CIENTISTA POLÍTICO ESCREVE SOBRE O IMAGINÁRIO NA ORIGEM DA REPÚBLICA


José Murilo de Carvalho

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 28 de julho de 1990

O mineiro José Murilo de Carvalho, 50 anos, costuma se definir como um "misto de sociólogo e cientista político com vocação de historiador". E talvez seja exatamente essa formação interdisciplinar que permite que seus livros alcancem um público universitário amplo o bastante para esgotar três edições sucessivas, como é o caso do seu "Os Bestializados", publicado pela Companhia das Letras (em 1987). Para agosto, na Bienal do Livro de São Paulo, a mesma editora prepara o lançamento de "A Formação das Almas: o Imaginário da República", em que José Murilo se aventura pelas fronteiras entre a história das mentalidades e a ciência política. Dividindo seu tempo entre o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), a Fundação Casa de Rui Barbosa e a edição da revista "Ciência Hoje", ele desvenda, nesta entrevista, o tema desse novo lançamento: a "guerra de símbolos" que tem sido marca da história republicana, onde se disputam bandeiras, monumentos e heróis.

Folha - Por que o senhor resolveu votar ao tema da República, já explorado no seu livro anterior, "Os Bestializados"?
José Murilo de Carvalho - O que me levou a escrever esse novo livro foi exatamente o resultado da pesquisa desenvolvida em "Os Bestializados", onde eu chegava à conclusão de que a República foi um movimento político no qual houve uma participação muito reduzida da população, sobretudo da população do Rio de Janeiro. A população, como se dizia na época, ficou "bestializada" com aqueles eventos. Eu comecei a me perguntar se não teria havido por parte dos republicanos uma tentativa de tornar a República mais popular e legítima, depois de proclamada. O que teriam feito para "vender" a idéia da República para essa população. A implantação de qualquer regime político tem na aceitação popular uma condição fundamental para sua sobrevivência. Procurei verificar se teria havido essa tentativa de "vender" a idéia republicana, de atingir setores mais amplos da população, procurando avaliar em que medida esse esforço teria tido algum êxito, teria conseguido alcançar os corações e mentes dos brasileiros.
Folha - É nesse sentido que o senhor fala de um "imaginário" da República?
Carvalho - Eu resolvi sair do mundo estrito da elite política, em que se lida com ideologias. Há um capítulo em que eu discuto o que se poderia chamar de uma "utopia republicana", algo mais elaborado, que pertence ao "discurso das elites", dos intelectuais republicanos, que eram quase todos políticos militantes. No resto do livro saí desse círculo porque me interessava perceber o esforço de se atingir segmentos mais amplos da população. Eu teria inclusive que ir além da análise da linguagem escrita, de alcance muito reduzido num país com mais de 80% de analfabetos. Procurei me concentrar na arte, nos monumentos públicos, na arquitetura, nos símbolos cívicos da pátria, na criação de heróis e de mitos políticos. Discuti a produção de um mito de origem da República, de uma versão oficial do evento da proclamação, tentando dar ao movimento uma conotação mais popular do que a que de fato teve. Pesquisei a busca de um herói republicano, ou seja, o esforço de se encontrar uma figura cívica com um perfil histórico que pudesse simbolizar os ideais republicanos. E também o uso de certas alegorias, à semelhança do que aconteceu com a Revolução Francesa, que influenciou muito diretamente os nossos republicanos. A representação da República através da alegoria feminina foi muito utilizada tanto na França quanto no Brasil. Examinei também os próprios símbolos nacionais republicanos, o hino e a bandeira, para mostrar como, através desses instrumentos de comunicação, se tentou atingir o "imaginário coletivo" e criar um ambiente favorável ao novo regime, expandir a sua legitimidade.
Folha - O senhor chegou a examinar peças de teatro?
Carvalho - Não cheguei a trabalhar com a literatura. O teatro serviria para a minha análise porque atingia um público bem mais amplo do que a literatura. Seria um capítulo que não escrevi. Fiquei na pintura, na escultura, nos monumentos públicos, na arquitetura, nas charges e caricaturas, nos símbolos cívicos tradicionais.
