O MISTERIOSO ENCANTO DE UM CLUBE


Publicado na Folha de S.Paulo, Domingo, 9 de outubro de 1977

Emir M. Nogueira

No último jogo Coríntians e São Paulo, a proporção de torcedores presentes ao Morumbi, segundo observadores isentos, era de 9 a 1 para o Coríntians. Lembre-se que se tratava de jogo decisivo para o São Paulo (bastava-lhe o empate para ir à final contra a Ponte Preta), o que afasta a hipótese de desinteresse dos seus torcedores. Também da última vez que o Coríntians e Palmeiras se enfrentaram, algumas semanas atrás, a torcida corintiana preponderou em bases que, sem exagero, deveriam estar mais ou menos 8 a 2.
Quem acompanha o futebol paulista nos dois últimos decênios não pode deixar de tirar senão uma conclusão, aliás óbvia: a torcida corintiana vem aumentando e decrescendo a dos demais clubes paulistanos. Hoje, parece, a segunda torcida do Estado é a do Santos, formada por um imenso contingente de admiradores que vêm da era Pelé.
A crônica esportiva veterana cunhou a expressão "trio de ferro", para designar os grandes clubes da Capital (Coríntians, Palmeiras e São Paulo), desse rol excluindo a Portuguesa, que só se tornou "grande" - no sentindo de time forte, em condições de disputar o título - de uns poucos anos para cá. Aquele "trio" compreendia não apenas times poderosos, mas de grande torcida. Não obstante o Coríntians tenha sido sempre o clube da massa, Palmeiras e São Paulo não lhe ficavam muito atrás, em número de simpatizantes. Convém lembrar que no jargão futebolístico o São Paulo já foi (e às vezes ainda é) chamado de "o mais querido" não se sabe bem por quê.
A tendência atual em São Paulo parece ser, inegavelmente, esta: torcida do Coríntians em franca e permanente ascensão; torcida do Palmeiras e do São Paulo em inegável declínio; torcida da Portuguesa estável, mas ameaçada de seguir a mesma trajetória descendente da palmeirense e da são-paulina. A do Santos (que não é clube da Capital) resiste ainda, em função do mito do Pelé, mas não se sabe por quanto tempo. Essas tendências todas podem, evidentemente, modificar-se, se São Paulo, Palmeiras, Portuguesa ou Santos montarem poderosos esquadrões, que arranquem entusiasmo excepcional.
Seria o caso de discutir a razão do fenômeno.
Por que se torce para um clube de futebol? As razões são muitas, quase todas pouco racionais. Uma é o regionalismo: nasci em São Carlos, torço para um time de São Carlos. Outras ligam-se clara ou obscuramente a motivações nacionalistas: os portugueses residentes em São Paulo inclinam-se naturalmente pela Portuguesa. A razão mais próxima da "racional" é a que se fundamenta no poderio técnico de um time: quando o Santos, na era Pelé, era o grande time brasileiro, evidentemente sua torcida cresceu.
O corintianismo escapa a essa análise. Não se torce para o Coríntians por nenhuma das razões acima apontadas, ao menos isoladamente. Não se é corintiano por que se é paulista ou brasileiro (embora durante muito tempo o "brasileirismo" do Coríntians fosse um tema mais ou menos explorado: o "clube mais brasileiro do Brasil", o clube que não contratava jogadores estrangeiros, etc). Evidentemente, o Coríntians também não é clube de colônia, já se tendo perdido no tempo aquela noção de que era o clube de espanhóis. Da mesma forma, não é pelas brilhantes virtudes técnicas de seu quadro de futebol que o Coríntians desperta paixões: em muitas e muitas ocasiões, esse quadro foi perfeitamente medíocre, mas nem assim perdeu o dom de conquistar e manter admiradores.
O corintianismo é eminentemente passional, e nisso reside seu segredo. Especialistas em comportamento das multidões, sociólogos e políticos só agora começaram a interessar-se por esse verdadeiro fenômeno paulista, uma instituição que pode ser considerada a própria imagem do fracasso (tanto que ficou na "fila" 22 anos, sem conseguir ganhar um campeonato) - e no entanto cada vez mais prestigiada e amada pelo povo. A parte discutíveis interpretações sociológicas, o charme corintiano residiu precisamente nisso: numa tenaz luta contra as vicissitudes (representadas pelos campeonatos perdidos) e no teor altamente passional de que se reveste cada partida que o Coríntians disputa. Os times - digamos - comuns, perdem as partidas que devem perder e ganham as que devem ganhar. Com o Coríntians, como regra, nestas duas décadas, sucedeu o oposto: ganhou quando se esperava que perdesse, perdeu quando tinha tudo para ganhar. Nessa imprevisibilidade cada partida do Coríntians, como se sabe, é um drama, tem uma história própria, é que reside o fascínio do time. Não é um time burocrático, como tantos outros. É um sofrido lutador, cujas derrotas, paradoxalmente, em lugar de afastar, conquistam simpatias.
Os times de "colônias" tendem a desaparecer como tais, na medida em que a grande capacidade assimiladora do Brasil vai incorporando o descendente do estrangeiro à comunidade nacional. O filho do português já não tem razão de torcer para a Portuguesa. A atual geração de descendentes de italianos não se sente ligada ao Palmeiras, como seus pais e avós.
Na atual fase do futebol brasileiro, por outro lado, houve uma espécie de nivelamento dos times (por baixo, talvez), de maneira que não há nenhum que sobressaia, por suas qualidade técnicas, em relação aos demais. Assim, também está desaparecendo aquele tipo de torcedor que o São Paulo teve em épocas passadas - ai, o tempo do Leônidas!
Restam as influências de família - a criança que torce para este ou aquele clube, por causa do pai - e a torcida eminentemente passional. O Coríntians, leva a palma a todos os concorrentes, neste último terreno. A seu misterioso encanto não conseguem resistir as novas gerações que começaram a interessar-se pelo futebol. É por isso que pôde dar-se o luxo de passar 22 anos sem ganhar títulos - o título era o que menos importava.
Vamos ver se, ganhando agora - enfim, de vez em quando é bom ganhar - o encanto não desaparecerá.
 

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