Vargas Llosa fala de sua formação literária
e aventuras políticas
JOSÉ GERALDO COUTO
Enviado especial a Londres
O peruano Mario Vargas Llosa, 58, um dos mais importantes escritores
latino-americanos da atualidade, chega a São Paulo no próximo
dia 1º para uma visita de uma semana ao país. No dia
6 de dezembro ele dá uma palestra no Masp, promovida pela
Folha e pelo Diners Club.
Vargas Llosa falou à Folha em seu apartamento, em Londres,
cidade onde se radicou desde que perdeu as eleições
presidenciais peruanas, em 1990.
Durante duas horas ele discorreu sobre assuntos como literatura,
política, religião e tráfico de drogas. Reafirmou
suas duas crenças básicas: no liberalismo como sistema
político e econômico e na literatura como modo de
organizar o caos do mundo.
O ponto de partida da conversa foi seu volume de memórias
"Peixe na Água", recém-lançado
pela Companhia das Letras.
Folha: No diagnóstico que faz do Peru em "Peixe
na Água", o sr. atribui a miséria e o atraso
do país à tradição de supremacia do
Estado, com sua corrupção e seu clientelismo. Mas
parte dessa responsabilidade não cabe também às
elites econômicas do país, que, assim como as do
Brasil, sempre praticaram um modo predatório de exploração
dos recursos naturais e do trabalho?
Mario Vargas Llosa: Sim, claro, mas não se deve
responsabilizar os empresários por isso. Os empresários
não fixam as regras do jogo. Elas são fixadas pelos
governos. Se um governo fixa um sistema econômico no qual
quem determina o êxito ou o fracasso não é
o público consumidor, mas o próprio governo, que
concede monopólios e privilégios a uns, prejudicando
outros, então é o sistema que corrompe o empresário.
Se o governo não é suficientemente lúcido
para impor regras de jogo equitativas, transparentes, mas sim
regras complicadas, absurdas, burocráticas, ele assim dá
ao funcionário um poder decisivo no êxito ou no fracasso.
A fonte da corrupção está aí.
O empresário, em vez de tentar conquistar o consumidor,
vai tentar conquistar o funcionário, o ministro ou o presidente,
corrompendo-o. Se um governante estabelece como regra do jogo
que o subornem, o empresário vai suborná-lo.
Há uma famosa alegoria de Adam Smith: "O empresário
privado é o motor extraordinário do desenvolvimento,
com a condição de que o coloquem nos trilhos adequados."
E isso é o que devem fazer os governos. Claro que não
depende só deles. Há que existir um marco cultural:
uma Justiça independente, tribunais que realmente defendam
a lei. Porque, se você pode comprar um juiz, como pode funcionar
direito um mercado?
Folha: A crítica mais comum ao liberalismo radical que
o sr. propõe é a de que, numa situação
de "laissez faire" absoluto, tenderia a aumentar a distância
entre ricos e pobres, que é vertiginosa em nossos países.
Llosa: Bem, se se quer que não haja diferenças,
essa é uma opção. Mas é uma opção
que só se pode realizar acabando com a liberdade, impondo
um poder central absolutamente controlador de toda a vida econômica
e uma política de redistribuição da riqueza
que até agora, em todos os casos, trouxe pobreza generalizada,
perda absoluta da liberdade e, em última instância,
a criação também de minorias privilegiadas,
as "nomenklaturas".
Folha: Não existiria um modo de diminuir as diferenças
sociais sem recorrer ao totalitarismo?
Llosa: Nas sociedades que eu mais admiro, a margem entre
os que têm mais e os que têm menos é a mais
curta o que não significa que não existam
distâncias, e distâncias grandes. Creio que isso não
se pode impedir.
Num país comunista, em teoria se cria uma sociedade igualitária.
Mas numa sociedade como a de Stálin, como a de Mao, como
a de Cuba hoje em dia, uma pessoa como Fidel Castro e um grupo
relativamente pequeno têm umas condições que
são estratosféricas em comparação
com a dos pobres que se atiram ao mar para fugir.
Então, aí a igualdade resultou num mito, e o preço
que se pagou por ela foi uma miséria generalizada, como
a que deixou o socialismo na Rússia e no Leste da Europa.
Acho que é inevitável que haja diferenças
de renda e que a única maneira de atacar esse problema
é fazer com que a diferença de renda resulte exclusivamente
do esforço e do talento, não do abuso, do atropelo,
do privilégio.
Isso é justamente o que faz o mercado, não? Agora,
nessa sociedade regulada fundamentalmente pelo mercado livre,
há setores que não podem competir e que ficam marginalizados
porque são fracos os velhos, os doentes. Não
existe nenhum liberal que não reconheça isso e nenhum
liberal que não aceite que a sociedade tem uma responsabilidade
com relação a esses setores.