Folha - Trata-se de uma mudança na sua linha de pesquisa?
Carvalho - A novidade desse trabalho em relação aos anteriores é o fato de que eu não me mantive apenas no terreno das idéias e do comportamento político. Eu senti a necessidade de ir um pouco mais além, de explorar o que estaria na cabeça das pessoas, de saber qual seria o seu mundo de valores. Foi essa necessidade que me levou a um trabalho interdisciplinar, envolvendo história, artes plásticas, arquitetura, ciência política, estudo de comportamento etc. Na efervescência atual dos estudos históricos no Brasil creio que há trabalhos muito interessantes nessa direção. No meu caso, eu gostaria de citar a influência fundamental dos trabalhos de Alexandre Eulálio, que soube fazer com a história da arte uma análise social e política muito reveladora. Estou convencido de que só com um esforço interdisciplinar se pode compreender a permanência e a eficácia da tradição elitista no Brasil.
Folha - O senhor destacou o fato de que o movimento republicano não era um bloco uno, coeso. Haveria uma acirrada disputa interna na construção desses símbolos?
Carvalho - Sem dúvida. Essas várias vertentes usavam de maneiras muito distintas o instrumento simbólico. A vertente que eu defino como liberal quase não se utilizava dos símbolos, porque a ela não interessava que a República fosse popular. As outras duas vertentes, que eu chamo de vertentes jacobina e positiva, foram as que mais particularmente investiram nessa guerra de símbolos. A vertente jacobina inspirava-se diretamente na Revolução Francesa, no uso da alegoria feminina da República ou na preferência pelo hino francês, cantando "A Marselhesa" pelas ruas. Comparados aos jacobinos, os positivistas eram ainda mais empenhados. Eram positivistas aqueles que haviam formulado mais claramente uma idéia de República incluindo um projeto de utilização da arte como instrumento de doutrinação política. Foram os positivistas os que mais sistematicamente empregaram esses mecanismos, formando pintores positivistas, escultores positivistas.
Folha - A que o senhor atribui a falta de empenho dos liberais republicanos nessa guerra de símbolos?
Carvalho - Há duas razões. Primeiro, o modelo de revolução republicana liberal era o modelo americano, que, pelo fato de ter contado com uma participação popular muito grande por conta da guerra de libertação, teve muito menos necessidade de recorrer a símbolos para legitimar a República e a Independência do país. Nos eventos que geraram a independência americana, a participação popular estava no próprio movimento. A própria bandeira americana se desenvolveu muito lentamente e o hino americano só foi definido na década de 1930! Até então os americanos usavam mais der um hino nos eventos cívicos. Não havia preocupação e nem necessidade destes símbolos. Você poderia me dizer que na Revolução Francesa também houve participação popular e que nem por isso deixou de haver o recurso aos símbolos. Acontece que na Revolução Francesa havia divisões muito grandes. A Revolução e a República na França representavam setores da população e durante um século ou mais houve uma disputa enorme entre as várias facções monarquistas e republicanas. A segunda razão a impedir os liberais republicanos brasileiros de ingressar nessa batalha pelo imaginário republicano foi o desinteresse desses militantes em popularizar as idéias liberais. No Brasil a própria adoção do liberalismo se fez de maneira perversa. Nos Estados Unidos, o liberalismo envolvia a participação popular. Aqui ele foi apropriado pelas elites agrárias que dele tiravam apenas os elementos que interessavam. A defesa de uma economia de mercado se traduzia na reivindicação de uma descentralização política que enfatizava o federalismo, mas que propositadamente excluía o aspecto democrático. Ficamos com alguns princípios do liberalismo econômico sem a contrapartida da democracia política. Daí a falta de empenho dos liberais republicanos brasileiros, que foram vitoriosos na República Velha com o final do Governo Floriano e com a eleição de Prudente de Morais.
