SÓCRATES DÁ ADEUS AOS BRASILEIROS COM BELA EXIBIÇÃO

Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 4 de junho de 1984

"Acho que o povo sofrido daqui do sertão gostou. Eu gostei." Sócrates tinha bons motivos para estar feliz ontem, em Juazeiro do Norte, no Ceará, após o amistoso contra o Vasco: em sua última partida no Brasil com a camisa do Corinthians, fez uma bela exibição, ajudando o time a vencer por 3 a 0 e participando ativamente de dois gols. No segundo gol de sua equipe, aos 25 minutos da etapa complementar, o Doutor driblou o goleiro Acácio e rolou a bola para o jovem Galo marcar.
Antes de se mudar para Florença, onde vai defender a Fiorentina, o jogador, principal protagonista da implantação da "democracia corintiana" no Parque São Jorge, disputará mais um jogo com a camisa 8 da equipe, no próximo dia 10, na Jamaica.
Como conta o enviado especial Luiz Ricardo Leitão, o fim de semana de Sócrates na terra do Padre Cícero foi alegre, movimentado e emocionante. A torcida fez romaria para recepcioná-lo e vê-lo jogar. Após a partida, no vestiário, sentou-se num banco e cobriu o rosto com as mãos. Depois riu e abraçou todos os companheiros que estavam por perto, numa cena comovente.

O adeus de Sócrates emociona o sertão

Luiz Ricardo Leitão
Enviado especial a Juazeiro do Norte

Quantos corinthianos não desejaram ontem ter nascido romeiros do padre Cícero Romão Batista e aplaudir com fé o doutor Sócrates, ao final da goleada de 3 a 0 no Vasco da Gama? Certamente, uma boa parte da nação que não pôde ir até Juazeiro do Norte, a milhares de quilômetros do Parque São Jorge, no coração do sertão cearense, palco que o acaso destinou para a despedida de gala do Doutor dos gramados brasileiros. Para quem viveu o adeus, valeu: "Foi emocionante para todos nós, que consolidamos uma convivência democrática no Corinthians, com o apoio essencial do Magrão, aplaudi-lo na partida", dizia o diretor de futebol Adilson Monteiro, depois de abraçar Sócrates, que deixou o gramado faltando três minutos para o término do jogo.
Calçando-se no vestiário, o doutor confessava: "Não estou sentindo nada de anormal. Parece até um jogo comum. Preferia que surgisse uma emoção diferente, para sentir como era a coisa". Aos dois minutos, ele driblou Aírton e Daniel Gonzales e a bola sobrou para Dicão, que chutou na trave. Usou seu calcanhar logo depois e foi só, num primeiro tempo apático, onde levou até um lençol do lateral Aírton. Sócrates, que só devia jogar um tempo, reconheceu que não fora bem: "Faltou entrosamento. Eu vou voltar".
No segundo tempo, Hélio Mafia substituiu Ataliba por Galo e orientou o Corinthians para forçar pelo lado direito do Vasco. A tática funcionou: aos 22, Sócrates avançou em cima de Aírton, dividiu com Acácio e a bola sobrou para Biro, que emendou para as redes. Aos 25, Acácio distribuiu mal a bola, Casagrande roubou da zaga e lançou Sócrates. O doutor avançou para a área, driblou o goleiro mas não quis marcar: esperou Acácio voltar para o gol e tocou devagar para Galo, que chutou da pequena área, sem defesa. Aos 28, Dicão completou a goleada, tocando por debaixo das pernas do goleiro vascaíno.
Os três gols em seis minutos, que arrasaram o Vasco, e a atuação magistral no segundo tempo, coordenando todas as jogadas de ataque do Corintians, não tiraram a calma do doutor: "Foi um bom jogo. Acho que o povo sofrido daqui do sertão gostou. Eu também gostei. Senti até uma espécie de relacionamento místico com as pessoas. Quem sabe por conta da formação cultural de minha família, lá de Belém do Pará, onde essas coisas de misticismo também têm muita força".
No vestiário, Sócrates sentou num canto, colocou as mãos na cabeça por alguns segundos e, diante da surpresa dos jogadores pelo seu rápido recolhimento, riu e abraçou os mais próximos. Sua camisa da despedida foi pedida pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Juazeiro do Norte, que pretendem leiloá-la para arrecadar fundos. O jogo do adeus deu um prejuízo de 50 milhões - nas primeiras contas de seu promotor, o advogado José Afonso de Oliveira, que na manhã do domingo contava com um lucro idêntico ao prejuízo.
No próximo dia 10, Sócrates faz seu último jogo pelo Corinthians, contra uma equipe da Jamaica. Hoje, Casagrande reúne-se com a diretoria do Timão para acertar em definitivo sua transferência para a França. Biro-Biro também falou em sair em todas as entrevistas em Juazeiro. Quantos corinthianos não desejam agora ter a fé dos romeiros do Padre Cícero, para trazer de volta seu ídolo à nação?

