Bernardo De Carvalho
De Nova York
"A
Angústia da Influência" (1973) é o livro
que confirmou o nome de Harold Bloom, 61, entre os principais críticos
literários americanos. Foi o início de uma teoria
revisionista em que a tradição literária é
vista como um ciclo interminável onde os novos escritores
distorcem seus precursores na tentativa de criar suas próprias
obras. Bloom se serve de Freud, Nietzche e Borges para construir
uma teoria onde "o sentido de um poema é que há
outro poema", onde "se caminha entre poemas".
O livro causou escândalo. Muitos escritores americanos não
suportaram a idéia de verem suas obras reduzidas à
relação angustiada que manteriam com seus precursores.
Era o objetivo de Bloom, que se autodenomina um "humorista
antiético". Seus livros seriam piadas contra todas as
ortodoxias. A última foi "The Book of J", onde
o crítico lança a hipótese de que não
apenas houve um autor da Bíblia mas que este era uma mulher.
O próximo livro de Bloom, "The American Religion",
trata das origens da religião americana - os mórmons,
a Igreja Batista -, investigando o entusiasmo e os traços
de orfismo nesses cultos. "Espero que seja recebido ainda com
maior fúria que 'The Book of J", diz o crítico.
*
Folha
- Como o sr. chegou à idéia de "angústia
da influência"?
Harold Bloom - Foi uma coisa desenvolvida organicamente ao
longo de muitos anos de trabalho. Comecei como professor em Yale
quando eu era muito jovem, escrevendo sobre Shelley e Blake e os
poetas românticos. Fiquei muito interessado na relação
desses poetas com os românticos do século 20, como
Yats e Wallace Stevens. Mas começou também por causa
de uma crise pessoal, no verão de 67. Tive um terrível
pesadelo numa noite. Um anjo enorme, que eu acabei identificando
com o querubim do profeta Ezequiel, me oprimia e me sufocava. Acordei
no dia seguinte tentando interpretar o sonho, e me convenci, já
que eu vinha estudando aquela figura do anjo caído, de que
ele estava tentando me fazer capitular. Foi aí que tive a
idéia do esboço do que se tornou o primeiro capítulo
de "A Angústia da Influência" e que era muito
diferente do que acabou sendo publicado.
Folha - O sr. cita a idéia de Borges de que os poetas
criam os seus precursores. Essa é uma idéia muito
semelhante à do seu livro.
Bloom - Foi um dos meus pontos de partida, é claro.
Borges sempre escreve parábolas sobre isso, como quando diz
sobre Shakespeare que ele era todos e nenhum. Não sei se
não foi mais da leitura de Borges que de qualquer outro que
tirei essa idéia. Só me dei conta disso quando escrevi
"A Map of Misreading" e "Kabbalah and Criticism"
e comecei a tentar explicar minhas idéias e metáforas
em termos de uma terminologia cabalística.
Folha - Mas como é que o sr. lida com a sua própria
"angústica de influência" em relação
aos seus percursores?
Bloom - Continuo escrevendo. É a única maneira
de lidar com isso. Acho que Borges, por exemplo, dissimulou essa
angústia. A razão pela qual só escreveu histórias
intricadas, que são variações interpretativas
de escritores precedentes, é que ele não queria confrontar
o seu próprio "romance familiar". Por razões
óbvias, como a relação muito próxima
com a mãe. Ele não queira confrontar nem as suas próprias
idéias sobre a influência. No meu caso, a razão
pela qual eu dirigi as minhas energias literárias para a
crítica e não para a poesia vem do fato de que aceito
a angústia da influência e sei que não posso
escapar dela.
Folha - Mas o sr. também diz que não há
diferença em gênero entre crítica literária
e poesia.
