Tadeu Afonso
da reportagem Local
O governo
teria evitado tantos protestos por causa da edição
do novo pacote econômico se tivesse adotado, ao mesmo tempo,
um forte aumento no salário mínimo. A afirmação
é do deputado federal eleito e ex-secretário do Planejamento
de São Paulo José Serra (PMDB-SP), 42.
Segundo ele, "para evitar consequências econômicas
adversas" com a elevação do salário mínimo,
o governo poderia proibir o seu uso como "unidade de referência
para qualquer outra coisa na economia, inclusive outros salários".
Serra afirma que o salário mínimo está hoje
nos níveis de 1952, embora a economia brasileira tenha crescido
quase dez vezes até 86.
Para o futuro membro do Congresso constituinte, a reforma tributária
será uma prioridade na elaboração a Constituição,
já que terá aplicações imediatas. Serra
defende uma simplificação do imposto de renda, a extinção
do ICM, ISS e IPI, além de impostos únicos e sua substituição
pelo imposto pelo valor adicionado. Segundo ele, isso permitirIa
uma simplificação da arrecadação, menores
gastos na manutenção da máquina administrativa
e mais justiça social.
Para Serra, eleito com 160.868 votos (quarto colocado na classificação
geral de São Paulo e segundo no PMDB paulista), as grandes
mudanças políticas e institucionais deverão
ser a introdução do parlamentarismo, do sistema distrital
misto e do plebiscito até em níveis estadual e municipal.
Ele acha que, se o plebiscito já existisse há alguns
anos, a Paulipetro não teria sido criada.
O deputado federal eleito conversou com a Folha na tarde do dia
7, em sua residência do Alto de Pinheiros (zona oeste da cidade),
pouco antes de seguir numa viagem de estudos para Israel.
Folha - O PMDB teve uma vitória retumbante e a primeira
reação do governo foi a edição de um
novo pacote econômico. O que será agora do governo
e do PMDB?
José Serra - Era indispensável fazer algum
ajuste. Não podia passar deste ano. Seriam medidas que, desJosé
Murilo de Carvalhotinadas a preservar o desenvolvimento,
iriam criar resistências dentro da sociedade. Elas seriam
o preço para se manter o aumento da produção
e do crescimento. A produção e o emprego chegaram
a níveis altíssimos em 86. O que temos que fazer para
o futuro é impedir que o nível de emprego caia. Não
estou aqui discutindo o "timing" das medidas, se deveriam
ser antes ou depois das eleições. De qualquer jeito,
elas criariam resistências. Fossem essas ou aquelas, mexessem
ou não com o aumento do imposto de renda ou do IPI. Talvez
se pudesse ter feito tecnicamente de outra forma, do mesmo modo
que a articulação política, mas de toda maneira,
seria desgastante.
Folha - O protesto da população não tem
sentido, então?
Serra - Creio que a aceitação do pacote teria
sido mais fácil se tivesse adotado uma medida como um forte
aumento do salário mínimo, que hoje está nos
níveis de 1952 embora a economia brasileira tenha aumentado,
pelo menos, dez vezes neste período. Essa medida, para não
ter consequências adversas, teria que ser acompanhada pela
proibição de que o salário mínimo fosse
unidade de referência para qualquer outra coisa na economia,
inclusive, salários.
Folha - Agora, como se confiar num governo que, a cada vez que
a inflação foge do controle, modifica os índices?
Serra - O governo está tomando medidas que se destinam
a conter a inflação. Um aspecto básico deste
pacote foi a contenção da demanda. O governo pretende
extrair da economia 180 bilhões de cruzados no prazo de um
ano. Isso, com o aumento de preços, como os dos cigarros
e bebidas, constitui uma contenção de demanda com
vistas não só ao problema da balança comercial
como também à inflação. Não vejo
problema nenhum nos índices. Ao contrário, é
a volta a um índice que se baseia na cesta de uma família
de até cinco salários mínimos. Isto aconteceu
sempre no Brasil. Isto não é uma arma para subestimar
a inflação futura. Esse índice pode ser um
IPCA restrito, INPC, não sei como se chama. Ele pode até
crescer mais do que os outros. O governo está corrigindo
uma mudança que foi inadequada, feita no começo deste
ano, que foi passar o índice de uma família de cinco
salários mínimos para trinta salários mínimos.
Outro problema é não colocar no índice o aumento
de certos impostos indiretos ou de certos produtos que são
consumidos até pelas famílias de cinco salários
mínimos. Embora o governo tenha sugerido que iria fazer,
ainda não o fez. Há até indicações
de que pode vir a não ser feito. O que tem que ficar claro
é que não é possível expurgar.
Folha - Em vez de aumentar impostos, não seria mais fácil
enxugar a máquina administrativa, demitindo quem não
trabalha?