Folha - Seria possível citar duas obras de arte que exemplificassem o tipo de análise que o senhor empreendeu?
Carvalho - A versão positivista é a mais fácil de ilustrar. Aí os exemplos são vários, especialmente o monumento a Benjamin Constant, que se encontra no Rio de Janeiro, na praça da República. Neste monumento fica muito evidente a concepção de República que os positivistas tinham, uma concepção que não era personalista. Eles exaltavam sim um herói, mas procuravam inseri-lo dentro de uma visão muito mais ampla, coletiva. A República brasileira se inscrevia na perspectiva de uma revolução na história da humanidade. Perdia toda conotação de simples mudança de regime político localizado. Este lado universal, nos monumentos positivistas, é representado pela figura feminina. A mulher representa a humanidade. Se a figura feminina não está no topo do monumento, ela está protegendo o herói, orientando os seus passos. Nos monumentos positivistas há sempre menção à Revolução Francesa, no sentido de mostrar que a nossa proclamação é resultado de um movimento que se teria originado em 1789.
Folha - A bandeira brasileira, com o lema positivista "Ordem e Progresso", seria uma vitória dessa vertente diante das outras nessas "guerras de símbolos"?
Carvalho - Sem dúvida. A adoção deste lema, aliás, gerou uma enorme polêmica na época. Muitos protestaram exatamente pelo fato de se adotar o lema positivista, que não era considerado um lema brasileiro. Muitos o atacaram por ser o lema de uma seita. Os positivistas lutaram ferozmente contra uma outra versão da bandeira republicana, a primeira a circular no Rio de Janeiro, pertencente ao clube republicano Lopes Trovão. Era uma cópia da bandeira americana, com aquelas faixas e quadrilátero com estrelas, só que no lugar das cores branco e vermelho, estavam o verde e o amarelo. Esta bandeira foi hasteada no dia 15 na Câmara Municipal. Tratava-se da bandeira de uma república liberal, nos moldes da americana, como defendiam alguns civis republicanos, como Quintino Bocaiúva. Os positivistas se insurgiram e, por conta de sua enorme influência no primeiro governo republicano, sobretudo pela atuação de Benjamin Constant, conseguiram fazer valer a sua versão da bandeira. Este é o exemplo mais claro destas lutas de símbolos entre duas facções republicanas.
Folha - E no que se refere à criação de heróis republicanos? Havia uma dificuldade das três facções republicanas em heroicizar a figura do Marechal Deodoro da Fonseca, embora fosse ele um nome de consenso no instante da proclamação?
Carvalho - O caso de Deodoro é especial. Ele representava a corrente militar, que não era positivista e que tinha um certo apoio de facções liberais. Deodoro era neutro e não era republicano. Ele foi usado apenas como um instrumento de legitimação do novo regime entre os militares. Por isso ele podia ser promovido quase que impunemente, na medida em que sua neutralidade não trazia maiores riscos, para nenhuma das três facções. Esta mesma neutralidade, no entanto, fazia com que Deodoro se tornasse uma figura muito isolada. Ele não despertava controvérsia, mas também não inspirava entusiasmo. Daí a dificuldade em heroicizá-lo, a despeito do fato de que no instante da proclamação ele representasse a unidade dos militares. Se não fosse por Deodoro, os militares não teriam conseguido o mínimo de consenso, a união que permitiu a proclamação. Mas Deodoro não era republicano e não se comportou como um republicano depois que assumiu a presidência. Deodoro não tinha tamanho para o cargo. Não era um estadista e agiu na presidência da República como se fosse um imperador, copiando exatamente os procedimentos da Monarquia. Por isso caiu tão rapidamente em desgraça e acabou obrigado a renunciar. E por isso como herói cívico também não teve êxito.
Folha - Mas o positivista Benjamin Constant, exaltado republicano, também não virou herói...
