O mineiro José Murilo de Carvalho, 50 anos, costuma se definir
como um "misto de sociólogo e cientista político
com vocação de historiador". E talvez seja exatamente
essa formação interdisciplinar que permite que seus
livros alcancem um público universitário amplo o bastante
para esgotar três edições sucessivas, como é
o caso do seu "Os Bestializados", publicado pela Companhia
das Letras (em 1987). Para agosto, na Bienal do Livro de São
Paulo, a mesma editora prepara o lançamento de "A Formação
das Almas: o Imaginário da República", em que José
Murilo se aventura pelas fronteiras entre a história das mentalidades
e a ciência política. Dividindo seu tempo entre o Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), a Fundação
Casa de Rui Barbosa e a edição da revista "Ciência
Hoje", ele desvenda, nesta entrevista, o tema desse novo lançamento:
a "guerra de símbolos" que tem sido marca da história
republicana, onde se disputam bandeiras, monumentos e heróis.
Folha
- Por que o senhor resolveu votar ao tema da República, já
explorado no seu livro anterior, "Os Bestializados"?
José Murilo de Carvalho - O que me levou a escrever
esse novo livro foi exatamente o resultado da pesquisa desenvolvida
em "Os Bestializados", onde eu chegava à conclusão
de que a República foi um movimento político no qual
houve uma participação muito reduzida da população,
sobretudo da população do Rio de Janeiro. A população,
como se dizia na época, ficou "bestializada" com
aqueles eventos. Eu comecei a me perguntar se não teria havido
por parte dos republicanos uma tentativa de tornar a República
mais popular e legítima, depois de proclamada. O que teriam
feito para "vender" a idéia da República
para essa população. A implantação de
qualquer regime político tem na aceitação popular
uma condição fundamental para sua sobrevivência.
Procurei verificar se teria havido essa tentativa de "vender"
a idéia republicana, de atingir setores mais amplos da população,
procurando avaliar em que medida esse esforço teria tido
algum êxito, teria conseguido alcançar os corações
e mentes dos brasileiros.
Folha - É nesse sentido que o senhor fala de um "imaginário"
da República?
Carvalho - Eu resolvi sair do mundo estrito da elite política,
em que se lida com ideologias. Há um capítulo em que
eu discuto o que se poderia chamar de uma "utopia republicana",
algo mais elaborado, que pertence ao "discurso das elites",
dos intelectuais republicanos, que eram quase todos políticos
militantes. No resto do livro saí desse círculo porque
me interessava perceber o esforço de se atingir segmentos
mais amplos da população. Eu teria inclusive que ir
além da análise da linguagem escrita, de alcance muito
reduzido num país com mais de 80% de analfabetos. Procurei
me concentrar na arte, nos monumentos públicos, na arquitetura,
nos símbolos cívicos da pátria, na criação
de heróis e de mitos políticos. Discuti a produção
de um mito de origem da República, de uma versão oficial
do evento da proclamação, tentando dar ao movimento
uma conotação mais popular do que a que de fato teve.
Pesquisei a busca de um herói republicano, ou seja, o esforço
de se encontrar uma figura cívica com um perfil histórico
que pudesse simbolizar os ideais republicanos. E também o
uso de certas alegorias, à semelhança do que aconteceu
com a Revolução Francesa, que influenciou muito diretamente
os nossos republicanos. A representação da República
através da alegoria feminina foi muito utilizada tanto na
França quanto no Brasil. Examinei também os próprios
símbolos nacionais republicanos, o hino e a bandeira, para
mostrar como, através desses instrumentos de comunicação,
se tentou atingir o "imaginário coletivo" e criar
um ambiente favorável ao novo regime, expandir a sua legitimidade.
Folha - O senhor chegou a examinar peças de teatro?
Carvalho - Não cheguei a trabalhar com a literatura.
O teatro serviria para a minha análise porque atingia um
público bem mais amplo do que a literatura. Seria um capítulo
que não escrevi. Fiquei na pintura, na escultura, nos monumentos
públicos, na arquitetura, nas charges e caricaturas, nos
símbolos cívicos tradicionais.