Bloom - Mas o fato de não haver diferença em
gênero significa que há diferença em grau. Se
você tem o objetivo de escrever seus próprios poemas,
você não pode aceitar uma teoria como a da angústia
da influência. Você tem que se irritar com ela, tem
que protestar, tem que escapar dela. Há muitos poetas e escritores
americanos, por exemplo, que não suportam o que eu faço
e manifestam uma grande violência. Foi uma coisa que me veio
um dia quando estava tentando entender por que escritores aceitavam
sem problemas o que faz Jacques Derrida e ficavam tão bravos
com o que eu escrevo. É porque Derrida torna muito fácil
para qualquer escritor acreditar que é muito mais brilhante
do que na realidade é. Tudo é discurso, energias,
escritura. O que eu faço é dizer-lhes que tudo o que
fazem é um eco, uma sombra, vem de uma série de espelhos
infinitos.
Folha - Que escritores, por exemplo?
Bloom - Joyce Carol Oates está sempre me denunciando
em entrevistas. Dizendo que tudo isso não existe. Dizem que
é tudo uma doença minha. Se você traz más
notícias, eles gostam de você. Sempre achei que era
minha função como crítico ou escritor trazer
más notícias. Ser o transportador antiético.
Ninguém gosta de um mensageiro que traz más notícias.
Veja a reação de Cleópatra na peça de
Shakespeare, que começa a bater no mensageiro. É uma
velha tradição matar o mensageiro quando ele chega
com más notícias. Aprendi a viver com isso.
Folha - O sr. diz que toda crítica é poesia em
prosa. O sr. não acha que esse tipo de afirmação
cria todo um vício na crítica, abre o campo para uma
"teoria poética" intelectualmente preguiçosa
e medíocre?
Bloom - Lógico. Isso criou todo tipo de equívocos.
Como muitas outras coisas que eu digo, é uma piada irônica.
Sou um crítico cômico. Mas sou levado a sério.
Essas são ironias da minha parte. Se eu digo que toda crítica
é prosa poética, eu também sei muito bem que
a maior parte da poesia seja em verso ou em prosa é medonha.
Não participo mais de nenhuma associação de
linguagem, porque a idéia de uma convenção
de 50 mil críticos é tão ridícula quanto
comparecer a uma convenção de 50 mil poetas. Não
existem mais que dois ou três críticos usando a mesma
língua numa mesma época, assim como não existem
mais que três ou quatro poetas.
Folha - O sr. também parece ter uma constante rejeição
à teoria, sobretudo a francesa.
Bloom - Acho que não há pior doença
intelectual no nosso tempo que o que eu chamo de "caxumba ou
sarampo parasiense". Está toda baseada na alta burguesia
de Paris, que se sente culpa por ser alta burguesia, mas ao mesmo
tempo tira todos os benefícios desse status. Por isso tenta
sistematicamente desmistificar a cultura. Isso produziu um eco absurdo
nas academias americanas .
Folha - O sr. chama Lacan de "absurdo" e não
tem nenhuma simpatia por Foucault...
Bloom - A mínima. O que eles fizeram foi propor métodos
analíticos, mas na verdade tudo o que nos deram foi uma nova
enunciação. A única diferença entre
o que se costumou chamar de história intelectual e Foucault
e seus arquivos é na verdade um figura de linguagem, os arquivos,
que ele depois esquece ser uma figura de linguagem. O que é
Foucault na realidade? Um poeta que escreve em prosa e que apareceu
com um novo jogo de metáforas. Assim como Lacan. Infelizmente,
comparados com as metáforas de Nietzsche, no caso de Foucault,
e de Freud, no caso de Lacan, eles são consideravelmente
menos complexos, interessantes e úteis.
Folha - Mas o sr. não acha que está confundindo
a situação dos seguidores lacanianos e foucaultianos
nos EUA com os próprios autores?
Bloom - É verdade que os seguidores americanos de
Lacan, Foucault, Derrida e Barthes são reducionistas da pior
espécie. Mas eu acho que o que eu poderia chamar de análise
da angústia da influência e da leitura distorcida se
encaixa muito bem nesses autores. Gosto muito de Derrida pessoalmente
mas não posso ler o que ele escreve sem ver ali uma forte
leitura distorcida de Heidegger. Assim como a relação
de Foucault com Nietzshe, Lacan com Freud e Barthes com os formalistas
russos. Em cada caso, não se trata de uma iniciativa original
mas de uma leitura distorcida. Não acho que isso seja particularmente
fecundo.
