ESTÁ ROMPIDO O CIRCULO DO MEDO

Entrevista do professor Gofredo da Silva Teles ao jornalista Samuel Wainer

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 7 de agosto de 1977

Os dois telefones do apartamento do prof. Gofredo da Silva Teles não cessam de tilintar. São do outro lado da linha, jornalistas da imprensa diária e ilustrada, das emissoras de rádio e televisão, além de políticos, juristas e estudantes. Visivelmente embaraçado pela projeção a que foi lançado como redator do texto final da "Carta dos aos Brasileiros", um documento de fidelidade à lei e à democracia, que deverá ser lido amanhã nas Arcadas, o professor Gofredo viu a sua casa transformada numa espécie de Q. G. desse movimento. Mas, não dá nenhum sinal de mau humor. Pois é ele um desses homens que jamais se otimiram com relação aos interesses do seu País. Com 38 anos de magistério de Direito, toda uma vida, Gofredo da Silva Teles tem sido um dos grandes motores desse retorno das nossas tradicionais Arcadas aos grandes dias que fizeram do Largo do São Francisco um símbolo das aspirações de democracia e liberdade do País.
Agora, diante do repórter, ele concorda em contar a história desse documento que, mesmo antes ainda de ser lido, já está mobilizando em todo o País o interesse de suas maiores expressões jurídicas e sociais. Pouco trabalho sobra ao repórter salvo uma ou outra pergunta, interrupções apenas destinadas a dar maior agilidade à lição à liberdade que estava recebendo.

A preparação

"Não queremos ser apontados amanhã como omissos"

Como se estivesse na sua cátedra, seguro, pausado, pensamento coordenado como se fora um só, o professor Gofredo da Silva Teles dá inicio, provavelmente, à sua décima entrevista naquele dia ensolarado. É o preço da responsabilidade que assumiu.
"Já há meses que um grupo de grandes advogados, conselheiros da Ordem, associação de advogados, vinha se reunindo, pesando, debatendo assuntos relacionados com a passagem da semana em que se vai comemorar século e meio de estudos jurídicos no Brasil.
"Que se deveria fazer? Havia notícias de solenidades oficiais, mas a simples idéia de restringir a esse campo essas comemorações não os satisfaz. Eram contra esse clássico tipo de reuniões formais, solenes. Queriam qualquer coisa que ficasse, algo de mais expressivo, que saísse das Arcadas para o Brasil inteiro. Sendo a Faculdade de Direito a que iniciou em primeiro lugar o ensino do Direito no nosso País, embora a Faculdade de Direito de S. Paulo e a de Olinda tenham sido fundadas pela mesma lei, eles achavam que a nossa Faculdade tinha uma responsabilidade especial e que esta era a hora extraordinariamente oportuna; a hora exata para um depoimento, uma demonstração de que os antigos alunos da academia permaneciam fiéis aos princípios que eles haviam absorvido na Faculdade do Largo de S. Francisco.
"Fiéis apesar da conjuntura momentânea em que vive o Brasil. Não desejavam que no futuro houvesse qualquer idéia de que eles foram omissos ou que tivessem compactuado com qualquer espécie de regime que atentasse contra aquilo que eles consideram fundamental na ordem jurídica.
"Assim, após sucessivas reuniões e encontros resolveram que de fato se impunha um documento solene, uma espécie de testemunho, que fizesse esta prova da sua inabalável fidelidade aos princípios auridos sob as Arcadas.
"Fui então procurado, naturalmente, por ser eu um professor antigo, professor que há trinta e oito anos leciona na Faculdade de Direito. Em verdade, atualmente, eu sou o professor que há mais tempo ali leciona. É curioso observar que a congregação inteira é quase toda ela composta, com algumas notáveis exceções, mas poucas, de antigos alunos meus. Desde o diretor até os novos que estão entrando agora. Eles acharam assim que era natural que viessem conversar se eu aceitaria a incumbência de elaborar o texto deste documento.

"Esses professores, juristas, advogados, em suma, esse grupo que vinha realizando as reuniões preliminares, quais eram suas tendências, qual a origem social e filosófica?