Quais são as sociedades que criaram os serviços
públicos mais avançados? São as sociedades
liberais, não as totalitárias. São as sociedades
como a Inglaterra, como a França... Há um risco
nisso, porque, como se está vendo nessas sociedades, o
Estado "benefactor", quando começa a assumir
tantas responsabilidades, num momento dado se converte numa espécie
de monstro que começa a esmagar a iniciativa e entravar
o processo de criação de riquezas. Tem que cobrar
impostos muito altos e os impostos altos afinal desincentivam
a produção da riqueza.
Então, o ideal é que uma sociedade, ao mesmo tempo
que cria um sistema em que há muitos estímulos para
produzir riquezas, vá transferindo também à
sociedade civil a responsabilidade dos serviços: educação,
saúde... Há equilíbrio, mas o equilíbrio
não deve levar nunca a que essa responsabilidade de redistribuir
vá tão longe a ponto de destruir o princípio
fundamental, que é a criação da riqueza.
Sem criação de riqueza não há desenvolvimento,
não há justiça.
O que acontece é que estamos formados por uma tradição,
que por uma parte é cristã, por outra parte é
socialista, que cria em nós uma resistência terrível
a aceitar que uma sociedade pode estar composta por gente que
tem mais e gente que tem menos riqueza. Isso nos produz uma repugnância
íntima. Aquela história de que é mais fácil
um camelo passar pelo buraco da agulha que um rico entrar no reino
do céu. Nós carregamos isso incrustado aqui dentro
a idéia de que o rico é um pecador, é
mau.
É claro que essa é uma idéia fundamentalmente
reacionária, antiprogressista. Se não fosse pelos
empresários, por sua iniciativa, sua audácia, sua
busca de novas fontes de benefício, estaríamos ainda
nas sociedades mágicas, primitivas. O que temos que criar
é um sistema em que o empresário tenha êxito
servindo a todos.
Folha: O presidente eleito Fernando Henrique Cardoso foi muito
criticado por ter-se aliado a setores da oligarquia tradicional,
o que seria um entrave a seu projeto modernizador. O sr. sofreu
o mesmo tipo de crítica. Em seu livro, admite que, se vencesse,
seu governo teria dificuldade de administrar as diferenças
entre os aliados.
Llosa: As razões no meu caso eram muito simples.
Eu pensava que, para fazer aquelas reformas tão radicais,
era muito importante ter uma base muito ampla, e por isso é
que trabalhei nessa coalizão. Para mim, o fundamental era
que houvesse um programa de reformas que fosse aceito por meus
aliados conservadores, para que ele tivesse essa base popular.
Acho que a aliança me prejudicou. Muita gente me identificou
mais àquelas velhas caras que ao programa novo. O que eu
pensava era que, sendo eleito, eu teria, para negociar com meus
aliados, um mandato popular sustentado num programa. Por isso
durante toda a campanha eu fui tão explícito, explicando
o programa, e isso inclusive também me prejudicou, aparentemente.
Porque fiz questão de ser muito claro, não enganando
ninguém sobre as reformas.
Folha: O sr. prevê problemas dessa ordem para FHC?
Llosa: Espero que não. Creio que as alianças
sempre são difíceis. Sempre há tensões.
Mas ele tem mostrado muita habilidade política para mover-se
nesse mundo tão espinhoso. Creio que há, pela segunda
vez no Brasil, uma oportunidade de que se façam reformas
de modernização dentro da legalidade, e seria terrível
desperdiçá-la. Confesso que tinha muito medo de
que Lula vencesse, porque as idéias de Lula, tais como
as escutei no ano passado num simpósio na Universidade
de Princeton, me alarmaram muitíssimo.
Folha: O sr. chegou a se encontrar com Lula?
Llosa: Muito brevemente, só um cumprimento.
Mas me pareceu, por seu discurso, um homem que se movia totalmente
dentro do populismo, que tinha uma visão absolutamente
anacrônica do que é o caminho do desenvolvimento,
da modernização. Por isso me alegrei com a vitória
de Cardoso.
Folha: Com ele o sr. nunca esteve?
Llosa: Estive sim, há vários anos, em
Londres, quando estava por aqui, como embaixador, um amigo comum,
e um grande liberal brasileiro, José Guilherme Merquior,
uma pessoa enormemente culta e talentosa. Ele me apresentou a
Cardoso e ali conversamos bastante e isso foi antes que
qualquer um de nós sequer suspeitasse que concorreria à
presidência. Antes disso, eu o havia lido muito, como um
dos pensadores da teoria da dependência.
Folha: Desde os anos 70 o sr. se afastou do marxismo e se tornou
um ferrenho adversário de Cuba, ao contrário de
escritores importantes como García Márquez e Julio
Cortázar, que permaneceram de esquerda e a favor de Fidel.
