"EU
DEIXEI SEMPRE PORTAS ABERTAS"
Gilberto
Freyre
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 9 de março de 1980
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"Folha" - O senhor foi responsável pela introdução
da temática da sexualidade na sociologia, a sexualidade como
mediação entre as relações de classe e
as relações econômicas, uma abordagem extremamente
moderna...
Freyre - Exato. Isso tem sido muito destacado Europa. No Brasil
ninguém destaca porque nós estamos em grande parte sem
crítica no Brasil.
"Folha" - Como o senhor abordou o tema que diz respeito
à figura do intelectual, eu gostaria de saber como é
que o senhor vê o problema da relação entre o
intelectual e a má consciência, entre o intelectual e
a culpabilidade, entre o intelectual e o receio de abordar temas explosivos
como a sexualidade.
Freyre - Eu atribuo isto em grande parte, sem que isso importe
em desapreço pelo lado positivo da obra dos jesuítas
no Brasil, ao jesuíta. O jesuíta marcou de tal modo
a formação do intelectual no Brasil que excluiu dessa
formação a perspectiva que devia levar à consideração
de aspectos mais caracteristicamente brasileiros, sabe? Inclusive
o sexo.
"Folha" - Esse negócio que o senhor realça
todo o tempo, o priapismo, que foi realçado pelo Paulo Prado
no Retrato do Brasil, o senhor acha que essa foi a razão fundamental
pela qual a crítica não compreendeu sua obra, a crítica
achou que foi uma adocicação das relações
sociais como se fosse uma coisa construída e não real.
Como se essa adocicação não existisse ao nível
assim real, ontológico da realidade brasileira.
Freyre - Exato. Considero esta sua pergunta muitíssimo
inteligente, eu creio que a minha abordagem do sexo na formação
brasileira contrariou preconceitos ou, vamos dizer, mais respeitosamente,
conceitos, quer da parte dos intelectuais de formação
mais jesuítica, quer dos que aderiram de modo mais fanaticamente
ao marxismo. E o marxismo no Brasil tem sido o substituto da religião
católica, representada entre nós pelos jesuíta,
mais por ele do que pelo franciscano ou do que pelo católico
de outras ordens e outras tendencias.
"Folha" - Mas o interessante é que do ponto de
vista intelectual nega a realidade do sexo nas relações
sociais, mas de outro lado se vê envolvido com ela na prática,
é meio contraditório nesse sentido que eu falo da má
consciência. Quer dizer, o senhor é um intelectual moderno.
A modernidade está justamente em não concluir, o aspecto
inconclusivo do seu trabalho.
Freyre - Exato.
"Folha" - Quer dizer, não teve aquela impulsão
fálica a concluir, eu diria...
Freyre - Exato. Você diz muito bem, sabe? Eu deixei sempre
portas abertas, para outros e para mim mesmo, sabe? E é claro
que eu próprio venho me utilizando das portas que eu próprio
abri para a minha futura concepção de coisas sociais
e humanas, inclusive, ou particularmente as brasileiras. Mas no caso
da presença do sexo eu desagradei. Por um lado, como eu ia
dizendo, o intelectual de formação no sentido mais lato
da palavra...
"Folha" - Jesuítico?
Freyre - Jesuítico. E por outro lado aqueles que adquiriram
uma orientação exclusivamente marxista. No segundo caso
porque eu fiz do sexo no Brasil uma presença que de um modo
bastante expressivo tornava precárias as barreiras entre classes.
"Folha" - E aí complicou tudo...
Freyre - Aí compliquei tudo. Do ponto de vista marxista
eu disse isso é um desmancha prazer, sabe?
"Folha" - E um ultraje?
Freyre - E um ultraje.
"Folha" - E aí é que está a contradição.
Freyre - Exato. Ora, essa minha concepção do
poder criativo da miscigenação, socialmente criativo,
superando aquela clássica interpretação de Marx,
que eu acho que Marx não seguiria hoje mas que os marxistas
mais marxistas seguem, da rigidez das fronteiras de classes. Eu acho
que essas fronteiras de classes foram desmoralizadas no Brasil pelo
fator intercurso racial. O intercurso racial entre a própria
Casa Grande e a Senzala, e foi...
"Folha" - Uma mistura das línguas...
Freyre - Mistura, pois é.
"Folha" - Das línguas, inclusive, no sentido literário
e metafórico...
Freyre - E metafórico (risos) exato.
"Folha" - Não é?
Freyre - É. Para precisarmos o uso de línguas
(risos).