"Francamente falando estas pessoas eram juristas das mais diversas tendências. Muitos pertenciam mesmo aos dois partidos existentes. Suas tendências espirituais eram as mais diferentes, sujeitos a princípios éticos e classes sociais também diversas. Acho que merece destaque esta nota especial. Quase todos eles são homens vitoriosos nas suas carreiras, alguns com grandes escritórios, outros com situação política bem marcada, enfim pessoas situadas na sociedade paulista e brasileira.
"Dessa forma pode declarar que a idéia do documento foi surgindo de maneira muito natural, espontanea, esse é um fator importantíssimo. Foi uma gestão natural. Em suma, a idéia surgiu da consciência jurídica nacional. Seu impulso inicial foi paulistano, mas hoje estou convencido que a idéia foi aceita por toda a família jurídica do País.

"Mas, professor, além dos juristas, houve outras contribuições ou solicitações de grupos políticos, religiosos e sociais para participarem da elaboração do documento?

"É claro que tenho sido procurado por grupos políticos, não só de ambos os partidos, mas de setores ainda não constituídos como partidos. Mas isso não vem só de agora, mas já de há alguns anos. Cheguei mesmo a participar de dois projetos, institucionais. Agora, a Carta aos Brasileiros é outra coisa, uma coisa completamente diferente.

A elaboração

"Uma bandeira para toda a família jurídica nacional"

Embora tenha sido ele o redator do texto inicial e final da Carta aos Brasileiros, o professor Gofredo faz questão de ressaltar o cuidado empregado na redação desse documento.

"Bem, professor, decidida a preparação da Carta e sua posterior divulgação, teve início a fase de sua elaboração. Qual foi o processo seguido?

"A Carta começou a ser por mim redigida, mas muito lentamente, não era um trabalho fácil, era preciso que fosse muito simples, para entendimento dos leigos. Mas, ao mesmo tempo, tinha que ser rigorosamente técnica, para não incidir em erros que pudessem ser apontados por quaisquer adversários, erros de ciência jurídica.
"Pronto o primeiro texto, elaborado com o maior cuidado, foi ele submetido ao estudo e análise do grupo de juristas que haviam concebido a idéia desse documento. Novas sugestões foram apresentadas e recolhidas. Preparei, assim um novo texto, já à vista das observações e emendas que foram sugeridas.
"Na segunda redação as idéias fundamentais não mudaram. O que se alterou foram expressões mais candentes talvez, o que ocorre muitas vezes com uma primeira redação. Novamente o texto foi submetido aos demais juristas, novas sugestões foram recolhidas. Redigi, assim, a terceira versão. E o documento ficou pronto. Tudo isso levou uns três meses. E, assim surgiu o que denominamos de Carta aos Brasileiros.

"E como foi o documento assumindo o caráter nacional que acabou por lhe ser atribuído?

"O texto final foi confiado alguns emissários que o levaram ao Rio, Pernambuco e outros centros jurídicos do País, inclusive Brasília, e as adesões começaram.

"E quem eram aqueles emissários?

"Muitos foram os próprios idealizadores. Assim, os que possuíam negócios ou escritórios no Rio, levaram para lá o documento. E a coisa começou a rodar. E aqui em S. Paulo, naturalmente, a coleta de assinaturas foi direta. Mas como o documento ainda está sendo assinado não posso dizer exatamente qual será o número de subscritores.

"Parece que o prof. Miguel Reale teria se manifestado sobre o documento durante uma conferencia por ele realizada ontem em Recife?

"O Reale não viu o documento, pois tendo estado ausente de S. Paulo. Eu bem que gostaria de mostrá-lo a ele. Mas sei que em Recife referindo-se à Carta aos Brasileiros ele declarou que este era o momento preciso, oportuno para o lançamento de um documento como este.

"Professor, o espírito da Carta ao ser elaborada era de fixar normas ou apenas uma fixação de princípios, destinados a estimular e encorajar o lançamento de documentos semelhantes em outros setores do País?

"Exatamente, foi esta a idéia. Como nosso objetivo era o de reunir, em torno de idéias um número cada vez maior de juristas, cultores do Direito, era preciso que estas idéias fossem mesmo de natureza geral. Levantamos uma bandeira que, forçosamente pode reunir em torno dela toda a consciência jurídica nacional.
"São aqueles princípios fundamentais da ordem jurídica. O princípio da constitucionalidade, que é algo de fundamental importancia, é um princípio que é resultado de uma evolução de séculos da civilização e da cultura. Hoje ele é predominante nos Estados civilizados. Esse princípio consagra a tese de que os governos são sujeitos e devem obediência à Constituição. Este princípio, para nós, cultores do Direito, é um princípio luminoso. Estabelecendo limites para a competência dos Estados garante os direitos individuais e as liberdades dos cidadãos.