No livro, o sr. se refere a Cortázar com carinho, a despeito
disso...
Llosa: Claro, tínhamos grandes diferenças,
mas eu procuro não identificar amizade pessoal e preferências
políticas.
Folha: E como o sr. vê a obra desses dois escritores
hoje?
Llosa - Bem, eu tenho uma grande admiração
por ambos. Escrevi até um livro enorme sobre García
Márquez nos anos 70. Tenho-lhes muitíssima admiração,
e precisamente porque os vejo como escritores tão importantes
é que lamento mais que defendam opções que
para mim são incompatíveis com a liberdade de criação,
sem a qual García Márquez e Cortázar não
teriam podido escrever o que escreveram.
Se eles tivessem vivido sob um regime como o de Fidel Castro,
ou o da Coréia do Norte, o mais provável é
que não teriam escrito as obras que escreveram, que requerem
uma disponibilidade de espírito, uma liberdade de imaginação
que é incompatível com um regime totalitário.
Ou então teriam que arriscar-se à dissidência,
ao exílio, aos campos de concentração.
Mas já sabemos que a alta inteligência e a alta cultura
não estão protegidas da cegueira política.
George Steiner, no formidável ensaio "Linguagem e
Silêncio", diz: "A mais terrível comprovação
de nosso tempo é que as humanidades não humanizam."
Vimos isso no caso da URSS. As mais altas inteligências,
os maiores poetas Paul Éluard, Aragon, Neruda,
as grandes vozes líricas cantando poemas a Stálin.
Sartre, que se supunha a inteligência mais luminosa deste
século, terminou seus dias fazendo o elogio do maoísmo,
quando entre 20 e 40 milhões de chineses eram sacrificados
à loucura fanática da Revolução Cultural.
Por isso, não surpreende que Cortázar e García
Márquez tenham apoiado Fidel Castro, Cuba, o sandinismo...
Folha: A imprensa fez muito alarde quando o sr. brigou com
García Márquez, há 15 anos. Como foi esse
desentendimento?
Llosa: Foi um desentendimento pessoal, não político.
Prefiro não comentá-lo.
Folha: Quais são suas relações com ele
hoje?
Llosa: Não o vejo há muitos anos. Leio-o,
mas não o vejo.
Folha: Outro gigante da literatura latino-americana, Borges,
incomodava ao sr. pelo motivo oposto, por fazer uma literatura
distanciada da experiência pessoal, da vida concreta.
Llosa: Sim, porque eu era sartreano quando jovem. Borges
era então um amor inconfessável (risos). Eu não
podia admitir que gostava dele, então o lia em segredo,
como alguém que peca (risos).
Hoje, não. Exibo minha admiração com todo
despudor. Creio que Borges é, sem nenhuma dúvida,
o maior escritor da língua espanhola neste século,
e um dos grandes criadores de nosso tempo por sua originalidade,
por sua sutileza, por sua universalidade. Ainda que o gênero
fantástico esteja muito distante daquilo que eu faço.
Mas cada vez que o leio e algumas vezes tive que ensiná-lo,
sinto um verdadeiro deslumbramento por Borges. Me parece um dos
mundos mais ricos e pessoais que a literatura pode nos oferecer.
Folha: Em seu livro o sr. diz que mesmo no auge da campanha,
no próprio dia da eleição, o sr. não
deixava de ler poemas de Góngora, como um refúgio
de pureza contra a mesquinharia da política.
Llosa: Sabe, era realmente como um prêmio, o momento,
o momentinho em que eu podia concentrar-me num poema de Góngora.
Toda poesia é um mundo à parte, mas a de Góngora
o é de um modo absoluto, entre outras coisas pela extremada
complexidade de sua linguagem. Ela exige um grande esforço
intelectual, uma concentração que automaticamente
isola quem entra nela, separa-o da realidade. E é uma poesia
deslumbrante, por sua riqueza, pelas alusões, pelas referências,
pela musicalidade, pela potência verbal. Realmente é
como uma hipnose, um feitiço. Para mim, era uma recompensa
estar ali com Góngora naqueles momentos.
Folha: Alberto Moravia dizia que a arte e a política
são incompatíveis porque, enquanto a primeira busca
o absoluto, a segunda é o reino do contingente, do compromisso,
da concessão. O sr. concorda com isso?
Llosa: Sim, estou de acordo, mas ao mesmo tempo tampouco
creio que seja bom que a política se converta num monopólio
de profissionais da política. Acho que isso é o
mais perigoso para a democracia.
Folha: Paradoxalmente, o próprio Moravia se envolveu
com política.