"Folha" - E uma outra coisa que a gente nota também
é que houve um repúdio na sociologia moderna de São
Paulo, houve um repúdio do ensaísmo de fundo bacharel,
o que não foi nunca o seu caso porque o senhor teve a concisão
estilistica "à la inglês", que vem inclusive
de Joaquim Nabuco uma tradição que desemboca no Paulo
Francis, quer dizer aquele sentido da presença da cultura anglo-saxônica.
Freyre - Exato.
"Folha" - Então eu gostaria de saber como é
que o senhor vê um certo, eu não diria um repúdio,
mas a crítica que foi feita ao abandono do ensaísmo,
por uma abordagem mais rigorosa e às vezes estilisticamente
inferior, que é o caso da produção da Universidade
de São Paulo.
Freyre - As vezes, não. Sempre (risos).
"Folha" - Como é que o senhor vê?
Freyre - Nunca se esqueça que eu não sou modesto
(risos).
"Folha" - A literatura pega coisas que a ciência
não pega?
Freyre - Sim, implica, mais implica também em me parecer
que expressão literária é válida como
expressão científica. Eu sigo é o exemplo de
alguns dos grandes, vamos dizer, cientistas sociais, pensadores sociais.
Entre os pensadores sociais o Bergson, que era um modelo de estilista
literário em lingua francesa. E os Huxley (?) na Inglaterra.
Duas gerações de Huxley, todos eles , tanto da história
da ciência, como da história da Literatura. E no Brasil
eu creio ter chegado aos 80 anos, já como personagem das duas
histórias, tanto da literária como da cientifica. Agora,
se...
"Folha" - Que, aliás, é a tradição
de Euclides da Cunha.
Freyre - De Euclides da Cunha, de Nabuco, para ficar nesses
dois porque não é fácil juntar as duas expressões,
a expressão literária e a expressão cientifica.
Agora, compreende-se que o sociológo ou o antropólogo,
ou o economista que não tenha o poder da expressão literária
fique no economês, no sociologês, no filosofês,
como é o caso de tantos dos nossos cientistas sociais no Brasil.
Todos eles escrevem muito mais em jargão do que um Português.
Agora, eles escrevem em jargão por uma deliberada escolha?
Eu acho que não. E sim por uma impotência. Eles são
impotentes para pôr o seu saber tecnocraticamente, isto ou aquilo,
numa expressão literária.
"Folha" - Sei, não tem rigor no delírio.
Freyre - Não têm rigor no delírio, isso
sim, perfeito.
"Folha" - A modernidade foi sempre a sua preocupação,
a questão de ser moderno, o que me espanta é que, ao
mesmo tempo que a sua obra Casa Grande, sobretudo, tem a marca do
fragmento, do inconcluso, no sentido de abrir as portas, né?
Pois é, eu gostaria de saber porque apesar de tudo o senhor
obteve uma visão totalizante do Brasil coisa eu ninguém
teve, talvez o mais próximo seria o Caio Prado na Revolução
Brasileira, mas não tem um sentido abrangente a que o senhor
atribui?
Freyre - Não tem. Não, ele ficou muito no econômico,
né?
"Folha" - A que se deve essa ausência de busca
de totalidade na sociologia contemporânea, a que o senhor atribui
isso? Donde viria esse demônio?
Freyre - Eu acho que do próprio demônio, sabe?
É dificil de eu lhe responder sabe? Porque o que eu fiz; nas
minhas pesquisas, nas minhas buscas é que seria impossivel
você seguir uma interpretação unilateral fosse
qual fosse, histórica, sociológica, econômica
ou política. Havia que procurar uma inter-relação
desses fatores todos. E daí eu acho que é a grande superioridade
da minha abrangência sobre os especialismos muito fechados.
"Folha" - O senhor não veria, pra entrar no problema
contemporâneo, uma possibilidade de invasão da senzala,
a emergência da marginalidade, o senhor não vê
esse problema no sentido de que a marginália pode invadir a
cidade contando com um Antônio Conselheiro encabeçando
uma...
Freyre - É uma possibilidade, eu acho, admito como possibilidade,
mas não admito como uma possibilidade muito de ser esperada,
porque a tendência no Brasil é já de tal modo
para a sintese, a mistura, a miscigenação quer de sangues
quer de culturas, quer de atitudes, que isto já se consolidou
numa atitude panbrasileira. De modo que a marginalização
não me parece que seria de esperar. Possível, ela é.
Vários fenômenos são possíveis em convivência
e vivência, mas não me parece que seja de esperar dada
já uma tendência tão consolidada no Brasil para
ser um Brasil miscigenado, um brasileiro miscigenado, quer no sangue
- já não nos envergonhamos de confessar que somos em
grande parte uma população miscigenada - e quer na cultura
ou nas culturas já miscigenadas e nas atitudes também
miscigenadas.