Carvalho - De fato, Benjamin não teve êxito, apesar de pesadamente promovido pelos positivistas. Ele não tinha um apoio amplo nos meios militares e não tinha apelo emocional para atingir setores mais amplos da população. Mesmo Floriano, o "Marechal de Ferro", não obtinha consenso entre os republicanos, tendo a oposição dos civis liberais. Acho que foi por isso que o próprio Exército posteriormente acabou abandonando essas duas figuras, preferindo heroicizar uma figura da Monarquia, o Duque de Caixas. Isso foi feito na década de 1930. No Rio de Janeiro, então capital da República, os militares chegaram a deslocar fisicamente o monumento a Benjamin Constant, que passou para o jardim da praça da República, construindo no seu lugar um monumento a Duque de Caxias, aquele que conhecemos na avenida Presidente Vargas. A heroicização de Caxias marca o momento em que a corporação militar reivindicou para si própria o papel de garantidora da unidade da pátria. Caxias se tornou o símbolo dessa unidade, o herói que sufocou as revoltas regionais, as ameaças à integridade do território nacional. Caxias foi o herói do Estado Novo porque era o que melhor representava a idéia de que ao Exército cabia exercer o poder moderador como garantia da unidade republicana.
Folha - O Exército demorou cerca de 40 anos para encontrar o seu patrono, a figura certa que cabia no figurino do herói.
Carvalho - Sim. Isto tem a ver com as próprias transformações do papel do Exército na história brasileira. Foi somente a custa de grandes expurgos, e sobretudo após 1935, que o Exército brasileiro se transformou a ponto de se definir como detentor de um poder moderador, de garantidor da unidade. Antes disto, o Exército era fragmentado, tinha facções lutando em direções diversas e não tinha atuação política como um todo, como um bloco. Por isso não era eficiente politicamente. Eu não digo que a partir de 1930 a diversidade de facções internas tenha sido eliminada, mas sim que passou a haver a hegemonia de uma determinada facção sobre as demais. Esta facção hegemônica passou a definir o papel político da corporação.
Folha - E Tiradentes? Seria um símbolo da pátria concorrente de Caxias?
Carvalho - Caxias é um herói militar, um modelo para o Exército, enquanto que Tiradentes é um herói da pátria, de apelo popular. Esta dificuldade de se transformar alguns dos principais participantes do 15 de novembro em heróis, cada um por razões diferentes - um porque era militar e não apelava aos civis, outro porque era ateu e não apelava aos cristãos, outro porque era radical demais e não atendia aos moderados -, foi percebida rapidamente. O que aconteceu foi que então os republicanos começaram a trabalhar com muito mais intensidade a figura de Tiradentes, que tinha a vantagem de representar também a Independência. Tiradentes dava à República um enraizamento histórico que certamente Deodoro não poderia dar por ter sido republicano apenas no dia 15. Se a propaganda republicana já explorava a figura de Tiradentes, com a proclamação este investimento simbólico adquiriu uma dimensão muito maior. A minha hipótese é a de que Tiradentes foi capaz de se tornar o centro desse investimento por que atendia a todos, tinha um apelo difuso. Era um herói extremamente maleável. Aos jacobinos interessava o fato de que foi líder de uma revolta republicana. Tiradentes servia melhor do que Frei Caneca ou de que Bento Gonçalves, porque sobre os outros recaía uma suspeita de localismo, de líderes que pensavam apenas regionalmente enquanto Tiradentes parecia nacional. Para os moderados, Tiradentes tinha a vantagem de ser um herói menos agressivo do que Frei Caneca, que morreu gritando "viva a liberdade" e liderou uma revolta nas ruas em que se derramou muito sangue. Tiradentes só derramou o próprio sangue, um mártir, não matou.
Folha - E Tiradentes se tornou místico sem estar ligado a uma igreja determinada.