Serra - Mais fácil não é. Seria mais
correto. Seria economicamente mais correto. Seria politicamente
mais corajoso. Mas é o mais difícil. Não só
cortar e enxugar como também cortar subsídios. Cerca
de 50% do imposto de renda de pessoas jurídicas não
são arrecadados porque acabam dissipados na forma de incentivos
ou isenções que hoje têm uma utilidade muito
discutível. Você poderia aumentar a receita líquida
do governo com o corte desses subsídios e a retomada de sua
discussão no Congresso e na sociedade. Quando você
toma medidas para cortar gastos de custeio, enfrenta uma reação
violenta dos setores diretamente afetados. Você fica sem um
apoio mais amplo. Veja o caso do BNH agora. Não sei se a
medida foi correta. Faltam-me elementos para avaliar. Talvez se
devesse ter pensado numa reformulação. Mas suponhamos
que ela tenha sido correta. O apoio que o governo encontrou foi
muito pequeno. A resistência foi muito grande. acredito que
um dos motivos principais daquela passeata em Brasília, que
acabou em quebra-quebra, tenha sido o receio dos funcionários
do governo sobre o que lhes poderia acontecer depois da extinção
do BNH. O problema de ineficiência e do desvirtuamento do
setor público no Brasil é gravíssimo.
Folha - É viável um pacto social no Brasil?
Serra - É viável, sim. O Plano Cruzado, em
sua primeira fase, de certa maneira representou isso. Foi uma forma
de pacto. Só acredito em pacto em função de
políticas concretas. Acho muito difícil que se possa,
numa mesa, combinar como as coisas vão ser e, a partir daí,
ter o pacto para que as coisas aconteçam. Isso é muito
difícil. Só a prática, à medida em que
as coisas vão acontecendo, é que pode dar condições
para que o pacto aconteça. É mais fácil que
certos setores façam concessões a partir de uma prática
do que numa discussão.
Folha - Como seria esse pacto no Brasil?
Serra - Não tenho nenhuma fórmula. Ele será
indispensável para o Brasil se nós quisermos o aprofundamento
da democracia, do desenvolvimento e da justiça social. Temos
que encontrar, teremos que equacionar as diferentes demandas para
que isso possa acontecer. O desajuste entre demanda, expectativa
e possibilidade pode levar o Brasil para trás. Não
acredito que isso venha a acontecer, mas não podemos dizer
que isso nunca acontecerá. Isso só depende de nós.
Folha - Que ponto você sugeriria?
Serra - Não tenho nenhuma receita aqui para esse pacto
e nem seria o caso. Mas vamos ter que encontrar uma maneira de segurar
a inflação novamente e um modo de combinar, novamente,
a contenção da inflação com a manutenção
do emprego e um certo nível de crescimento, mesmo que moderado.
Folha - Depois desta vitória, muitos peemedebistas dizem
que seu partido é de centro-esquerda. Ao mesmo tempo, entre
os vitoriosos, há populistas como o governador eleito de
Minas, Newton Cardoso, governadores que ficaram estes anos passando
de partido em partido, como Moreira Franco, antigos malufistas como
o governador eleito de Alagoas, Collor de Mello, e governadores
eleitos em coligações com a direita, como na Bahia
e Pernambuco. Que PMDB é esse?
Serra - O PMDB é um partido heterogêneo. Uma
característica da sociedade brasileira é ter partidos
bastante heterogêneos. Nos Estados Unidos, isso existe hoje.
No Partido Democrata, você tem setores avançados que
combatem, por exemplo, o racismo e setores que são racistas.
Essas mesmas disparidades são encontradas no Partido Republicano.
Então, o PMDB é um partido heterogêneo. Acho
que a resultante do PMDB deve se expressar nas forças que
o compõem, nos segmentos da sociedade que ele representa.
Aliás, qualquer que seja a crítica às medidas
adotadas agora no plano econômico, não se pode dizer
que são populistas. Se fossem populistas e se o PMDB fosse
populista, o partido não as teria adotado. A preocupação
com a inflação, dentro do PMDB, é uma das características
da sua falta de populismo.
Folha - Essa mistura dá um resultado de centro-esquerda?
Serra - É difícil dizer o que seja centro-esquerda.
Acho que o PMDB deve se enquadrar dentro daqueles objetivos maiores
que apontei, desenvolvimento, justiça social e a preocupação
com políticas concretas para os setores trabalhadores da
sociedade, que têm condições de vida precárias
ou insatisfatórias, a defesa da democracia e da participação.
Isso é muito forte dentro do PMDB: liberar a sociedade para
que ela possa lutar pelos seus direitos, pela sua participação.
Isso é um aspecto muito importante dentro do PMDB: democratizar
a sociedade em todos os seus níveis. Isso é também
resultado dessa composição de forças que formam
o partido.
