (Paulo e Nardo), Rafael (Carbone e Gatão) e Simão (Nonô).
Anteriormente à conquista do último título o Coríntians era considerado um clube predestinado às grandes tradições históricas: em 22 conquistou o título de Campeão do Centenário da Independência do Brasil; em 37, o título correspondente ao ano da primeira Constituição do Brasil após inúmeras lutas do povo brasileiro, em 41 sagrou-se campeão quando os desportos no Brasil foram oficializados, extinguindo-se as Ligas e instituindo-se as Federações; em 54 a cidade de São Paulo conheceu seu campeão no IV Centenário.

O primeiro ídolo

Raça, espírito de luta, tiro seco, certeiro e à meia-altura, suor, sangue, lagrima, era Neco em campo, vestido com os companheiros. Neco jamais admitia ver a bandeira do Coríntians mesclada com uma derrota.
Neco foi sem dúvida o primeiro ídolo do Coríntians. O líder que não se conformava em ver sua equipe derrotada em campo. Um temperamental capaz de brigar até mesmo com os companheiros. Neco jamais admitia ver a bandeira do Coríntians mesclada com uma derrota. Qualquer minuto antes do tempo final, para Neco era minuto de jogo que poderia levar o Coríntians a goleada, á virada no marcador, ou mesmo à igualdade.
Inúmeros foram os clubes que tentaram levar o futebol de Neco. Mas o maior ídolo do Coríntians se negou a deixar o clube para o qual devotava um grande amor. Neco não deixava o Coríntians por nada: "Se o fizesse, estaria vendendo o meu amor. Que homem pode fazer isso"? - perguntava Manuel Nunes, o Grande Neco.
Foram 18 anos de dedicação ao Coríntians desde um dia em 1913, quando chegou para treinar, pedindo para chutar aquela bola de capão, oficial, quando o campo de seu futuro time ainda se localizava na Rua José Paulino. Um dia Neco teve que parar. Seu último chute foi no campo do Parque São Jorge, um dia em 1930.
Neco deve ter olhado para trás e imaginado os chutes, os gols marcados, a briga pela posse da bola, os gritos perdidos no ar, o suor derramado, os títulos que conquistou. Neco disse adeus às 11 camisas brancas. Ele saiu de campo pensando que tudo teria se acabado ali. Mas Neco não saiu. Ele deixou apenas seu lugar para que outros pudessem honrar aquela camisa que ele tanto amou. Ele deixou o campo de jogo e hoje está nos jardins do Parque São Jorge, olhando para o grande portão de entrada, em estátua de bronze, que foi a primeira dedicada a um jogador de futebol. Neco ainda está no Coríntians. Ele ficou para sempre.



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