Folha - Trata-se de uma mudança na sua linha de pesquisa?
Carvalho - A novidade desse trabalho em relação
aos anteriores é o fato de que eu não me mantive apenas
no terreno das idéias e do comportamento político.
Eu senti a necessidade de ir um pouco mais além, de explorar
o que estaria na cabeça das pessoas, de saber qual seria
o seu mundo de valores. Foi essa necessidade que me levou a um trabalho
interdisciplinar, envolvendo história, artes plásticas,
arquitetura, ciência política, estudo de comportamento
etc. Na efervescência atual dos estudos históricos
no Brasil creio que há trabalhos muito interessantes nessa
direção. No meu caso, eu gostaria de citar a influência
fundamental dos trabalhos de Alexandre Eulálio, que soube
fazer com a história da arte uma análise social e
política muito reveladora. Estou convencido de que só
com um esforço interdisciplinar se pode compreender a permanência
e a eficácia da tradição elitista no Brasil.
Folha - O senhor destacou o fato de que o movimento republicano
não era um bloco uno, coeso. Haveria uma acirrada disputa
interna na construção desses símbolos?
Carvalho - Sem dúvida. Essas várias vertentes
usavam de maneiras muito distintas o instrumento simbólico.
A vertente que eu defino como liberal quase não se utilizava
dos símbolos, porque a ela não interessava que a República
fosse popular. As outras duas vertentes, que eu chamo de vertentes
jacobina e positiva, foram as que mais particularmente investiram
nessa guerra de símbolos. A vertente jacobina inspirava-se
diretamente na Revolução Francesa, no uso da alegoria
feminina da República ou na preferência pelo hino francês,
cantando "A Marselhesa" pelas ruas. Comparados aos jacobinos,
os positivistas eram ainda mais empenhados. Eram positivistas aqueles
que haviam formulado mais claramente uma idéia de República
incluindo um projeto de utilização da arte como instrumento
de doutrinação política. Foram os positivistas
os que mais sistematicamente empregaram esses mecanismos, formando
pintores positivistas, escultores positivistas.
Folha - A que o senhor atribui a falta de empenho dos liberais
republicanos nessa guerra de símbolos?
Carvalho - Há duas razões. Primeiro, o modelo
de revolução republicana liberal era o modelo americano,
que, pelo fato de ter contado com uma participação
popular muito grande por conta da guerra de libertação,
teve muito menos necessidade de recorrer a símbolos para
legitimar a República e a Independência do país.
Nos eventos que geraram a independência americana, a participação
popular estava no próprio movimento. A própria bandeira
americana se desenvolveu muito lentamente e o hino americano só
foi definido na década de 1930! Até então os
americanos usavam mais der um hino nos eventos cívicos. Não
havia preocupação e nem necessidade destes símbolos.
Você poderia me dizer que na Revolução Francesa
também houve participação popular e que nem
por isso deixou de haver o recurso aos símbolos. Acontece
que na Revolução Francesa havia divisões muito
grandes. A Revolução e a República na França
representavam setores da população e durante um século
ou mais houve uma disputa enorme entre as várias facções
monarquistas e republicanas. A segunda razão a impedir os
liberais republicanos brasileiros de ingressar nessa batalha pelo
imaginário republicano foi o desinteresse desses militantes
em popularizar as idéias liberais. No Brasil a própria
adoção do liberalismo se fez de maneira perversa.
Nos Estados Unidos, o liberalismo envolvia a participação
popular. Aqui ele foi apropriado pelas elites agrárias que
dele tiravam apenas os elementos que interessavam. A defesa de uma
economia de mercado se traduzia na reivindicação de
uma descentralização política que enfatizava
o federalismo, mas que propositadamente excluía o aspecto
democrático. Ficamos com alguns princípios do liberalismo
econômico sem a contrapartida da democracia política.
Daí a falta de empenho dos liberais republicanos brasileiros,
que foram vitoriosos na República Velha com o final do Governo
Floriano e com a eleição de Prudente de Morais.
Folha - Seria possível citar duas obras de arte que exemplificassem
o tipo de análise que o senhor empreendeu?
