SARAMAGO CONVERSA SOBRE O OFÍCIO DO ESCRITOR
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Publicado
na Folha de São Paulo, São Paulo, sábado, 6 de maio
de 1989.
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Da Redação
O escritor português José Saramago esteve na Folha dia 27
de abril para uma conversa informal sobre o trabalho do escritor.
Como um escritor escreve? Por que escreve? Há vocação, não há
vocação, há livros mais ou menos fortes, os autores projetam seus
livros? Saramago, um homem afável e elegante de 65 anos respondeu
a todas as perguntas, "sem fintas". Estavam presentes também a
escritora Lygia Fagundes Telles, o poeta e tradutor Horácio Costa,
o escritor José Silvério Trevisan e as professoras Maria Aparecida
Santilli e Wilma Arêas. Falou-se de livros, máquinas de escrever,
transverberação e enfartes, da crítica e da relação entre os comunistas
e os escritores. A reunião durou duas horas. "Letras" publica
uma parte dessa conversa.
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Folha Como o sr. escreve? Começa o livro escrevendo à caneta
e passa à máquina de escrever, usa o computador direto, dita em
um gravador?
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José Saramago Eu escrevia numa
máquina de escrever. Depois de ter começado numa caneta, há muitos
e muitos anos, quando não havia sequer esferográficas - nunca usei
esferográfica, porque é um tipo de escrita que nunca me agradou,
uma escrita sempre igual - passei a escrever diretamente à máquina,
a partir de uma experiência jornalística que tive em 72/73. Por
circunstâncias alheias à minha vontade eu estava a trabalhar numa
editora e tive de ir trabalhar para um jornal. Evidentemente eu
nunca tive uma formação jornalística, nem uma vocação jornalística,
digamos; foi alguma coisa que tive de fazer contra vontade. E aí
a regra mandava que se tinha de escrever à máquina. Devo algumas
coisas ao jornalismo. Com certeza, do ponto de vista tecnológico
devo isso. Como estava obrigado a escrever à máquina, habituei-me
de tal forma a isso que depois e até hoje, seria completamente incapaz
de escrever, enfim, com a velha caneta a tinta permanente, e tampouco
com a esferográfica, porque me dá a idéia de que tudo escreve mais
depressa - ou que tudo escreve mais devagar do que aquilo que eu
necessito. A minha máquina era uma máquina velhíssima, que tinha
pelo menos 30 anos, uma Hermes Média, toda ela metálica, que já
não se fabrica mais, evidentemente. Chegou a um tal estado de depauperamento
físico, que quando se avariava, o mecânico, por duas ou três vezes,
teve de fabricar peças para que ela pudesse continuar a funcionar.
Essa máquina de escrever deu o último suspiro com o final da história
do cerco de Lisboa.
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Folha E agora?
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José Saramago Neste momento tenho um processador
de texto, atualizei-me tecnologicamente e estou diante duma inquietante
dúvida: do que serei capaz de escrever com essa figura nova, que
já não tem aquele ar familiar da minha máquina de escrever e é uma
coisa que tem umas luzes que acendem e apagam e tudo o mais? Enfim,
eu já me habituei e penso que vou continuar com ele. Eu sempre tive
a preocupação de folha limpa, sem correções. Agora com as novas
tecnologias isto já não é assim, porque o texto está sempre limpo.
Eu levava tão longe esta preocupação, que se me enganava, por exemplo
com um erro de digitação - em vez de pôr um "m" metia o "o", por
exemplo, na primeira, segunda ou terceira linhas -, minha dificuldade
em aguentar o texto sujo ia ao ponto de arrancar a folha e tirá-la
fora. A partir da décima linha ou coisa que o valha, já admitia
que me pudesse enganar, mas normalmente, e isso verificou-se muito
neste último livro. Se ao fim de um dia de trabalho escrevia três
ou quatro páginas, por exemplo, vinha um segundo tempo, digamos,
desse mesmo trabalho: corrigir essas três ou quatro páginas e limpá-las
de forma que quando fossem juntar-se às outras já estivessem limpas.
Isto significa que quando eu cheguei ao fim do livro tinha praticamente
o livro escrito e revisto, apenas com algumas emendas que eram necessárias.
Tanto assim que nem foi preciso passar outra vez a limpo para o
entregar ao editor. Tenho, de fato, a mania da página higiênica,
embora ache perfeitamente fascinante olhar para uma prova vista
pelo Eça de Queiroz, por exemplo, ou por Balzac, que são coisas
perfeitamente alucinantes. Há provas do Eça de Queiroz, e são já
as provas tipográficas, em que aquilo que ficou de 20 linhas, por
exemplo, é uma linha e meia, porque o resto foi todo destruído,
modificado. Eram tempos em que a mão-de-obra era barata e o compositor
tipográfico podia fazer e desfazer e tornar a fazer, que o livro
nunca saía caro.
