A ÚLTIMA ENTREVISTA DE RONDON
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sábado, 5 de maio de 1973
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"Eu estava cheio de reservas quanto ao meu companheiro norte-americano
de penetração na Amazônia, pois a imprensa da
época, recordando a excursão de Roosevelt à África,
veiculava que seu objetivo no Brasil se constituiria exclusivamente
no esporte das caçadas a animais de grande porte".
O Marechal Rondon, na última entrevista que me deu no Rio,
recordou o ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, que
o acompanhou numa expedição cientifica à Amazônica
em 1913-14. Também falou em Cahi nome indígena de seu
melhor cão. "Conduzia entre os dentes as anotações
de meu diário da selva". Para Rondon, "Cahi não
era bicho, era gente".
Sua boca enrugada esboça um sorriso para o passado, e conta:
"Eu estava para me aposentar. Ia viver vida sossegada de fazendeiro
com alguns animais e um punhado de índios, que eram como filhos.
Seria também a aposentadoria de Cahi, que me acompanhara em
tantas expedições. Ele morreu sem conhecer essa vida
mansa. E o enterrei entre dois buritizeiros do Mato Grosso, prestando-lhe
continência".
Rondon recebeu-me sentado para a entrevista que seria a última
de sua vida, a 5 de maio de 1957, dia em que completou 92 anos. Vestia
um blusão branco abotoando no colarinho alto e calças
cinza. Ao lado de sua cadeira havia um pássaro da selva. Sua
avançada idade e as recomendações médicas
determinariam que a entrevista fosse breve. Rondon era, então,,
candidato ao Prêmio Nobel da Paz, postulado pelo Explorer's
Club de Nova York, com apoio de entidades cientificas e culturais
do mundo inteiro.
Poucos nomes, como o de Rondon, pareciam tão indicados para
o Prêmio Nobel da Paz, e o Brasil, com ele, esteve bem próximo
da láurea. Era candidato por seu trabalho em favor das populações
indígenas, como árbitro em questões de fronteiras
e pelo aspecto humanitário que imprimiu ao trabalho da Comissão
das Linhas Telegráficas, quando ligou o Brasil de ponta a ponta,
conquistando para a nacionalidade homens, terras e rios, numa penetração
de 26 mil quilômetros através de terras descobertas,
mas que figuravam no mapa como "desconhecidas".
Rondon faleceu antes de ser conhecido o resultado do Comitê
Nobel, que não atribui a láurea post-mortem. Inúmeras
homenagens, contudo, lhe foram prestadas em vida. A Sorbonne comemorou
com sessão solene a passagem de seu 89º aniversário.
Na Alemanha seus feitos foram divulgados nas escolas, para estimulo
da juventude. O Congresso Internacional das Raças, reunido
em Londres em 1910, indicou sua obra em favor do índio brasileiro
como "exemplo a ser imitado nos países onde houvesse populações
indígenas, para honra da Civilização". No
Brasil, entre outras homenagens foi instituído o "Dia
da Comunicação" a 5 de maio.
Rondon nasceu a 5 de maio de 1865, em Santo Antonio, no Mato Grosso.
Muito cedo perdeu os pais, numa epidemia de varíola ao tempo
da invasão do Brasil pelas tropas paraguaias de Solano Lopez.
Aprendeu a ler com um ex-sargento da guerra com o Paraguai e, entre
a idade de sete e oito anos, foi viver com um tio completando a educação
secundária aos 16 anos, em Cuiabá. Recusou, então,
um lugar de professor, preferindo alistar-se como soldado no Terceiro
Regimento de Artilharia a Cavalo, no Rio. Como soldado e estudante
preparou-se para o curso da Academia Militar.
Em 1886 era cadete e republicano, muito influenciado por Benjamim
Constant, líder da juventude militar e principal articulador
da queda da Monarquia. Rondon tomou parte ativa em dois movimentos
cívicos que logicamente se vinculam: a Abolição
da Escravatura e a Proclamação da República.
O major Cândido Mariano da Silva Rondon, engenheiro militar,
acabara de completar 35 anos quando foi nomeado chefe da Comissão
de Construção das linhas Telegráficas em 1900,
com a missão principal de estender a comunicação
à selva amazônica. O trabalho de Rondon no interior do
Brasil não seria apenas o de um chefe de departamento técnico-militar,
construindo uma imensa rede de comunicação telegráfica
(numa distancia tão grande que poderia ligar Lisboa a Varsóvia,
e dirigindo pesquisas importantes para a História Natural e
a Etnologia em regiões selvagens. Como pacificador entre tribos
indígenas em estado de guerra com os brancos ou com outras
tribos, assinalou sua maior contribuição.
Certo dia, quando os machados iam abrindo caminhos na mataria, após
terem passado a terra dos Parecis, já pacificados, Rondon e
seus homens foram atacados pelos Nambiquaras, que despejaram sobre
eles uma nuvem de flechas envenenadas. Era o dia 2 de outubro de 1907,
e Rondon escapou por pouco de morrer na ponta de uma das flechas que
se encontra hoje catalogada no Museu Nacional do Rio de Janeiro sob
o numero de 2.178. O ferimento do comandante poderia ter determinado
uma chacina, se os soldados bem armados, respondessem ao ataque. Mas
Rondon, proibindo a represalia, fez valer o lema adotado ao penetrarem
terras dos indios, que instituia o risco de vida em troca de benevolência:
"Morrer, se necessario for; matar, nunca". Jogou seu rifle
ao chão, e ordenou aos soldados que fizessem o mesmo, a fim
de demonstrarem as intenções pacificas da missão.