Bocejos viram aplausos e o Corinthians ganha

O calor era sufocante, o jogo não valia dois pontos e os times estavam desfalcados. Talvez por isso, Corinthians e Vasco foram indolentes no primeiro tempo, chegando a provocar bocejos nos torcedores que abarrotaram as arquibancadas do estádio Romeiro. No segundo, porém, a equipe paulista resolveu recompensar o carinho do povo de Juazeiro do Norte: comandada por Sócrates, impôs seu ritmo e liquidou (3 a 0) o vice-campeão brasileiro.
Aos 3 minutos, Dicão recebeu um passe de Sócrates e chutou despretensiosamente. Mas Acácio falhou e foi salvo pela trave, que devolveu a bola. Na verdade, um dos raros lances emocionantes dos 45 minutos iniciais. O outro aconteceria aos 37, com Vilson Tadei, ontem improvisado na ponta-esquerda, carimbando o travessão de Carlos.
Na fase final, porém, as coisas mudaram: Sócrates retornou com mais vontade e o ataque melhorou com a providencial substituição de Ataliba por Galo, um atacante pouco hábil mas muito valente. O Corinthians até que demorou para desmontar o Vasco. Entretanto, após abrir a contagem (Biro-Biro, aos 22 minutos), chegou aos 3 a 0 (Galo, aos 25, e Dicão, aos 29) cm fantástica facilidade.
Apenas nos últimos 15 minutos a equipe carioca ameaçou o gol de Solito, que havia entrado no lugar de Carlos. Mas o Corinthians contava com as graças de Padre Cícero Romão.

Corinthians 3 x Vasco 0

Corinthians - Carlos (Solito); Ronaldo, Paulo, Juninho e Aílton; Biro-Biro, Luís Fernando e Sócrates (Careca); Ataliba (Galo), Casagrande e Dicão.
Vasco - Acácio; Edevaldo, Ivan, Daniel Gonzales e Aírton; Oliveira, Geovani e Mário; Jussiê, Cláudio José e Vilson Tadei.
Gols - Biro-Biro, aos 22, Galo, aos 25, e Dicão, aos 29 minutos do 2° tempo.
Estádio - Romeiro, em Juazeiro do Norte.
Juiz - José Leandro de Castro Serpa.

Doutor em Juazeiro, mais um milagre do 'Padim'

Abaixo de Deus, o padre Cícero Romão Batista e, abaixo do "meu Padim", o doutor Sócrates. Sacrilégios à parte, essa festejadíssima trindade ocupou, durante dois dias, os corações, as mentes e as preces dos 160 mil habitantes de Juazeiro do Norte - a cidade santa dos nordestinos, terra onde viveu e pregou padre Cícero. "Foi mais um milagre do padrinho. Se não, como explicar Sócrates, com convites de toda parte, escolher Juazeiro para fazer seu último jogo no Brasil, antes da viagem à Itália?", erguia as mãos para o céu, consultando o movimento dos ingressos, o advogado José Afonso de Oliveira, 42 anos, o promotor do jogo Corinthians e Vasco, em pleno sertão cearense do Cariri.
Aplaudido, alisado, abraçado e beijado - apesar dos esforços do comissário Raimundo Nonato Rebouças, destacado com todas as honras para sua segurança - Sócrates provocou uma verdadeira romaria para a Juazeiro, que duas vezes por ano, em setembro e novembro, recebe tantos peregrinos quanto sua população, para reverenciar padre Cícero. Ele, no entanto, não tinha maiores explicações para a escolha da "cidade santa" e seu acanhado estádio Mauro Sampaio, o "Romeirão", com capacidade máxima de 25 mil pessoas, para suas despedidas dos gramados brasileiros.
"O contrato para o jogo foi assinado em abril, antes de ser concluída minha transferência para a Fiorentina. A obrigação do Corinthians era cumprí-lo e uma cláusula previa minha participação. Na verdade, não existe nada de especial, de histórico, em ser meu último jogo no Brasil".