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Folha
Você precisa ter uma situação psicologicamente muito definida
ou já chegou num ponto em que é só fazer um "clic" e a musa pinta
de lá de dentro?
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José Saramago Eu penso que sofro apenas de
um tipo de condicionamento: sou incapaz de escrever fora de casa.
Escrever num hotel ou coisa assim. Há, realmente, colegas meus que
vão acabar um livro em um hotel. Sou um homem que tem uma rotina,
sou muito rotineiro a trabalhar. Não atuo por impulso, tenho consciência
de que a primeira coisa necessária para escrever é sentar-se uma
pessoa na cadeira e esperar. Eu não vou sentar porque tenho o impulso
de escrever, eu sento-me para que esse impulso venha. É como quem
tem que se pôr a jeito para que as coisas sucedam. Provavelmente
isto desilude, vai decepcionar aquelas pessoas que têm do ofício
do escritor uma visão romântica, arrebatada, byroniana, se quisermos.
Eu não sou, quer dizer, não me vejo como um funcionário da escrita.
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Folha Você projeta os seus romances? Ou seja, você projeta
a ação, você projeta o esquema narrativo antes? Como é que você
concebe os romances? Eu sei, por exemplo, que essa história do cerco
de Lisboa já vem de alguns anos.
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José
Saramago A idéia inicial da "História do Cerco de Lisboa"
é de 72 ou 73. Já é uma idéia, mas não é mais que uma idéia, um
cerco de Lisboa. Naquela altura nem sequer tinha algo a ver com
um cerco histórico. Era uma situação de cerco um pouco fantástica.
Depois deste tempo todo nem sou capaz de ter uma idéia já muito
definida disso. Essa idéia foi de 72 ou 73. Desde então eu escrevi
sete ou oito livros com esse tema sempre vivendo cá dentro. Já se
vê que há um tempo para ter as idéias e há um tempo para que elas
possam ser realizadas. Mas como é que as idéias surgem? É um bocado
difícil. Eu não tenho um plano, eu não fiz como, digamos, o grande
mestre Balzac, que fez um plano, numa certa altura de sua vida e
depois resolveu arregaçar as mangas e dizer agora vou fazer isto,
realizar este plano. Um livro nasce-me porque tem que nascer e não
porque eu tenha decidido antes.
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Folha Na entrevista que o sr. deu à Folha há quinze dias,
o sr. comentou a questão da força de dois livros, a Bíblia e o Alcorão.
Como escritor, essa força que os livros têm sempre esteve na sua
consciência ou de repente foi uma surpresa?
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José
Saramago Eu acho que os livros não têm essa força. Os
livros não têm força alguma. O que acontece é que um ou dois ou
três tenham uma força, que não lhes vêm do fato de ser um livro,
mas do fato de serem códigos. De serem códigos, de serem leis, porque
no fundo o Alcorão não é outra coisa se não isso, a Bíblia não é
outra coisa se não isso e a Torá não é outra coisa se não isso.
Representa uma lei que tem duas faces, uma lei que é lei humana,
porque a Bíblia sabemos muito bem que no Antigo Testamento é feita
por uma sociedade concreta, de homens concretos, que estão ali e
que vão ser regidos por aquelas leis. E há o lado que é o da suposta
revelação, a face divina. Dois livros ou três tomaram realmente
uma força exorbitante. Não há nenhuma razão para que esses livros
tenham mais força do que qualquer outro livro. Objetivamente não
há, porque foram escritos pelas mãos de homens, não com processadores
de textos, nem com máquinas de escrever, mas foram as mesmas mãos
de homens que os escreveram. O que pode ser assustador - porque
o é de fato - é como é que em nome dum livro se faz o que se faz.
Se nós pensarmos, tudo isto é assustador. É evidente que esta súbita
revelação, esta revelação do escândalo, eu a chamo assim, é muito
recente.
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Folha Você considera escrever um ato de que? Você classificaria
como o quê esse gesto extremo, coragem?
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José
Saramago Eu diria assim, desta maneira muito simples,
um ato de escrever é só um ato. Não é nada mais do que isto. Não
lhe chamo ato de coragem. Eu sou provavelmente, escandalosamente,
prosaico. Não acredito em vocação. Só se pode ter - imaginando que
a vocação exista - vocação para as profissões que já existem. Na
verdade é a própria necessidade social que vai criando as atividades
e as profissões e depois nós vamos para elas. Às vezes, dizemos
que fomos para elas porque não tivemos outra solução. Mas, também
podemos, somos capazes de dizer, ah, eu fui para isto pela minha
vocação. Mas qual vocação? Ninguém pode ter a vocação para a informática
antes de a informática existir. Eu vou dizer uma coisa terrível.
