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O polêmico crítico americano diz que é um 'mensageiro antiético' e fala sobre seu livro que está saindo no Brasil

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 31 de agosto de 1991

Bernardo De Carvalho
De Nova York

"A Angústia da Influência" (1973) é o livro que confirmou o nome de Harold Bloom, 61, entre os principais críticos literários americanos. Foi o início de uma teoria revisionista em que a tradição literária é vista como um ciclo interminável onde os novos escritores distorcem seus precursores na tentativa de criar suas próprias obras. Bloom se serve de Freud, Nietzche e Borges para construir uma teoria onde "o sentido de um poema é que há outro poema", onde "se caminha entre poemas".
O livro causou escândalo. Muitos escritores americanos não suportaram a idéia de verem suas obras reduzidas à relação angustiada que manteriam com seus precursores. Era o objetivo de Bloom, que se autodenomina um "humorista antiético". Seus livros seriam piadas contra todas as ortodoxias. A última foi "The Book of J", onde o crítico lança a hipótese de que não apenas houve um autor da Bíblia mas que este era uma mulher.
O próximo livro de Bloom, "The American Religion", trata das origens da religião americana - os mórmons, a Igreja Batista -, investigando o entusiasmo e os traços de orfismo nesses cultos. "Espero que seja recebido ainda com maior fúria que 'The Book of J", diz o crítico.

