
OS ANOS 70
José
Louzeiro
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 13 de janeiro de 1980
|
|
|
Não foi sem perigos que José Louzeiro conquistou seu
lugar na literatura brasileira: "Aracelli, Meu Amor" esteve
proibido durante anos e valeu ao escritor diversas ameaças
de morte. Depois de assistir o filme "Lucio Flávio, o
Passageiro da Agonia", houve parentes do personagem morto que
prometeram surrá-lo sem piedade. Seja como for, Louzeiro chegou
ao final dos anos 70 como o mais conhecido entre os autores do chamado
romance-reportagem, a versão brasileira do livro policial.
Em entrevista ao repórter Nilton Caparelli, o escritor fala
de sua obra, onde o social e o real se misturam numa denúncia
das injustiças.
|
Mataram
a moça e caçaram o livro |
FOLHETIM - Pode-se falar na existência do romance policial
brasileiro?
LOUZEIRO - O romance policial no Brasil e na América
Latina não poderia ser um romance no estilo Agatha Christie.
O gênero policial tem talvez, mais do que qualquer outro gênero
literário, se aprimorado através dos anos e tem vindo
ao encontro exatamente dos interesses da população e
com acentuada preocupação social. O romance que se faz
hoje no Brasil não difere muito do romance que se faz hoje
na Argentina, por exemplo. Mas o nosso romance policial difere do
romance policial norte-americano, não só em questão
de linhas semelhantes à Agatha Christie como o de linhas semelhantes
ao do Truman Capote: "A Sangue Frio" é um relato
muito bem escrito de um caso ocorrido nos Estados Unidos, com cuidado
de uma isenção total, sem entrar nas raízes dos
problemas.
FOLHETIM - Você acha então que o romance policial
brasileiro é um romance-reportagem?
LOUZEIRO - Em principio acho que todo o romance é um
romance-reportagem. "Dez Dias Que Abalaram o Mundo" é
uma reportagem.
FOLHETIM - O romance policial brasileiro teria essa característica
de se basear em casos reais?
LOUZEIRO - Não, necessariamente não. No "Lúcio
Flávio" tem muita coisa que não pertence a nada
do contexto que vivi aqui no Rio de Janeiro e sim do que vivi em São
Luis, quando eu tinha 17, 18 anos, quando estava entrando para o jornalismo.
Alguns presidiários que integram o livro não são
daqui, são de São Luis. Sempre que eu posso, e os fatos
permitem, eu aproveito a temática imediata que o cotidiano
mostra. E hoje o cotidiano nos mostra coisas muito mais fantásticas
do que você pode imaginar. As distorções sociais
chegaram a um nível tal que um cardeal, um general, um juiz
ser esfaqueado ou assaltado na rua é uma coisa comum. Raciocinando
como romancista há dez anos você não poderia admitir
uma coisa dessas de modo algum.
FOLHETIM - Você acha então que a sociedade dá
elementos tão ricos em termos de história que não
há necessidade de se criar uma fantasia?
LOUZEIRO - Na literatura, como em qualquer outra atividade
artística, predomina sempre o fator invenção.
Pelo próprio fato de você recolher o material para uma
reportagem, você vai reinventar, dar uma ordem ao que você
viu, ao que você coletou. A mesma coisa acontece com a literatura.
Não há dúvida que hoje a sociedade está
fornecendo uma gama de elementos de tal ordem que se eu tivesse condições
escreveria um livro de 400 páginas por semana.
FOLHETIM - Você acredita que a escalada da violência
está intimamente ligada ao romance policial brasileiro?
LOUZEIRO - Uma escritora como Agatha Christie, Simenon e outros,
são escritores meramente preocupados com o aspecto invenção
da literatura. Nos romances de Agatha Christie os personagens são
pessoas bem vestidas, aquele negócio inglês. E o crime
é menos importante do que o mistério que envolve o crime.
Tudo faz crer que a literatura da Agatha Christie é muito mais
desumana que qualquer outra, porque o fator vítima não
pesa muito, o que interessa é como a vítima cai num
círculo de ferro e não pode escapar. No nosso romance,
que está tomando característica de romance policial,
na verdade é uma coisa completamente aberta, pois está-se
formando como um corpo agregado numa estrutura tradicional de literatura.