Carvalho - O que também era bastante conveniente. Tiradentes se ofereceu ao sacrifício; teve, em meio ao seu misticismo, uma postura de mártir. Daí porque sua figura foi se assemelhando, na arte e nos símbolos republicanos, a Cristo. Tiradentes foi sendo progressivamente "cristianizado", o que lhe emprestou um forte apelo popular. Até hoje é assim. Quando Tancredo Neves morreu, não faltou quem lembrasse o fato de que sua morte ocorria num 21 de abril e que portanto se tratava de mais um sacrifício no altar da pátria. Esta maleabilidade da figura de Tiradentes e a possibilidade de que sua memória fosse esquartejada entre facções republicanas diversas fizeram com que ele se transformasse rapidamente num herói de consenso. É uma figura que até hoje permanece um símbolo poderoso.
Folha - Esse apelo que símbolos como Tiradentes ainda exercem sobre os brasileiros significa que até hoje somos "bestializados"?
Carvalho - Até o final da República Velha a participação popular era nula inclusive em termos eleitorais. As formas legais de participação política que o sistema propunha eram ínfimas, inacessíveis para a esmagadora maioria. Isto hoje não é verdade. Hoje, a participação popular através desses mecanismos formais é muito grande. Também se desenvolveram outros mecanismos de mobilização popular, além do voto, como a organização sindical, as associações de moradores etc. O que eu diria é que não há ainda uma certa identificação simbólica com a República. Hoje a bandeira nacional e o hino são símbolos cívicos que têm raízes populares, como Tiradentes é uma figura de apelo popular. Mas não há entre nós o sentimento de legitimidade do sistema político como tal. As pessoas podem se sentir pertencendo ao Brasil de maneira mais geral, mas não se generalizou o sentimento de que as nossas instituições políticas são merecedoras de lealdade. A população não presta lealdade a partidos, ao Congresso, aos poderes constituídos. Este ainda é um problema muito sério no Brasil. Aqui existem vários níveis de cidadania. Entre nós é possível encontrar grupos extensos que comungam do sentimento de pertencimento a uma determinada igreja, a uma certa seita, mas não existe um sentimento coletivo, nacional de pertencimento a um sistema político, de defesa das instituições, dos poderes constituídos. Essa defasagem entre as formas de cidadanias civis e a cidadania política é que ainda permanece um problema.
Folha - Não basta que o sistema político tenha ampliado o acesso da população às instâncias de decisão política.
Carvalho - Não basta eleger um presidente. Se o sistema como tal não funciona, não vai ser a eleição de uma figura que vai solucionar os problemas do país. Todas as críticas que se fazem hoje ao presidente Fernando Collor de Mello, chamando-o de autoritário, de arbitrário etc, são acusações pessoais, diretas. E que se fazem num contexto em que todas as instâncias do sistema político deveriam estar funcionando. Mas se um presidente da República pode agir de maneira arbitrária é porque o sistema não está funcionando, é porque os órgãos que estão aí definidos exatamente para evitar que isso aconteça não se encontram desempenhando o seu papel. Se um presidente permanece fora da legalidade é que o sistema não funciona. Uma crítica que se limite à figura do presidente relega a segundo plano o funcionamento do próprio sistema político. Tende a ser uma crítica udenista, potencialmente golpista. Implicitamente aí está embutida a idéia de que a solução seria tirar aquela figura do poder e substituí-la por outra!
Folha - O senhor considera que a Nova República representa um prolongamento civil das formas de autoritarismo dos governos militares?
Carvalho - A Nova República não representou um corte grande em relação ao passado. Durante o governo Sarney isto já havia ficado claro. Os partidos e a imprensa eram livres, mas a influência e o papel dos militares era inequívoca, com o mesmo poder que tinham antes. Eu creio que o novo governo introduziu modificações importantes. No que se refere aos militares, este governo já fez valer várias medidas que o Congresso não teve coragem de passar, como modificar o SNI e acabar com ministérios militares. Mas o ponto que talvez seja o mais interessante é que o presidente Collor conseguiu vencer as eleições através de certos elementos que são simbólicos. Esse apelo que ele representou diante de boa parte da população teve diretamente a ver com a imagem que ele projetava na mídia, unindo uma certa impressão de vitalidade com uma forte expressão messiânica. Essa insistência em símbolos personalistas é muito perigosa, trabalha no sentido inverso ao da consolidação das instituições democráticas.