"Folha" - Eu gostaria de saber por que não há
reflexão sobre a morte no ensaísmo brasileiro?
Freyre - A reflexão sobre a morte tem sido ausente não
só no ensaísmo brasileiro, como da literatura moderna
em geral, não é? Eu creio que com os avanços
tecnológicos houve uma tendência para se considerar a
morte superada uma tendência artificial porque a morte não
está superada. Eu próprio tenho anunciado um livro que
seria a meu ver, o remate da minha trilogia e que seria "Jazigos
e Covas Rasas".
"Folha"- Bonito título.
Freyre - Pois é. Mas, você imagina que me roubaram
já os originais disso...
"Folha" - Mas que loucura!
Freyre - O roubo misterioso, sabe?
"Folha" - E o tema da morte é central?
Freyre - O tema da morte era...
"Folha" - No sentido de uma especificidade da reflexão
sobre a morte no Brasil, como é que seria a busca desse particular?
Freyre - Exato. Exatamente isso.
"Folha" - A atitude do brasileiro de enfrentar a morte,
como é que é?
Freyre - É, pois é, como ele vem enfrentando
já em várias fases, como vem sendo tratado o tema morte
a concepção morte, como os mortos foram considerados
parte viva da família patriarcal...
"Folha" - Ah. Isso é muito interessante.
Freyre - É muito interessante, você não
sabe que havia casas grandes em que os mortos eram enterrados dentro
de casa. Como quem diz, vocês ficam aqui, vocês são
nossos, vocês não vão pro...
"Folha" - O senhor não acha que há um repúdio
da idéia de morrer dentro do brasileiro, não?
Freyre - Exato. É um livro interessantíssimo
esse, mas o que eu vou fazer? Foi roubado, foi roubado.
Gostei muito das suas perguntas tão inteligentes Vasconcelos,
foi pena a gente interromper.
"Folha" - O senhor é um intelectual fotografado,
que é uma coisa moderna. Inclusive o narcisismo, essa coisa
deriva da desculpabilização que existe na sua obra,
uma obra desculpabilizada, ela não é um a obra ressentida
Casa Grande e Senzala.
Freyre - Não de modo algum.
"Folha" - É uma obra que dá pra fluir,
curtir.
Freyre - Acho que está muito bem observado, sabe?
"Folha" - Isso aí é que é uma coisa
que persiste com modernidade.
Freyre - Exato. E até com a pós-modernidade,
sabe?
"Folha" - Com a pós-modernidade.
Freyre - Isso.
"Folha" - Perfeito. E me diga o seguinte: o Glauber Rocha
andou defendendo o senhor alguns textos no sentido inclusive que o
senhor mostrou também que lateja uma nação de
êxtase "escrito" na Senzala, que é coisa que
a música popular retrata muito bem.
Freyre - Exato. Ele tem razão, eu sou...
"Folha" - Uma outra pergunta, agora uma blague: tem um
amigo meu psicanalista, o Tenório, que diz que Joaquim Nabuco
pôs Pernambuco a perder. No sentido que em Pernambuco há
sempre uma estilização das criações populares.
Quinteto Violado, Armorial e que por exemplo, no Recôncavo da
Bahia a coisa é mais explosiva. Então é outro
tipo de intelectual falando da cultura popular, o que é que
o senhor acha disso, Joaquim Nabuco pôs Pernambuco a perder...
Freyre - Não, eu acho que há um exagero porque
o Joaquim Nabuco foi o fundador do Brasil, do trabalhismo.
"Folha" - E escrever pro senhor dá prazer?
Freyre - Grande, grande, grande , grande, imenso. Outro prazer
é pintar. Mas, o pintar em mim já é uma decorrência
do prazer em escrever porque eu pinto escrevendo e acho que um pouco
escrevo pintando. Eu creio que há muito imagismo no que eu
escrevo, mas imagismo a serviço da idéia e não
imagismo desgarrado, sabe?
"Folha" - Escrever seria uma revolta contra a morte?
Freyre - Uma revolta contra a morte. Acho que há uma
aliança secreta entre mim e a palavra nesse sentido.
"Folha" - Pra expulsar a morte ou prá encará-la,
como?
Freyre - Bom você sabe - não sei se sabe que eu
sou um místico, não é? Eu sou uma combinação
que acho que é raríssima entre o homem de formação
cientifica, incluído, a lógica e o mistico. Não
tenho nada de atração por teologia ou teologismo ou
definições teológicas de Deus ou de vida, ou
de além-vida, nada disso. Mas estão muito presentes
em mim intuições místicas sobre os assuntos de
que os teólogos fazem uma espécie de saber, também.
Gilberto Vasconcellos
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