A divulgação

"Sem contestação o progresso não é possível"

Evitando cair no romantismo, tão vinculado aos movimentos intelectuais que incursionam pela política pela política o prof. Gofredo procura ser o mais explicito em suas afirmações
"E quais as consequências, quais os reflexos que os elaboradores responsaveis pela Carta aos Brasileiros, esperam venham a ter sobre o conjunto de idéias que em outros setores do País estão à busca do retorno ao Estado de Direito.
"É claro que sustentariamos essas idéias de qualquer maneira, com consequências favoráveis ou desfavoráveis. Sabiamos perfeitamente que nestas atitudes sempre há um risco a correr. Mas é um risco que se deve correr.
"Acontece, porém, que esta Carta chega a atender até a certas exigências que nós poderiamos chamar de oficiais. Provavelmente o governo está procurando uma saída para a situação em que se encontra. Assim, todas essas idéias e colaborações para a volta a um regime que garanta a participação dos governados nas decisões dos governantes, são fatores que devem ser recebidos com agrado pelos que têm a responsabilidade dos destinos nacionais nesse exato momento.

"Professor, a Carta aos Brasileiros ao que parece se encerra com uma espécie de proclamação que não admite recuos. Essa proclamação estaria na frase final. "Queremos a volta do Estado de Direito e já". Significaria isso que os elaboradores do documento não crêem que o País não suportaria esses últimos dois anos que ainda faltam para o termino do Governo no Geisel?"

"Quando nós dizemos Estado de Direito, já, é claro que a expressão é enfática. Em política as bandeiras têm que ter cores claras, sob pena de não se poder fazer política,. Quando dizemos Estado de Direito, já, estamos de fato dizendo é que devemos já irmos nos encaminhando para o Estado de Direito. É claro que de um momento para outro não pode surgir o Estado de Direito. O Estado de Direito não aparece assim num piscar de olhos. O Estado de Direito é uma estrutura inteira e esta estrutura precisa ser elaborada. Dessa forma, quando dizemos já, esse já se refere à vontade de imediatamente se iniciar o processo de normalização jurídica das instituições brasileiras.

"E como professor, poder-se-ia imediatamente pra esse processo?

"Esse processo evidentemente tem que tender afinal a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Isso não quer dizer que esta convocação tenha que ser feita imediatamente. Pois, como a sociedade civil esteve durante todo tempo afastada das lides políticas, será preciso que o povo se organize. Não é admissível uma convocação de uma Assembléia Constituinte - e na sua eleição - não é admissível que haja ingerência do Poder Executivo, sob pena de uma deturpação total daquilo que se pode realmente chamar de Estado de Direito. É preciso que o povo organizado, mas livre, escolha a sua Assembléia Nacional Constituinte. Só o povo é competente.

"Sim professor, mas sem romantismo, como se poderia chegar ao povo organizado, ou melhor como poderia o povo se organizar no esquema atual de poder?

"Em primeiro lugar seria necessário que fossem revogadas determinadas leis como o AI-5, a Lei Armando Falcão, instrumentos esses que sendo de exceção são instrumentos que deturpam completamente a manifestação do povo. Assim, é preciso desde logo que o governo num ato de coragem, faça abolir esses instrumentos de exceção e partir realmente para outros rumos, sem medo.
"Torna-se assim evidente, que seria preciso simultaneamente que haja liberdade para a constituição de novos partidos. Sem partidos como pode o povo agir, partidos autenticos, os dois partidos que aí estão, pelas suas origens, são partidos artificiais.
"Assim, primeiro uma revisão partidaria, liberdade de organização de partidos. Apesar do povo ter estado afastado das lides políticas, acho que houve uma certa politização uma certa tomada de consciência da necessidade de participar. Pode-se dizer, sem maiores, exageros que a cultura nacional já está no ponto de merecer uma organização partidaria livre. E uma organização partidaria livre em regra leva a um sistema de contrapeso que impede, curiosamente a vitória de radicalismos, de extremismos, como temos verificado está ocorrendo no mundo inteiro. Lá onde existe a liberdade de organização de partidos e lá onde existe eleições livres não são os extremistas que vencem as grandes paradas políticas. E com isto a Nação lucra, lucra extraordinariamente. Pois, para andar para frente é preciso que haja contestação. Sem contestação não é possível o progresso.