Folha - Talvez eu tenha lido de forma distorcida o seu livro,
mas que parece que o sr. diz que toda crítica deve ser um
equívoco criativo.
Bloom - Ela não tem opção. Shakespeare,
por exemplo, é num nível notável uma tremenda
transvalorização, uma poderosa distorção
de uma figura menor, que é Christopher Marlowe. O vilão
das tragédias de Sakespeare - Iago, Edmund, Macbeth - não
existiria sem Barrabás ou Tamburlaine, de Marlowe. O que
Sakespeare fez foi explodir, ampliar tudo isso. É como se
Marlowe fosse um peixinho engolido por uma baleia. É a a
lei da vida, da literatura e do intelecto. É como o Pierre
Menard de Borges. O problema é saber se você é
vítima dessa relação ou se sabe o que está
fazendo, para poder fazer alguma coisa.
Folha - Lacan foi a vítima de uma leitura distorcida de
Freud?
Bloom - No final das contas, é bastante sério
o que ele fez. Freud acredita realmente que havia uma coisa que
ele chamou de psique. Acreditava que essa entidade, embora metafórica,
tinha o status de matéria e que a linguagem era seu instrumento.
Inverter essa relação, como Lacan faz, é criar
um tipo de enunciado que simplesmente não pode se conciliar
com o de Freud. Parece fantástico chamar isso de uma interpretação
de Freud. Às vezes, parece mais uma interpretação
de Mallarmé. É extraordinário a que ponto de
complexa dificuldade chega o pensamento moderno francês, porque
é uma transvalorização do pensamento moderno
alemão. Há uma grande complicação nisso,
porque a linguagem de Nietzsche, de Hegel, de Freud, de Heidegger
é muito diferente. Você não pode fazer em francês
certas coisas que faz em alemão. Não me parece que
eles tenham levado em conta se era realmente possível domesticar
o pensamento alemão em francês sem chegarem a resultados
muito peculiares. Há ainda por cima o absurdo que acontece
não apenas nos EUA, mas na Argentina, no Chile e no Brasil.
Você luta com essas teorias em terceira mão, via os
franceses. É um fenômeno muito curioso.
Folha - O que o sr. acha do que acontece hoje na universidade
americana com os estudos literários determinados por sexo
ou raça?
Bloom - É detestável, falacioso e absurdo.
No limite do obsceno. O que está sendo transformado em documento
histórico pela chamada crítica literária feminista,
que obviamente não é crítica nem literária
mas pura política acadêmica, é uma extravagância.
Nenhuma mulher que já não estivesse lá foi
acrescentada à lista de grandes escritores americanos. Tentam
alçar escritoras de quinta categoria a um lugar de destaque
mas isso cai por terra no momento em que você tenta lê-las.
As mulheres que importam na literatura de língua inglesa
continuam sendo as mesmas: George Eliot, Jane Austen, Emily Dickinson,
as irmãs Bronte, Virginia Woolf e outras que precedem esse
tipo de avaliação. Tentar impor escritoras como Alice
Walker é um absurdo. Tente ler o último livro dela.
Causa embaraço.
Folha - O sr. ataca o estruturalismo e o formalismo como sendo
reducionistas, mas assume que a sua teoria também é
reducionista.
Bloom - Há diferentes formas de reducionismo. Se você
sabe que todo discurso crítico é uma distorção,
você pode chegar a permiti-la e perceber que se trata de um
procedimento cômico em série. Acho que desde "A
Angústia da Influência" até "The Book
og J" tenho escrito livros muito engraçados. São
deliberadamente livros de humor. São piadas. Algumas são
piores, outras melhores. O humor tem que ser a resposta. Há
terrível dilema na discussão da literatura. Em parte
é o dilema da história. Estamos muito atrasados. Se
Fernando Pessoa já estivesse traduzido para o inglês
em 1967 não tenho certeza se teria escrito "A Angústia
da Influência", porque tudo o que eu tinha a dizer ele
já tinha tratado com enorme gênio e humor. O fato de
inventar heterônimos que são totalmente diferentes
e irredutíveis já resolve o problema com o precursor,
que se torna uma figura muito enfraquecida. É realmente muito
engraçado.
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