E como os autores que estão envolvidos nisso têm preocupações
sociais profundas, como é o meu caso, obviamente esse romance,
antes de ele refletir uma peripécia meramente para o encantamento
do leitor, antes de ser uma literatura de entretenimento, a gente
faz uma literatura realmente pra valer, uma literatura que reflete
os problemas da sociedade em geral. O homem não é criminoso
porque ele quer ser criminoso, o homem não é assaltante
porque ele quer ser assaltante. Esse homem é uma vítima
da sociedade. E são milhares de assaltos no Rio e em São
Paulo. Então, antes de se buscar soluções isoladas
para responsabilizar o criminoso, é bom rever o contexto social.
É nesse empenho que a nossa literatura está lançada.
FOLHETIM - Você vê então uma relação
entre a violência atual e a nossa literatura?
LOUZEIRO - Todas as coisas são reflexos de outras. A
grande violência deste País foi em 1964. Quando você
rouba o governo de um País inteiro, achatando as massas, as
opiniões, os votos, os partidos, os sindicatos e tudo mais,
pratica-se a grande violência. E você não consegue
acabar com a violência se você parte do princípio
de que tem que estimular a violência. Veio e golpe de 64 e o
Lúcio Flávio surgiu junto com o golpe de 64. Toda a
família do Lúcio foi afetada pelo golpe por motivos
de perseguição. O pai de Lúcio Flávio
era um grande cabo eleitoral do Juscelino. Nada acontece por acaso.
O Lúcio formou uma quadrilha e arrastou com ele mais de 50
elementos. Todos esses rapazes foram mortos, esmagados, massacrados.
Essa violência se amplia e gera o ódio. E nós
vemos milhares de casos como o do Lúcio.
FOLHETIM - Você acha que há mais de uma linha de literatura
policial no Brasil?
LOUZEIRO - Acho que existem três linhas. O Carlos Heitor
Cony, por exemplo, com seus romances "O Ventre", "Tijolo
de Segurança", segue uma linha tradicional, onde você
encontra autores franceses etc. É uma linha no romance policial
que está praticamente estratificada. Para mim não interessa
o mistério. Quando eu faço um livro como o "Lúcio
Flávio", em que todo mundo sabe que o herói está
morto, o mistério não tem importância. Já
o Rubem Fonseca está numa linha mais próxima da minha.
O Rubem faz uma literatura policial fantástica e o Cony uma
literatura policial realista, até um pouco simbolista.
FOLHETIM - Dessas três linhas na literatura policial, você
considera a de maior expressão a que lida com o real, o social?
LOUZEIRO - É meio chato para eu dizer que o meu lado
seria o mais exclusivo, inquietante para as pessoas e ao mesmo tempo
o mais comercial. Mas acho que na verdade é. As pessoas estão
vivendo um drama muito grande e de um modo geral elas querem saber
o por quê desse drama e a minha literatura está mais
perto desse caráter explicativo do que a do Rubem Fonseca,
por exemplo. Aqui não vale dizer se o que eu escrevo é
melhor do que o que ele escreve. Eu, inclusive, considero-o um escritor
sensacional. Mas como o que eu escrevo tem o propósito de ser
mais popular, a começar pela linguagem que uso, existem passagens
nos meus livros que são verdadeira literatura oral. E tenho
absoluta consciência disso, que é pra ver se consigo
sair de um grupo de leitores de uma classe média elitizada
para um leitor de classe média proletarizada.
FOLHETIM - Qual o comportamento do mercado (tanto livreiro, quanto
de leitores) frente a esse gênero?
LOUZEIRO - Do ponto de vista dos editores, em que pese as vezes
os erros de avaliação, eles se deixam interessar mais,
sensibilizar-se mais, quando eles mesmos gostam da leitura do livro,
pois eles pressupõem que uma faixa de público maior
vai gostar. E essa é uma literatura bastante despreocupada
com aspectos formais e tem sido bem aceita de uma maneira geral pelos
editores e pelos leitores. De dois ou três autores que eu já
apresentei a editores, todos foram aceitos e seus livros já
estão na segunda ou terceira edição. Um deles
é Valério Meinel, que escreveu "Porque Cláudia
Lessin vai morrer".