Carvalho - A versão positivista é a mais fácil
de ilustrar. Aí os exemplos são vários, especialmente
o monumento a Benjamin Constant, que se encontra no Rio de Janeiro,
na praça da República. Neste monumento fica muito
evidente a concepção de República que os positivistas
tinham, uma concepção que não era personalista.
Eles exaltavam sim um herói, mas procuravam inseri-lo dentro
de uma visão muito mais ampla, coletiva. A República
brasileira se inscrevia na perspectiva de uma revolução
na história da humanidade. Perdia toda conotação
de simples mudança de regime político localizado.
Este lado universal, nos monumentos positivistas, é representado
pela figura feminina. A mulher representa a humanidade. Se a figura
feminina não está no topo do monumento, ela está
protegendo o herói, orientando os seus passos. Nos monumentos
positivistas há sempre menção à Revolução
Francesa, no sentido de mostrar que a nossa proclamação
é resultado de um movimento que se teria originado em 1789.
Folha - A bandeira brasileira, com o lema positivista "Ordem
e Progresso", seria uma vitória dessa vertente diante
das outras nessas "guerras de símbolos"?
Carvalho - Sem dúvida. A adoção deste
lema, aliás, gerou uma enorme polêmica na época.
Muitos protestaram exatamente pelo fato de se adotar o lema positivista,
que não era considerado um lema brasileiro. Muitos o atacaram
por ser o lema de uma seita. Os positivistas lutaram ferozmente
contra uma outra versão da bandeira republicana, a primeira
a circular no Rio de Janeiro, pertencente ao clube republicano Lopes
Trovão. Era uma cópia da bandeira americana, com aquelas
faixas e quadrilátero com estrelas, só que no lugar
das cores branco e vermelho, estavam o verde e o amarelo. Esta bandeira
foi hasteada no dia 15 na Câmara Municipal. Tratava-se da
bandeira de uma república liberal, nos moldes da americana,
como defendiam alguns civis republicanos, como Quintino Bocaiúva.
Os positivistas se insurgiram e, por conta de sua enorme influência
no primeiro governo republicano, sobretudo pela atuação
de Benjamin Constant, conseguiram fazer valer a sua versão
da bandeira. Este é o exemplo mais claro destas lutas de
símbolos entre duas facções republicanas.
Folha - E no que se refere à criação de
heróis republicanos? Havia uma dificuldade das três
facções republicanas em heroicizar a figura do Marechal
Deodoro da Fonseca, embora fosse ele um nome de consenso no instante
da proclamação?
Carvalho - O caso de Deodoro é especial. Ele representava
a corrente militar, que não era positivista e que tinha um
certo apoio de facções liberais. Deodoro era neutro
e não era republicano. Ele foi usado apenas como um instrumento
de legitimação do novo regime entre os militares.
Por isso ele podia ser promovido quase que impunemente, na medida
em que sua neutralidade não trazia maiores riscos, para nenhuma
das três facções. Esta mesma neutralidade, no
entanto, fazia com que Deodoro se tornasse uma figura muito isolada.
Ele não despertava controvérsia, mas também
não inspirava entusiasmo. Daí a dificuldade em heroicizá-lo,
a despeito do fato de que no instante da proclamação
ele representasse a unidade dos militares. Se não fosse por
Deodoro, os militares não teriam conseguido o mínimo
de consenso, a união que permitiu a proclamação.
Mas Deodoro não era republicano e não se comportou
como um republicano depois que assumiu a presidência. Deodoro
não tinha tamanho para o cargo. Não era um estadista
e agiu na presidência da República como se fosse um
imperador, copiando exatamente os procedimentos da Monarquia. Por
isso caiu tão rapidamente em desgraça e acabou obrigado
a renunciar. E por isso como herói cívico também
não teve êxito.
Folha - Mas o positivista Benjamin Constant, exaltado republicano,
também não virou herói...
Carvalho - De fato, Benjamin não teve êxito,
apesar de pesadamente promovido pelos positivistas. Ele não
tinha um apoio amplo nos meios militares e não tinha apelo
emocional para atingir setores mais amplos da população.