Golpe de sorte

Para o advogado Oliveira, empresário do adeus de Sócrates, ao contrário, tudo é especial e lucrativo. No filme que veiculou nas emissoras de TV de Fortaleza, em 20 rádios da região do Cariri e em 30 faixas em Juazeiro, o torcedor é chamado para se despedir do doutor, em nome dos brasileiros e da nação corintiana. Foi um puro golpe de sorte e ousadia de Oliveira, paraibano que morou 25 anos na cidade de padre Cícero, onde se envolveu com futebol, e hoje é assessor especial do ministro Cesar Cals, das Minas e Energia, em Brasília.
"Quando planejei o jogo entre dois times grandes do Sul, para dividir o lucro com associações beneficientes de Juazeiro, não poderia calcular que seria o último de Sócrates no Brasil. Com isso, a promoção ganhou muito, reconhece Oliveira.
Temeroso de que o doutor optasse por uma festa no Sul, Oliveira apelou para um amigo comum, o jornalista baiano Rui Pimentel, companheiro de serenatas de Fagner e Sócrates, para garantir a presença do craque corinthiano no seco gramado do sertãozinho. Pimentel cumpriu o trato e, ao lado do doutor, desembarcou em Juazeiro na tarde do sábado, numa operação cercada de suspense. Era a primeira vez que um Boeing pousava na cidade e, além do mais, trazendo as delegações do Corinthians e do Vasco, o time de maior torcida no Cariri. Ao meio-dia, duas mil pessoas se imprensavam à beira da pista do aeroporto municipal, ainda não inaugurado.
Quando o Boeing da Varig apontou na chapada do Araripe, foi recebido com aplausos e, logo depois, quando tomou altura de novo, com vaias. Aplausos e vaias se repetiram mais duas vezes, até que a tripulação, depois de se certificar de que não havia gente nem animais na pista, fez a última aproximação e aterrissou. Por alguns minutos, os aflitos soldados da Polícia Militar conseguiram sustentar os torcedores no cordão de isolamento. Mas logo a multidão venceu a suada milícia e cercou o avião, ainda com as turbinas em operação. Uma festa: Sócrates, o Vasco e um Boeing, de uma só vez.

Caçando uma buchada

O doutor iniciou de imediato sua concentração de despedida. Acompanhado de Pimentel, o amigo baiano, do zagueiro Juninho e do vice-presidente de futebol do Corinthians, Adilson Monteiro Alves, escapou do cerco dos fãs no Hotel Panorama, na caça de uma buchada - comida típica do sertão, feita com vísceras e estomago de bode -, com cerveja e cachaça. Achou o que queria na "buchada do Praxedes", mas foi logo encontrado pelos torcedores.
Colocou a buchada, o Praxedes e uma garrafa de Ypioca, aguardente do Cariri, no carro e fugiu para a Chácara Santa Cecília, a 6 quilômetros do centro de Juazeiro, onde se escondeu até às 18 horas, conversando, dando autógrafos e cantando músicas caipiras. Na volta ao hotel - enquanto o Vasco treinava duro no "Romeirão" - mais violão à beira da piscina em companhia do resto da delegação do Corinthians e um banho de cerveja: só na conta do doutor foram creditadas 30 garrafas, na festa juazeirense da democracia corintiana. Só Biro-Biro não participou: ficou no apartamento 709, onde dormiu na silenciosa companhia de um óculos azul-piscina, que usou com absoluto sucesso no desembarque da delegação, causando um arrepio nas moças de Juazeiro do Norte.
Às seis horas da manhã de ontem, o advogado José Afonso de Oliveira fazia as contas: haveria no mínimo um lucro de 50 milhões de cruzeiros, para um investimento de 100 milhões. Ele se baseava num sinal sensível: as filas pela madrugada na estrada do "Romeirão" e o movimento intenso na "feira do troca-troca", defronte ao estádio, onde se fazia qualquer negócio tendo como permuta uma entrada para o jogo.

Interesses políticos

"Foi uma ousadia enorme, um risco alto, mas deu tudo certo", exultava. Para tanto, valeram suas ligações políticas. O ministro Cesar Cals, cearense com interesses eleitorais em Juazeiro do Norte, conseguiu que o amistoso entre Corinthians e Vasco abrisse o teste da Loteria Esportiva. O deputado federal cearense Mauro Sampaio, votado em Juazeiro, com ligações na Aeronáutica, obteve que o Departamento de Aviação Civil liberasse a pista para o pouso do Boeing fretado por 32 milhões, apesar do aeroporto, não concluído, ser desprovido de qualquer sistema de apoio em terra.
Com sua amizade pessoal a Antonio Soares Calçada, presidente do Vasco, Oliveira acertou a presença de Roberto, concentrado com a seleção brasileira - ainda que para entrar em campo e saudar a torcida, sem disputar a partida. Para tanto, o atacante tomou um avião no Rio na tarde do sábado, chegou à noite em Fortaleza, embarcou num ônibus leito e amanheceu em Juazeiro, a 580 km de distância. O esforço lhe valeu uma cota extra de 3 milhões de cruzeiros - à qual nem Sócrates teve direito.
Político, ex-diretor de banco e corinthiano, Oliveira não pretende mais se envolver com promoções de grandes jogos em Juazeiro, o que faz desde 1971. "Há muitas incompreensões. Adversários políticos tentaram me torpedear, espalhando que o Boeing fretado não pousava e que Sócrates não vinha. Se não fosse a palavra empenhada dele, eu teria sem dúvida um grande prejuízo".
Corinthians e Vasco ganharam, livres de despesas, 25 milhões de cruzeiros cada um. E Oliveira, uma certeza: com a popularidade que o futebol lhe deu, em 1986 vai disputar uma cadeira na Assembléia Legislativa do Ceará. As fotos que fez ao lado de Sócrates lhe servirão de munição para a campanha - um gol que o doutor, certamente, não esperava marcar em sua partida de despedida do Brasil.

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