FOLHETIM - Você concorda então que esse tipo de literatura
policial que se faz agora é um gênero em ascensão
no Brasil?
LOUZEIRO - Concordo plenamente e acho que ela ainda vai mais
além, pois está incluído também o aspecto
do terrorismo de caráter político. Estou preparando
um livro em cima disso. Mas nós temos dois caminhos na nossa
literatura. Quando eu digo nós, incluo toda a América
Latina. Ou nós polarizamos a literatura ou a literatura se
elitizará de uma vez por todas.
FOLHETIM - Você considera essa característica de reportagem
do romance policial brasileiro como uma coisa exclusivamente nossa?
LOUZEIRO - Acho que é uma característica brasileira,
porque os livros que tenho lido de autores de outros países
fogem um pouco a essa preocupação, inclusive li um livro
de um autor argentino, José Vieira Garcia, e ele absorve o
problema da violência e transmite na primeira pessoa como sendo
um dos personagens, voltando a fazer aquela literatura, literatura
tradicional, filtrada através dele. Nós aqui no Brasil
já estamos fazendo de uma maneira diferente: colocamos o próprio
fato em primeiro plano.
FOLHETIM - Quais os problemas, a seu ver, mais importantes nesse
gênero nos últimos anos?
LOUZEIRO - Eu destaco "República dos Assassinos",
do Aguinaldo Silva: "Bar Don Juan", do Antonio Callado;
o livro do Hélio Bicudo, que não é bem uma literatura
romanceada, mas não deixa de ser uma literatura, um depoimento
fantástico sobre o Esquadrão da Morte; o livro do Valério
Mainel, "Porque Cláudia Lessin vai morrer". É
muito mais difícil jogar com as pessoas que estão vivas
do que com as pessoas que estão mortas. Lembro também
o livro do Cony, "Tijolo de Segurança".
FOLHETIM - Em termos de rotulação, você prefere
romance policial brasileiro ou romance-reportagem?
LOUZEIRO - Acho que é mais apropriado chamar de romance-reportagem
brasileiro, porque ajudaria a quebrar essa espécie de aversão
que existe com relação à reportagem.
FOLHETIM - Você tem algum trabalho em andamento?
LOUZEIRO - Eu me dediquei exclusivamente à literatura
e cinema. É realmente um sacrifício extraordinário.
A minha vida econômica é uma aventura. Mas a nossa vida
é uma aventura de um modo geral. Ou você se dedica pra
poder fazer ou você não faz. Eu acabei de entregar um
livro para editora de quase seiscentas páginas, que é
o "Em Carne Viva". É exatamente sobre violência:
uma violência política e uma violência não-política,
todas na mesma casa. O livro versa sobre a Zuzu Angel e o Stuart Angel.
Mas no meio estão alguns delinquentes - eu não chamo
de preso comum porque todos os presos neste País para mim são
presos políticos. Não é uma história real
da Zuzu Angel, é uma história romanceada, apenas com
alguma coisa do real dela. Nessa história ela é uma
mulher viúva que tem um casarão em decadência
e que subloca a casa. Entre as pessoas que moram lá existe
um rapaz, boa pessoa, que tem a vida dele, que ela não sabe
qual é. Um dia esse rapaz começa a ser perseguido e
ele acha que está sendo perseguido porque é um criminoso.
Mas ele descobre que ele está sendo perseguido por outros motivos.
Na verdade ele está sendo perseguido porque a polícia
política acha que ele é o filho da mulher (Zuzu Angel)
que eles estão procurando. Que ele estaria disfarçado.
Isso gera todo um conflito, que redunda na morte da Zuzu, na morte
de seu filho, na morte do rapaz. Isso se chama violência. Invadir
a casa dos outros como se invadiu em 1968, 69, 70. Isso é violência.
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|