Mesmo Floriano, o "Marechal de Ferro", não obtinha
consenso entre os republicanos, tendo a oposição dos
civis liberais. Acho que foi por isso que o próprio Exército
posteriormente acabou abandonando essas duas figuras, preferindo
heroicizar uma figura da Monarquia, o Duque de Caixas. Isso foi
feito na década de 1930. No Rio de Janeiro, então
capital da República, os militares chegaram a deslocar fisicamente
o monumento a Benjamin Constant, que passou para o jardim da praça
da República, construindo no seu lugar um monumento a Duque
de Caxias, aquele que conhecemos na avenida Presidente Vargas. A
heroicização de Caxias marca o momento em que a corporação
militar reivindicou para si própria o papel de garantidora
da unidade da pátria. Caxias se tornou o símbolo dessa
unidade, o herói que sufocou as revoltas regionais, as ameaças
à integridade do território nacional. Caxias foi o
herói do Estado Novo porque era o que melhor representava
a idéia de que ao Exército cabia exercer o poder moderador
como garantia da unidade republicana.
Folha - O Exército demorou cerca de 40 anos para encontrar
o seu patrono, a figura certa que cabia no figurino do herói.
Carvalho - Sim. Isto tem a ver com as próprias transformações
do papel do Exército na história brasileira. Foi somente
a custa de grandes expurgos, e sobretudo após 1935, que o
Exército brasileiro se transformou a ponto de se definir
como detentor de um poder moderador, de garantidor da unidade. Antes
disto, o Exército era fragmentado, tinha facções
lutando em direções diversas e não tinha atuação
política como um todo, como um bloco. Por isso não
era eficiente politicamente. Eu não digo que a partir de
1930 a diversidade de facções internas tenha sido
eliminada, mas sim que passou a haver a hegemonia de uma determinada
facção sobre as demais. Esta facção
hegemônica passou a definir o papel político da corporação.
Folha - E Tiradentes? Seria um símbolo da pátria
concorrente de Caxias?
Carvalho - Caxias é um herói militar, um modelo
para o Exército, enquanto que Tiradentes é um herói
da pátria, de apelo popular. Esta dificuldade de se transformar
alguns dos principais participantes do 15 de novembro em heróis,
cada um por razões diferentes - um porque era militar e não
apelava aos civis, outro porque era ateu e não apelava aos
cristãos, outro porque era radical demais e não atendia
aos moderados -, foi percebida rapidamente. O que aconteceu foi
que então os republicanos começaram a trabalhar com
muito mais intensidade a figura de Tiradentes, que tinha a vantagem
de representar também a Independência. Tiradentes dava
à República um enraizamento histórico que certamente
Deodoro não poderia dar por ter sido republicano apenas no
dia 15. Se a propaganda republicana já explorava a figura
de Tiradentes, com a proclamação este investimento
simbólico adquiriu uma dimensão muito maior. A minha
hipótese é a de que Tiradentes foi capaz de se tornar
o centro desse investimento por que atendia a todos, tinha um apelo
difuso. Era um herói extremamente maleável. Aos jacobinos
interessava o fato de que foi líder de uma revolta republicana.
Tiradentes servia melhor do que Frei Caneca ou de que Bento Gonçalves,
porque sobre os outros recaía uma suspeita de localismo,
de líderes que pensavam apenas regionalmente enquanto Tiradentes
parecia nacional. Para os moderados, Tiradentes tinha a vantagem
de ser um herói menos agressivo do que Frei Caneca, que morreu
gritando "viva a liberdade" e liderou uma revolta nas
ruas em que se derramou muito sangue. Tiradentes só derramou
o próprio sangue, um mártir, não matou.
Folha - E Tiradentes se tornou místico sem estar ligado
a uma igreja determinada.
Carvalho - O que também era bastante conveniente.
Tiradentes se ofereceu ao sacrifício; teve, em meio ao seu
misticismo, uma postura de mártir. Daí porque sua
figura foi se assemelhando, na arte e nos símbolos republicanos,
a Cristo. Tiradentes foi sendo progressivamente "cristianizado",
o que lhe emprestou um forte apelo popular. Até hoje é
assim. Quando Tancredo Neves morreu, não faltou quem lembrasse
o fato de que sua morte ocorria num 21 de abril e que portanto se
tratava de mais um sacrifício no altar da pátria.