Folha - Mas como fica o partido agora?
Serra - Bom, o PMDB tem que governar. Tem que se desincumbir
da tarefa que a eleição lhe atribuiu. Tem que cuidar
de governar não apenas com a ocupação de espaços.
Se fizer isso, ele será rejeitado no futuro. Acredito que
não o fará. O PMDB tem que dar um sentido muito mais
firme na realização de políticas que diminuam
a desigualdade, de um lado e, do outro, que mantenham o desenvolvimento.
Isso é essencial. Para isso, será essencial uma reforma
dentro do setor público. Espero que o PMDB possa mobilizar
as forças da sociedade para isso, como foi no passado para
a democratizar o país com a campanha pelas diretas. Ou como
o fez na primeira fase do Plano Cruzado, para controlar a inflação
com a participação da sociedade. Será uma tarefa
fundamental.
Folha - Muitas gente defende a formação de um bloco
progressista no Congresso constituinte, para se apor a um avanço
conservador. Como você encara esta idéia?
Serra - Acho inevitável que, na Constituinte, em torno
de certas questões, haja agrupamentos de parlamentares suprapartidários.
No atacado talvez seja mais fácil isso. Em certas questões,
essa polarização entre conservadores e progressistas
poderá não ser tão clara.
Folha - Com quem os progressistas do PMDB buscariam aliança?
Serra - Você terá gente de todos os partidos.
Acho que os progressistas estão concentrados no PMDB, PT
e PDT. Haverá um ou outro nos demais partidos.
Folha - Em São Paulo, foram eleitos homens de correntes
até antagônicas, como Delfim Netto, Afif Domingos,
que muitos apontam como líder de uma direita mais aberta,
e o Lula. Como será o seu relacionamento com eles no Congresso
constituinte?
Serra - É normal que isso aconteça. Acho saudável
que diferentes forças do espirito político disputem
eleições. É muito melhor você ter todo
mundo disputando eleições dentro das regras do jogo
do que alguns grupos não disputando e procurando sair das
regras do jogo. É isso. Acharei muito bom também que
setores ligados ao antigo regime e, de alguma maneira, com responsabilidade
no processo de centralização patrocinado pelo autoritarismo
ou na dissipação da renda pública, como no
caso de São Paulo... O governo Maluf foi o que promoveu o
maior desperdício de despesas governamentais... Acho bom
que setores ligados a esses sistemas de poder anteriores mudem de
posição e engrossem as filas daqueles que desejam
uma maior descentralização e um maior controle do
setor público, uma maior racionalidade e eficiência
do processo de governar.
Folha - Às vésperas das eleições,
havia um pessimismo por causa da possibilidade da escolha de um
Congresso conservador. Como você vê os resultados das
urnas?
Serra - Acho que é ainda muito cedo para uma análise
mais profunda da composição do novo Congresso constituinte.
Tenho esperanças de que esse Congresso não seja mais
conservador do que o anterior. Intuitivamente, sinto isso. Acho
que representará um avanço sobre este.
Folha - Você fala que o PMDB deve executar agora mudança.
Que mudanças?
Serra - Já dei o exemplo do setor público,
embora isso nada tenha a ver com a futura Constituição
mas, sim, com políticas concretas. Agora, no plano da Constituição
é preciso considerar o seguinte. Constituição
não é programa de governo. Quem tem programa de governo
são os partidos. A Constituição destina-se
a fixar os marcos institucionais nos planos econômicos, político
e social dentro dos quais se processará o desenvolvimento
do país e as soluções que a sociedade apresentar.
Ela não representa em si a solução desses problemas.
Seria um equívoco pensar-se isso. poderia se gerar expectativas
que fatalmente seriam frustradas. A próxima Constituição
deve avançar bastante, e confio que isso aconteça,
na fixação do avanço democrático, nas
regras do jogo democrático. Essas regras são fundamentais
para que diferentes segmentos da população lutem pelos
seus objetivos, pelos seus desejos e possam ganhar partidos dentro
desse jogo democrático. Mas a Constituição
não pode assegurar previamente o resultado dessa partida.
Estendo a questão da democracia não apenas à
política, mas também às lutas sociais. Por
exemplo, os sindicatos devem ter um desatrelamento muito maior do
governo do que o que existe hoje. No plano da política, além
de defender o voto distrital misto, defendo o parlamentarismo com
uma presença do Executivo. Mas o parlamentarismo representará
uma responsabilidade maior do Congresso com o país. A democratização
deve chegar aos problemas econômicos, culturais, ambientais
etc., em todos os níveis. Não devemos definir os plebiscitos,
mas abrir a possibilidade para que eles sejam promovidos sempre
que forem julgados necessários. Acho que a própria
população pode convocar um plebiscito mediante o apoio
de certa percentagem do eleitorado. Se isso fosse possível
há alguns anos, nós não teríamos tido
por exemplo, a Paulipetro. Acho que deve haver o plebiscito até
para problemas nucleares e mesmo em nível municipal e estadual.