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Folha - Como o sr. chegou à idéia de "angústia da influência"?
Harold Bloom - Foi uma coisa desenvolvida organicamente ao longo de muitos anos de trabalho. Comecei como professor em Yale quando eu era muito jovem, escrevendo sobre Shelley e Blake e os poetas românticos. Fiquei muito interessado na relação desses poetas com os românticos do século 20, como Yats e Wallace Stevens. Mas começou também por causa de uma crise pessoal, no verão de 67. Tive um terrível pesadelo numa noite. Um anjo enorme, que eu acabei identificando com o querubim do profeta Ezequiel, me oprimia e me sufocava. Acordei no dia seguinte tentando interpretar o sonho, e me convenci, já que eu vinha estudando aquela figura do anjo caído, de que ele estava tentando me fazer capitular. Foi aí que tive a idéia do esboço do que se tornou o primeiro capítulo de "A Angústia da Influência" e que era muito diferente do que acabou sendo publicado.
Folha - O sr. cita a idéia de Borges de que os poetas criam os seus precursores. Essa é uma idéia muito semelhante à do seu livro.
Bloom - Foi um dos meus pontos de partida, é claro. Borges sempre escreve parábolas sobre isso, como quando diz sobre Shakespeare que ele era todos e nenhum. Não sei se não foi mais da leitura de Borges que de qualquer outro que tirei essa idéia. Só me dei conta disso quando escrevi "A Map of Misreading" e "Kabbalah and Criticism" e comecei a tentar explicar minhas idéias e metáforas em termos de uma terminologia cabalística.
Folha - Mas como é que o sr. lida com a sua própria "angústica de influência" em relação aos seus percursores?
Bloom - Continuo escrevendo. É a única maneira de lidar com isso. Acho que Borges, por exemplo, dissimulou essa angústia. A razão pela qual só escreveu histórias intricadas, que são variações interpretativas de escritores precedentes, é que ele não queria confrontar o seu próprio "romance familiar". Por razões óbvias, como a relação muito próxima com a mãe. Ele não queira confrontar nem as suas próprias idéias sobre a influência. No meu caso, a razão pela qual eu dirigi as minhas energias literárias para a crítica e não para a poesia vem do fato de que aceito a angústia da influência e sei que não posso escapar dela.
Folha - Mas o sr. também diz que não há diferença em gênero entre crítica literária e poesia.
Bloom - Mas o fato de não haver diferença em gênero significa que há diferença em grau. Se você tem o objetivo de escrever seus próprios poemas, você não pode aceitar uma teoria como a da angústia da influência. Você tem que se irritar com ela, tem que protestar, tem que escapar dela. Há muitos poetas e escritores americanos, por exemplo, que não suportam o que eu faço e manifestam uma grande violência. Foi uma coisa que me veio um dia quando estava tentando entender por que escritores aceitavam sem problemas o que faz Jacques Derrida e ficavam tão bravos com o que eu escrevo. É porque Derrida torna muito fácil para qualquer escritor acreditar que é muito mais brilhante do que na realidade é. Tudo é discurso, energias, escritura. O que eu faço é dizer-lhes que tudo o que fazem é um eco, uma sombra, vem de uma série de espelhos infinitos.
Folha - Que escritores, por exemplo?
Bloom - Joyce Carol Oates está sempre me denunciando em entrevistas. Dizendo que tudo isso não existe. Dizem que é tudo uma doença minha. Se você traz más notícias, eles gostam de você. Sempre achei que era minha função como crítico ou escritor trazer más notícias. Ser o transportador antiético. Ninguém gosta de um mensageiro que traz más notícias. Veja a reação de Cleópatra na peça de Shakespeare, que começa a bater no mensageiro. É uma velha tradição matar o mensageiro quando ele chega com más notícias. Aprendi a viver com isso.
Folha - O sr. diz que toda crítica é poesia em prosa. O sr. não acha que esse tipo de afirmação cria todo um vício na crítica, abre o campo para uma "teoria poética" intelectualmente preguiçosa e medíocre?
Bloom - Lógico. Isso criou todo tipo de equívocos. Como muitas outras coisas que eu digo, é uma piada irônica. Sou um crítico cômico. Mas sou levado a sério. Essas são ironias da minha parte. Se eu digo que toda crítica é prosa poética, eu também sei muito bem que a maior parte da poesia seja em verso ou em prosa é medonha. Não participo mais de nenhuma associação de linguagem, porque a idéia de uma convenção de 50 mil críticos é tão ridícula quanto comparecer a uma convenção de 50 mil poetas. Não existem mais que dois ou três críticos usando a mesma língua numa mesma época, assim como não existem mais que três ou quatro poetas.
Folha - O sr. também parece ter uma constante rejeição à teoria, sobretudo a francesa.
Bloom - Acho que não há pior doença intelectual no nosso tempo que o que eu chamo de "caxumba ou sarampo parasiense". Está toda baseada na alta burguesia de Paris, que se sente culpa por ser alta burguesia, mas ao mesmo tempo tira todos os benefícios desse status. Por isso tenta sistematicamente desmistificar a cultura. Isso produziu um eco absurdo nas academias americanas .
Folha - O sr. chama Lacan de "absurdo" e não tem nenhuma simpatia por Foucault...