Esta maleabilidade da figura de Tiradentes e a possibilidade de
que sua memória fosse esquartejada entre facções
republicanas diversas fizeram com que ele se transformasse rapidamente
num herói de consenso. É uma figura que até
hoje permanece um símbolo poderoso.
Folha - Esse apelo que símbolos como Tiradentes ainda
exercem sobre os brasileiros significa que até hoje somos
"bestializados"?
Carvalho - Até o final da República Velha a
participação popular era nula inclusive em termos
eleitorais. As formas legais de participação política
que o sistema propunha eram ínfimas, inacessíveis
para a esmagadora maioria. Isto hoje não é verdade.
Hoje, a participação popular através desses
mecanismos formais é muito grande. Também se desenvolveram
outros mecanismos de mobilização popular, além
do voto, como a organização sindical, as associações
de moradores etc. O que eu diria é que não há
ainda uma certa identificação simbólica com
a República. Hoje a bandeira nacional e o hino são
símbolos cívicos que têm raízes populares,
como Tiradentes é uma figura de apelo popular. Mas não
há entre nós o sentimento de legitimidade do sistema
político como tal. As pessoas podem se sentir pertencendo
ao Brasil de maneira mais geral, mas não se generalizou o
sentimento de que as nossas instituições políticas
são merecedoras de lealdade. A população não
presta lealdade a partidos, ao Congresso, aos poderes constituídos.
Este ainda é um problema muito sério no Brasil. Aqui
existem vários níveis de cidadania. Entre nós
é possível encontrar grupos extensos que comungam
do sentimento de pertencimento a uma determinada igreja, a uma certa
seita, mas não existe um sentimento coletivo, nacional de
pertencimento a um sistema político, de defesa das instituições,
dos poderes constituídos. Essa defasagem entre as formas
de cidadanias civis e a cidadania política é que ainda
permanece um problema.
Folha - Não basta que o sistema político tenha
ampliado o acesso da população às instâncias
de decisão política.
Carvalho - Não basta eleger um presidente. Se o sistema
como tal não funciona, não vai ser a eleição
de uma figura que vai solucionar os problemas do país. Todas
as críticas que se fazem hoje ao presidente Fernando Collor
de Mello, chamando-o de autoritário, de arbitrário
etc, são acusações pessoais, diretas. E que
se fazem num contexto em que todas as instâncias do sistema
político deveriam estar funcionando. Mas se um presidente
da República pode agir de maneira arbitrária é
porque o sistema não está funcionando, é porque
os órgãos que estão aí definidos exatamente
para evitar que isso aconteça não se encontram desempenhando
o seu papel. Se um presidente permanece fora da legalidade é
que o sistema não funciona. Uma crítica que se limite
à figura do presidente relega a segundo plano o funcionamento
do próprio sistema político. Tende a ser uma crítica
udenista, potencialmente golpista. Implicitamente aí está
embutida a idéia de que a solução seria tirar
aquela figura do poder e substituí-la por outra!
Folha - O senhor considera que a Nova República representa
um prolongamento civil das formas de autoritarismo dos governos
militares?
Carvalho - A Nova República não representou
um corte grande em relação ao passado. Durante o governo
Sarney isto já havia ficado claro. Os partidos e a imprensa
eram livres, mas a influência e o papel dos militares era
inequívoca, com o mesmo poder que tinham antes. Eu creio
que o novo governo introduziu modificações importantes.
No que se refere aos militares, este governo já fez valer
várias medidas que o Congresso não teve coragem de
passar, como modificar o SNI e acabar com ministérios militares.
Mas o ponto que talvez seja o mais interessante é que o presidente
Collor conseguiu vencer as eleições através
de certos elementos que são simbólicos. Esse apelo
que ele representou diante de boa parte da população
teve diretamente a ver com a imagem que ele projetava na mídia,
unindo uma certa impressão de vitalidade com uma forte expressão
messiânica. Essa insistência em símbolos personalistas
é muito perigosa, trabalha no sentido inverso ao da consolidação
das instituições democráticas.