Folha - O senhor não acha que o fim da Guerra Fria e a necessidade de uma integração política da América Latina podem mudar a triste história do continente?
Carvalho - Estamos vivendo talvez uma nova divisão de blocos, talvez sejamos levados a uma divisão tripartite, com uma Europa fortalecida, uma Ásia sob a hegemonia japonesa e uma América sob influência dos Estados Unidos. Se essa tendência se confirmar, vai redundar em investimentos americanos nos países latinos. Isto pode facilitar a resolução de problemas como a dívida externa, mas de outro lado vai significar uma pressão política muito maior e tensões muito grandes. O problema da identidade latino-americana vai se agravar. Será preciso perguntar se existe uma América Latina ou se isto também é uma construção. No caso das ciências humanas, existe uma tradição de pensamento que se prende à necessidade de criar uma identidade nacional e não latino-americana. No caso brasileiro, isto é muito forte. É preciso repensar esta tradição. O esforço no sentido do diálogo científico e cultural é fundamental, como demonstra a experiência das revistas-irmãs como "Ciência Hoje", no Brasil, e "Ciencia Hoy", na Argentina. Os projetos de cooperação internacional dos países que compartilham da floresta amazônica são outro exemplo importante. Uma integração do continente apenas no sentido de ampliar o mercado consumidor norte-americano seria uma tragédia sem precedentes para todos nós.


"O deodorismo aparece com nitidez no conhecido óleo de H. Bernardelli que representa a proclamação da República. O quadro é totalmente dominado pela imagem equestre do marechal, que ocupa todo o primeiro plano. As outras figuras aparecem ao fundo e em postura secundária. Lá estão Benjamin, em pé de igualdade com Quintino Bocaiúva, ambos a cavalo, e, a pé, Aristides Lobo. O estilo do quadro é o da clássica exaltação do herói militar, elevado sobre o comum dos mortais montando fogoso animal. É a exaltação do grande homem vitorioso, fazedor da história. A ênfase personalista é ainda maior do que a do quadro de Pedro Américo sobre a proclamação da Independência. Aí a figura de Pedro I aparece interagindo com várias outras. Há ação coletiva no quadro de Pedro Américo, ação que está ausente no de Bernardelli, talvez mesmo porque houvesse menor necessidade de afirmar o papel do primeiro imperador nos acontecimentos. Só falta ao quadro de Bernardelli a espada, o símbolo da ação militar. Mas a falta se deve certamente ao fato de ter Deodoro posado para o quadro. A 15 de novembro, ele não levava espada, apesar de depoimentos em contrário."


"Frei Caneca era um competidor mais sério. Herói de duas revoltas, uma pela independência, a outra contra o absolutismo do primeiro imperador, morrera também como mártir, fuzilado, pois nenhum carrasco se dispusera a enforcá-lo. (...) Em vários discursos no Clube Tiradentes, mencionava-se o fato de não ter sido o herói mineiro o único mártir republicano, nem o primeiro. (...) Tiradentes era o herói de uma área que, a partir da metade do século 19, já podia ser considerada o centro político do país - Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, as três capitanias que ele buscou, num primeiro momento, tornar independentes. Aí foi também mais forte o republicanismo e mais difundidos os clubes Tiradentes. O Nordeste, ao final do século 19, era uma região em decadência econômica e política e não se distinguia pela pujança do movimento republicano. Além do mais, a Confederação do Equador também apresentara tintas separatistas que a maculavam como movimento nacional. Se é verdade que a Inconfidência tinha em vista a libertação de apenas três capitanias, isso não se devia a qualquer idéia separatista, mas a um cálculo tático. Libertadas as três, as outras seguiriam com a maior facilidade."

Extraídos de "A Formação das Almas"


Entrevista feita por Marília Martins
Da equipe de articulistas


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