Isso ajudaria em muito o desenvolvimento da democracia.
Folha - O Congresso foi omisso. Os parlamentares até recebem
por sessões a que não comparecem. Como ele pode ter
sua responsabilidade aumentada com o parlamentarismo?
Serra - Veja, eu defendo um imposto de renda abrangente que
inclua os rendimentos de todas as pessoas. Vou lutar para que ninguém
tenha renda, como hoje têm os parlamentares e setores da administração
pública sem o imposto de renda. Isso é um absurdo.
Nós temos que dar força ao Legislativo sem que isso
implique, no entanto, em lhe dar funções executivas.
O parlamentarismo é a fórmula ideal de se combinar
a agilidade do Executivo com a participação do Legislativo.
É uma exigência do Estado moderno. O parlamentarismo
passa a ter uma responsabilidade na formação do governo
que, quando é aprovado, é com base num programa de
realizações, de políticas. Se o governo não
as cumpre ou executa uma política errada, ele pode ser mudado.
É a responsabilidade que se deve dar ao Legislativo. O nosso
Legislativo se desabitou de certas responsabilidade porque estas
lhe foram tiradas durante os anos de arbítrio. Ele deve ter
agora responsabilidades maiores, mas de uma forma racional.
Folha - As eleições de 86 foram a vitória
do voto distrital. Deputados que não tinham uma base eleitoral
territorialmente definida, como alguns da esquerda de São
Paulo, foram derrotados. A oposição sempre se opôs
ao voto distrital e agora o defende. Por quê?
Serra - Na prática, a última eleição
mostrou uma forma pervertida de voto distrital. Uma das grandes
vantagens do voto distrital seria a possibilidade de permitir uma
justa representação a regiões que hoje estão
sub-representadas. A capital já estava, por exemplo, sub-representada.
Ela tinha neste Legislativo não mais de 20 dos deputados,
embora possua três quintos do eleitorado. Essa disparidade
aumentará agora. outra razão para o voto distrital
e o controle do poder econômico. No sistema em que estamos,
é absurdo você disputar o voto proporcional junto a
dezesseis milhões de eleitores. Outra vantagem seria que
o voto distrital permitiria um controle maior da população
de cada distrito eleitoral sobre o parlamentar que ela elegeu. A
oposição que se fazia no passado ao voto distrital
evocava razões que não estão mais presentes
hoje.
Folha - E a reforma tributária?
Serra - Essa é a uma das questões mais concretas
na futura Constituição, de consequências práticas
e imediatas. Acho que precisamos de uma mudança de profundidade,
que assegure mais eficiência, mais justiça social e
mais descentralização e autonomia dos Estados e municípios.
Temos que criar um imposto de renda abrangente. Temos que caminhar
para um imposto de renda mais único do que hoje. O imposto
de renda da pessoa jurídica representa hoje, na prática,
um imposto indireto que é pago pela população
através de sua transferência para os preços.
É ainda uma fonte de grande evasão, às vezes
legais, nos jogos entre a pessoa física e a jurídica.
Não quero aumentar a carga tributária. Estou propondo
a simplificação para combater a sonegação
e aumentar a justiça social. temos que caminhar para uma
simplificação muito grande no imposto de renda para
se baratear a estrutura de arrecadação, diminuir custos
e aumentar a justiça. Eu propria ainda a extinção
do ICM, IPI, ISS, os impostos únicos que perderam sua finalidade.
E criaria um único para substituir todos esses: o imposto
sobre valor adicionado. Você teria até uma economia
muito grande a nível do custo de arrecadação
e maior eficiência a racionalidade. Permitira ainda que os
Estados estabelecessem suas alíquotas ao imposto de valor
adicionado. Nos EUA, cada Estado tem a sua própria alíquota.
Não podemos ter, no Brasil, Estados tão desigualmente
desenvolvidos com instrumentos tributários idênticos.
Isso só cria ainda mais distorções. Seria um
princípio saudável na agricultura tributar-se a propriedade
e a renda, mas não a produção. Teria um efeito
produtivo muito maior. Hoje, não se tributa a propriedade
e a renda e se tributa a produção.
Folha - Qual deve ser a duração dos mandato do
presidente Sarney?
Serra - Acho que cinco anos é o mandato ideal. Mas
isso vai depender da Constituinte, que decidirá se teremos
um presidencialismo ou um parlamentarismo. Acho que a Constituinte
é soberana para decidir isso. Ela tem poder para isso. A
questão do mandato, no entanto, não é tão
crítica quanto outros assuntos.
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