Folha - O senhor não acha que o fim da Guerra Fria e a
necessidade de uma integração política da América
Latina podem mudar a triste história do continente?
Carvalho - Estamos vivendo talvez uma nova divisão
de blocos, talvez sejamos levados a uma divisão tripartite,
com uma Europa fortalecida, uma Ásia sob a hegemonia japonesa
e uma América sob influência dos Estados Unidos. Se
essa tendência se confirmar, vai redundar em investimentos
americanos nos países latinos. Isto pode facilitar a resolução
de problemas como a dívida externa, mas de outro lado vai
significar uma pressão política muito maior e tensões
muito grandes. O problema da identidade latino-americana vai se
agravar. Será preciso perguntar se existe uma América
Latina ou se isto também é uma construção.
No caso das ciências humanas, existe uma tradição
de pensamento que se prende à necessidade de criar uma identidade
nacional e não latino-americana. No caso brasileiro, isto
é muito forte. É preciso repensar esta tradição.
O esforço no sentido do diálogo científico
e cultural é fundamental, como demonstra a experiência
das revistas-irmãs como "Ciência Hoje", no
Brasil, e "Ciencia Hoy", na Argentina. Os projetos de
cooperação internacional dos países que compartilham
da floresta amazônica são outro exemplo importante.
Uma integração do continente apenas no sentido de
ampliar o mercado consumidor norte-americano seria uma tragédia
sem precedentes para todos nós.
"O deodorismo aparece com nitidez no conhecido óleo
de H. Bernardelli que representa a proclamação da
República. O quadro é totalmente dominado pela imagem
equestre do marechal, que ocupa todo o primeiro plano. As outras
figuras aparecem ao fundo e em postura secundária. Lá
estão Benjamin, em pé de igualdade com Quintino Bocaiúva,
ambos a cavalo, e, a pé, Aristides Lobo. O estilo do quadro
é o da clássica exaltação do herói
militar, elevado sobre o comum dos mortais montando fogoso animal.
É a exaltação do grande homem vitorioso, fazedor
da história. A ênfase personalista é ainda maior
do que a do quadro de Pedro Américo sobre a proclamação
da Independência. Aí a figura de Pedro I aparece interagindo
com várias outras. Há ação coletiva
no quadro de Pedro Américo, ação que está
ausente no de Bernardelli, talvez mesmo porque houvesse menor necessidade
de afirmar o papel do primeiro imperador nos acontecimentos. Só
falta ao quadro de Bernardelli a espada, o símbolo da ação
militar. Mas a falta se deve certamente ao fato de ter Deodoro posado
para o quadro. A 15 de novembro, ele não levava espada, apesar
de depoimentos em contrário."
"Frei Caneca era um competidor mais sério. Herói
de duas revoltas, uma pela independência, a outra contra o
absolutismo do primeiro imperador, morrera também como mártir,
fuzilado, pois nenhum carrasco se dispusera a enforcá-lo.
(...) Em vários discursos no Clube Tiradentes, mencionava-se
o fato de não ter sido o herói mineiro o único
mártir republicano, nem o primeiro. (...) Tiradentes era
o herói de uma área que, a partir da metade do século
19, já podia ser considerada o centro político do
país - Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, as
três capitanias que ele buscou, num primeiro momento, tornar
independentes. Aí foi também mais forte o republicanismo
e mais difundidos os clubes Tiradentes. O Nordeste, ao final do
século 19, era uma região em decadência econômica
e política e não se distinguia pela pujança
do movimento republicano. Além do mais, a Confederação
do Equador também apresentara tintas separatistas que a maculavam
como movimento nacional. Se é verdade que a Inconfidência
tinha em vista a libertação de apenas três capitanias,
isso não se devia a qualquer idéia separatista, mas
a um cálculo tático. Libertadas as três, as
outras seguiriam com a maior facilidade."
Extraídos
de "A Formação das Almas"
Entrevista feita por Marília Martins
Da equipe de articulistas
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