Reflexos

Carter, Dom Paulo e o papel dos estudantes

Mas, agora, só no final desta entrevista, o professor Goffredo chamado a opinar sobre temas marginais aos jurídicos, perde um pouco de sua fleugma e é com mais veemência que flue a sua palavra.

"Abstraindo os parâmetros estritamente jurídicos que levaram à Carta aos Brasileiros, quais foram os angulos do atual sistema de poderes no País que despertaram no plano pessoal dos juristas essa decisão de uma participação direta e sem subterfugios na chamada crise nacional? As cassações os atentados aos direitos humanos, a dubiedade política?

"Há uma revolta profunda contra as violações da Constituição, as violações das leis, uma revolta profunda contra os atentados aos direitos humanos, aos direitos da pessoa, atos de violência, como por exemplo, aplicações de castigos como se a sociedade civil fosse constituída de menores, de incapazes, castigos que são aplicados sem audiência dos acusados e às vezes sem que os acusados saibam bem ao certo por que motivo estão sendo castigados. Viola-se assim um principio jurídico absoluto que ninguém pode sofrer pena alguma, sem processo regular, sem ser ouvido, sem que tenha oportunidade de se defender. Esse sentimento de revolta, dessa maneira se generaliza de um modo muito especial na classe dos juristas, daí o sentimento da necessidade da volta de um regime legal, onde a lei fosse respeitada, onde a lei fosse soberana, uma lei que fosse o poder ao qual os governantes também devessem obediência.

"E no plano mais geral, por exemplo, até que ponto a política de Jimmy Carter, no que concerne aos direitos humanos, teria contribuído não só para a elaboração, como para a tomada de posição representada pela Carta aos Brasileiros?"

"Tenho a impressão que os mesmos fatores que determinaram a política de Carter, são os fatores que determinaram a posição de nosso documento. Tanto Carter, como o nosso documento, têm os mesmos fatores, as mesmas causas sociais."

"E a participação da Igreja, especificamente, da Igreja de S. Paulo, até que extensão se fez sentir no movimento que culminou com a Carta aos Brasileiros?"

"Não o trabalho da Igreja de S. Paulo, esta Igreja que está na vanguarda da defesa dos direitos humanos em nosso País, é um trabalho que coincide com o nosso trabalho. Veja na Igreja do nosso Cardeal Dom Paulo atualmente, uma aliada admirável para esta campanha política.

"E manifestações outras que vêm ocorrendo já com frequência , quase cadenciada, pela volta ao Estado de Direito, manifestações inclusive já alcançando a cúpula militar e civil do Sistema, que influencia ou contribuição trouxeram para essa manifestação maciça dos juristas?

"O processo de redemocratização é realmente irreversível. Isto não quer dizer que não haja reações. Totalitários existem em todos os setores. Mas esses setores contratariam incontestavelmente a tendência natural deste momento. Estamos marchando, queiram ou não para o Estado constitucional".

"E, por fim, professor outras manifestações mais esporádicas, como as que partiram do general Dilermando Monteiro, do brigadeiro Grum Moss, para só citar esses dois chefes militares, qual o reflexo dessas atitudes, especificamente, no campo dos juristas e, mais generalizado, em todas as cantadas da opinião nacional?

"Todas essas manifestações têm contribuindo no sentido de animar muita gente. Animar para tomar uma atitude, vencer o medo, quero dizer romper o circulo de ferro de medo. Um medo que até há bem pouco tempo inibia quaisquer manifestações nesse sentido.
"Mas não quero encerrar esta entrevista, sem, deixar de acentuar a campanha e o papel exercido pelos estudantes. Isto é de uma importância muito maior do que se pode imaginar. Os estudantes mais uma vez constituiram a ponta de lança, a frente, a vanguarda que abriu o caminho para os novos rumos políticos que o País está tomando. Tenho grande conhecimento de causa no assunto, são 38 anos de magistério. Assim, se o estudante não é propriamente elemento amadurecido, ele é extraordinariamente sensível. E o estudante brasileiro, além de sensível, é extraordinariamente inteligente. Embora a sua base cultural ainda seja relativamente fraca, a sua sensibilidade o fez sentir que estava chegando a hora de mudar. E depois, o estudante não é o estudante apenas. É ele, a sua família, os seus amigos. As mães e os pais estão se unindo hoje à meninada. As famílias estão se unindo novamente. E este é um fenomeno muito decisivo para que seja subestimado.


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