A transverberação de santa Teresa de Jesus, santa Teresa D´Ávila,
o êxtase dela, e peço desculpas se ofendo os crentes, acho que ela
teve simplesmente um enfarte do miocárdio. Quer dizer, a agudíssima
dor no coração que ela atribuía a Jesus, que a estava transpassando
com o raio fulminante do seu amor, não era mais que um enfarte do
miocárdio, porque eu presumo que naquele século já havia enfartes
de miocárdio.
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Folha Como você concilia o escritor e o comunista? Como é
que a coisa se processa agora no seu cotidiano?
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José Saramago Eu acho extremamente interessante
essa pergunta, que é fatal, é uma pergunta que vem sempre: como
é que você sendo comunista e escritor, como é sua relação com o
partido e tudo isso e tal. Mas, é lamento, uma pergunta feita como
se um comunista fosse um caso particular da humanidade. Essa pergunta
nunca é feita a um escritor de direita. Nunca. Não há memória de
que a um escritor de direita, mesmo que seja um reacionário completo,
de alguém perguntar-lhe que relação você tem, sendo escritor, com
o partido onde você está, que é a coisa pior que há no mundo, de
reacionarismo, fascista e tudo o mais. A esse nunca se pergunta.
Mas ao escritor que caiu em comunista ou comunista que caiu em escritor,
sempre a pergunta vem. Então, eu direi que, tal como no conjunto
dessas coisas já ficou claro que tenho uma relação pacífica com
as coisas do meu trabalho e na relação que o meu trabalho tem com
os outros, que não há relação mais pacífica que aquela que eu tenho
com as minhas convicções, em primeiro lugar, com o partido que consubstancia,
digamos, assim, essas mesmas convicções. Sou dentro e fora desse
partido - fora quando não estou em relação direta com ele, dentro
quando há o momento, quando estou em seu nome -, digamos assim,
há uma relação de perfeita lealdade, de perfeita responsabilidade
e de perfeita liberdade. Quer dizer, eu escrevo exatamente o que
quero, exatamente como quero, sem nenhuma prévia determinação, orientação,
conselho, aviso, prevenção, arranjo todas as palavras que quiserem,
vindas direta ou indiretamente do meu partido. E por uma razão imediata
e simplicissima, é que eu sendo convictamente aquilo que sou, também
convictamente acho que o meu partido não é competente em matéria
literária.
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Folha Como é o seu diálogo com a crítica, se é que existe
ou lhe interessa?
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José
Saramago Há, realmente, uma certa crítica, que se comporta,
digamos, atravessando os passos às escuras, onde se pode pensar
porque não se vê o que lá está, está vazio. Esse tipo de crítica
leva archote e escolhe um caminho, vai às escuras. Só vê aquilo
que o seu próprio archote vai iluminando. Essa é a crítica que,
no fundo, só vê o que está no seu caminho, o que significa que só
vê o que está no caminho que escolheu. Se escolheu ignorar o resto,
o archote não chega lá. Não vai usar archote. Só falará daquilo
que o seu próprio archote iluminará. Bom, isso aplica-se a qualquer
país do mundo porque, infelizmente, há muita crítica que se comporta
desta maneira. A relação com a crítica em Portugal, neste momento,
é bastante boa, provavelmente porque praticamente não existe crítica.
Há um outro jornal que faz recensões. Quer dizer, algo que não é
o que estamos a falar, da crítica, crítica, crítica. Às vezes, recensões
feitas com inteligência, com sensibilidade, feitas por pessoas que,
enfim, tem alguma capacidade, mas que não significa, de modo geral
uma preparação clara, enfim, quer acadêmica, quer não, mas que justifique
exatamente essa espécie de missão, de intermediários entre o autor
e o público. Já que, realmente, a grande função da crítica é essa.
Não é dar lições ao autor, porque o autor não as quer. Não as quer
e ainda que quisesse recebê-las, não pode. Não pode, o autor tem
o seu caminho próprio e ficará muito aborrecido se lhe disserem
que seu livro é mau. Ele, aliás, vai escrever outro livro mau pelas
mesmas suas próprias razões. Enfim, não há que fugir disto. Agora,
para o público é indispensável. Então, digamos, o que está a acontecer
hoje numa relação, a relação entre o público e o autor em Portugal
está a fazer-se diretamente. Não passa pela mediação da crítica.
A crítica, enfim, vai falando. Os críticos que há, que repito
não são muitos, vão, enfim, falando dos livros e tudo o mais, mas
é realmente uma relação direta entre público e autor.
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Folha Que é o ideal.
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José
Saramago Eu não diria que é o ideal, porque, na verdade,
embora eu tenha dito aqui algumas palavras, enfim, não muito lisonjeiras
para um certo tipo de crítica, a verdade é que eu considero a crítica
necessária. Eu considero a crítica indispensável.
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