Os índios entenderam o gesto. Os civilizados se retiraram,
deixando presentes, e foi o começo de uma serie de contatos
que, em pouco tempo, determinaram a completa pacificação
dos Nambiquaras. Os índios venciam e a expedição
se retirava. Mas os soldados voltavam com presentes. Os homens de
Rondon não se consideravam vencidos, também vencedores,
porque não haviam matado. Com gestos como estes, Rondon conseguir
sair de sua missão sem uma mancha sequer, sem sangue no uniforme
que tanto honrou. Deixou as cruzes de muitos companheiros, mortos
em ataques dos indios. Mas não deixou um só homem morto.
Foi assim que formou suas expedições com homens de elite,
dos simples soldados aos mais qualificados especialistas. Quando teria
sido facil guarnecê-las com assassinos
Embora modesto em sua origem e suas atitudes, Rondon fez o papel de
um principe de Renascença, ao viajar acompanhado de geologistas,
antopologistas e botânicos, que iam realizando o levantamento
cientifico do Brasil. Foi, na verdade, como Civilizador, que empreendeu
a conquista da Amazônia, com uma qualidade unica nessas penetrações
que tanto engrandeceram o Brasil: o humanitarismo.
O internamento voluntario de Rondon nas selvas do Brasil durou meio
seculo. Duas monumentais explorações podem ser consideradas
uma especie de segunda descoberta, colocando no mapa uma imensa região
(tão grande quanto toda a França) que antes figurava
como desconhecida. Seu trabalho em favor da paz interna, como da externa
(resolvendo problemas de fronteiras entre paises hispano-americanos
e demarcando com exatidão as do Brasil só é comparavel,
em grandiosidade, à sua colaboração para o conhecimento
do ecúmeno. Por isto, a Sociedade de Geografia de Nova York,
num livro exposto aos visitantes, tem o seu nome inscrito em letras
de ouro como um dos cinco maiores exploradores do mundo. São
os cinco nomes:
Pearry - descobridor do Polo Norte
Amundsen - descobridor do Polo Sul
Byrd - o maior explorador das Regiões Antarticas
Charcot - o maior explorador das Regiões Articas
Rondon - o homem que mais se adentrou em terras tropicais, onde foi
também descobridor.
No dia em que o visitei pela ultima vez quando recordou Roosevelt
e o cão Cahi, nosso heroi nonagenario recebia também
a um chefe indigena, seu amigo há quarenta anos e quase da
mesma idade. Esse indio lhe disse que deveria voltar à selva
para morrer. Argumentava que, se morresse no Rio, Rondon seria enterrado
às pressas e sem cerimonias e logo os civilizados o esqueceriam.
Rondon o ouviu em silencio e retomou a narrativa sobre Thedore Roosevelt
e a expedição de quase meio sendo atrás. O velho
soldado fala muito pausadamente. Passa alguns minutos em silencio
e só quando recorda com precisão reinicia a narrativa:
"Eu disse que só aceitaria a missão de acompanhar
Roosevelt se a travessia pretendida tivesse carater cientifico e,
principalmente, geografico. Minha condição foi aceita.
Organizou-se rapidamente o nucleo de oficiais e naturalistas brasileiros
que nos acompanharam na caprichosa aventura".
Rondon parece estar revivendo aqueles episodios de 44 anos antes.
Impressiona como em sua narrativa lenta, coerente com a verdade dos
fatos (documentos em livros da epoca, inclusive no livro de Roosevelt.
Through the Brazilian Wilderness, vai construindo a narração
espontanea e logicamente ordenada:
"Adquiri, no decorrer da expedição, a certeza de
que meu companheiro só colocava sua coragem individual a serviço
de caça com o nobre objetivo de obter especimes raros para
o Museu Americano de Historia Natural, de Nova York, e querendo ser
ele proprio o caçador de animais de maior porte e aquisição
mais perigosa. A expedição durou quase cinco meses descendo
o rio da Duvida, que colocamos definitivamente no mapa através
de uma região nunca antes varada pelo homem. Sentimos, os expedicionarios,
todas as surpresas do desconhecido e as emoções inesqueciveis
das verdadeiras explorações que se caracterizam pela
incerteza de seu exito e da sobrevivencia dos que a fazem".
Por seu trabalho ao lado de Rondon, Roosevelt receberia o Premio Livingstone,
da Sociedade de Geografia de Nova York, ocasião em que, entrevistado
por jornalistas do mundo inteiro disse:
"A America pode apresentar ao mundo duas obras ciclópicas:
ao Norte, a abertura do Canal do Panamá". Revelou que,
para ele tamanho eram os conhecimentos daquele brasileiro que bem
poderia ser considerado um genio, não restando duvida que se
tratava de um sabio.
O velho nos ouve em silencio. Algum tempo depois eu o reencontraria
junto à camara mortuaria de Rondon. Primeiro, o observei a
um canto da sala, cabisbaixo, fazendo espaçamento um gesto
vago com a mão. Caminhou até o centro do saguão
do Clube Militar e parou. De seu velho perfil enrugado desceu lentamente
uma lagrima, iluminada pelos cirios. A morte chegara para Candido
Rondon a 19 de fevereiro de 1958, no seu apartamento do Posto 6, Copacabana,
onde varias vezes o havia entrevistado. Rondon viveu os ultimos anos
de sua gloriosa existencia cercado de aves e objetos do mato, principalmente
troféus oferecidos por seus amigos indigenas. Ele me recebia,
habitualmente, no pequeno terraço do apartamento, sentado numa
rede indigena. Agora, estendido no meio daquele amplo salão,
concentrava as atenções não apenas dos que se
encontravam presentes, mas do Brasil inteiro. Aquela era a última
visita, o adeus.
Edilberto Coutinho
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