Bloom - A mínima. O que eles fizeram foi propor métodos analíticos, mas na verdade tudo o que nos deram foi uma nova enunciação. A única diferença entre o que se costumou chamar de história intelectual e Foucault e seus arquivos é na verdade um figura de linguagem, os arquivos, que ele depois esquece ser uma figura de linguagem. O que é Foucault na realidade? Um poeta que escreve em prosa e que apareceu com um novo jogo de metáforas. Assim como Lacan. Infelizmente, comparados com as metáforas de Nietzsche, no caso de Foucault, e de Freud, no caso de Lacan, eles são consideravelmente menos complexos, interessantes e úteis.
Folha - Mas o sr. não acha que está confundindo a situação dos seguidores lacanianos e foucaultianos nos EUA com os próprios autores?
Bloom - É verdade que os seguidores americanos de Lacan, Foucault, Derrida e Barthes são reducionistas da pior espécie. Mas eu acho que o que eu poderia chamar de análise da angústia da influência e da leitura distorcida se encaixa muito bem nesses autores. Gosto muito de Derrida pessoalmente mas não posso ler o que ele escreve sem ver ali uma forte leitura distorcida de Heidegger. Assim como a relação de Foucault com Nietzshe, Lacan com Freud e Barthes com os formalistas russos. Em cada caso, não se trata de uma iniciativa original mas de uma leitura distorcida. Não acho que isso seja particularmente fecundo.
Folha - Talvez eu tenha lido de forma distorcida o seu livro, mas que parece que o sr. diz que toda crítica deve ser um equívoco criativo.
Bloom - Ela não tem opção. Shakespeare, por exemplo, é num nível notável uma tremenda transvalorização, uma poderosa distorção de uma figura menor, que é Christopher Marlowe. O vilão das tragédias de Sakespeare - Iago, Edmund, Macbeth - não existiria sem Barrabás ou Tamburlaine, de Marlowe. O que Sakespeare fez foi explodir, ampliar tudo isso. É como se Marlowe fosse um peixinho engolido por uma baleia. É a a lei da vida, da literatura e do intelecto. É como o Pierre Menard de Borges. O problema é saber se você é vítima dessa relação ou se sabe o que está fazendo, para poder fazer alguma coisa.
Folha - Lacan foi a vítima de uma leitura distorcida de Freud?
Bloom - No final das contas, é bastante sério o que ele fez. Freud acredita realmente que havia uma coisa que ele chamou de psique. Acreditava que essa entidade, embora metafórica, tinha o status de matéria e que a linguagem era seu instrumento. Inverter essa relação, como Lacan faz, é criar um tipo de enunciado que simplesmente não pode se conciliar com o de Freud. Parece fantástico chamar isso de uma interpretação de Freud. Às vezes, parece mais uma interpretação de Mallarmé. É extraordinário a que ponto de complexa dificuldade chega o pensamento moderno francês, porque é uma transvalorização do pensamento moderno alemão. Há uma grande complicação nisso, porque a linguagem de Nietzsche, de Hegel, de Freud, de Heidegger é muito diferente. Você não pode fazer em francês certas coisas que faz em alemão. Não me parece que eles tenham levado em conta se era realmente possível domesticar o pensamento alemão em francês sem chegarem a resultados muito peculiares. Há ainda por cima o absurdo que acontece não apenas nos EUA, mas na Argentina, no Chile e no Brasil. Você luta com essas teorias em terceira mão, via os franceses. É um fenômeno muito curioso.
Folha - O que o sr. acha do que acontece hoje na universidade americana com os estudos literários determinados por sexo ou raça?
Bloom - É detestável, falacioso e absurdo. No limite do obsceno. O que está sendo transformado em documento histórico pela chamada crítica literária feminista, que obviamente não é crítica nem literária mas pura política acadêmica, é uma extravagância. Nenhuma mulher que já não estivesse lá foi acrescentada à lista de grandes escritores americanos. Tentam alçar escritoras de quinta categoria a um lugar de destaque mas isso cai por terra no momento em que você tenta lê-las. As mulheres que importam na literatura de língua inglesa continuam sendo as mesmas: George Eliot, Jane Austen, Emily Dickinson, as irmãs Bronte, Virginia Woolf e outras que precedem esse tipo de avaliação. Tentar impor escritoras como Alice Walker é um absurdo. Tente ler o último livro dela. Causa embaraço.
Folha - O sr. ataca o estruturalismo e o formalismo como sendo reducionistas, mas assume que a sua teoria também é reducionista.
Bloom - Há diferentes formas de reducionismo. Se você sabe que todo discurso crítico é uma distorção, você pode chegar a permiti-la e perceber que se trata de um procedimento cômico em série. Acho que desde "A Angústia da Influência" até "The Book og J" tenho escrito livros muito engraçados. São deliberadamente livros de humor. São piadas. Algumas são piores, outras melhores. O humor tem que ser a resposta. Há terrível dilema na discussão da literatura. Em parte é o dilema da história. Estamos muito atrasados. Se Fernando Pessoa já estivesse traduzido para o inglês em 1967 não tenho certeza se teria escrito "A Angústia da Influência", porque tudo o que eu tinha a dizer ele já tinha tratado com enorme gênio e humor. O fato de inventar heterônimos que são totalmente diferentes e irredutíveis já resolve o problema com o precursor, que se torna uma figura muito enfraquecida. É realmente muito engraçado.


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