Llosa: Claro, e não se pode dizer que foi muito
lúcido, porque apoiou o Partido Comunista. É outro
caso de bom escritor que foi, politicamente falando, um cego.
Cito um caso que mostra como não só um escritor,
mas toda uma classe intelectual pode cegar-se ideologicamente.
Não sei se você gosta de "O Leopardo",
de Lampedusa. Para mim é uma obra-prima, um dos grandes
romances que foram escritos em nosso tempo.
Bem, você sabia que essa obra foi rejeitada por sete editoras?
A primeira editora que o recusou foi aquela que era a mais prestigiosa
na época, Einaudì. E o recusou porque quem escreveu
um informe sobre ele foi Elio Vittorini um escritor de enorme
prestígio e influência, o equivalente italiano de
Sartre, uma espécie de "maitre à penser"
dos jovens.
Elio Vittorini disse à editora que não o publicasse
porque era um romance que negava o movimento da história.
É uma coisa realmente interessante como o preconceito ideológico
pode chegar a cegar a inteligência totalmente. O próprio
Moravia, aliás, foi um dos que rechaçaram Lampedusa.
Folha: Fujimori foi eleito no Peru com o apoio dos evangélicos.
No Brasil, essas seitas são cada vez mais influentes, sobretudo
junto aos mais pobres. O sr. não acha que o desencanto
com a política tradicional pode trazer o risco de que muita
gente se deixe levar por líderes messiânicos e irracionalistas?
Llosa: Sem nenhuma dúvida. Para mim, o fenômeno
é este: por uma parte, em países que viveram períodos
terríveis de empobrecimento, de crise social e violência
política, entende-se muito bem que para grandes setores
a realidade de repente deixe de ser racional, lógica, e
que então haja um movimento rumo à pura irracionalidade
para explicar a vida, explicar um mundo que se tornou totalmente
incompreensível. Esse é um terreno propício
para as doutrinas apocalípticas, messiânicas.
Por outra parte, esse fenômeno tem uma vertente religiosa.
Que aconteceu? A Igreja Católica é uma igreja que,
por muitas razões, foi perdendo enraizamento justamente
nos setores mais marginalizados e pobres de nossos países.
A Igreja Católica, queiram ou não seus sacerdotes,
passou a fazer parte do "establishment", e do ponto
de vista de muitos setores é percebida como o poder, como
a ordem, como algo muito remoto e distanciado das necessidades
diárias dos pobres, por mais que haja tantos sacerdotes
e freiras que façam um esforço contrário.
Isso deixa enormes setores da sociedade totalmente desguarnecidos
espiritualmente. Esse vácuo está sendo preenchido
por outros pastores, os evangélicos, que chegam como? Com
a militância do pioneiro, do missionário, com uma
enorme agressividade, e atraem esses setores mais pobres e desesperados.
Folha: Que são também os mais ignorantes, em
geral...
Llosa: Claro. Sabe, há uma interessantíssima
investigação dirigida por um professor da Universidade
de Boston, Peter Berger.
Há muitos anos ele realiza uma pesquisa na América
Latina sobre o avanço das igrejas evangélicas. Bem,
os primeiros resultados são impressionantes: em países
como a Guatemala, 50% da população está sob
influência dessas igrejas; no Chile, 40%.
O que diz Berger? Diz que uma das razões para o êxito
das igrejas evangélicas é que a Igreja Católica
não tem padres suficientes para chegar a todos os setores.
Há setores que estão completamente abandonados pela
Igreja.
Mas outra das razões do êxito é que, precisamente
por ser desamparada, vazia e rotineira a existência dos
marginalizados, tem grande chance de preenchê-la uma igreja
como as evangélicas que exigem uma dedicação
total, que não exigem somente a missa dos domingos, mas
24 horas por dia de militância, e que convertem a todos
os seus membros em apóstolos e missionários.
Além disso, elas têm esse pragmatismo característico
de todas as igrejas norte-americanas, organizando imediatamente
sistemas de socorro, de ajuda mútua, e além de tudo
impondo exigências rígidas, proibindo o álcool,
as drogas, sendo tão puritanas em matéria sexual.
As mulheres, sobretudo, sentem que isso cria uma ordem, defende
as famílias.
Folha: Justamente quando fez sua "opção
pelos pobres" a Igreja começou a perdê-los?
Llosa: Sim, porque o que os pobres queriam da Igreja era
a Igreja, não a revolução. Os padres lhes
ofereciam a revolução, às vezes a bomba,
a guerrilha.
Na Colômbia, o pior exército terrorista, o mais destrutivo
e cruel, é dirigido por um padre espanhol. Na América
Central são comuns os padres revolucionários. Eles
criaram uma confusão tal que muitos pobres simplesmente
já não sentem que a religião lhes preenche
a vida. Então chegaram os evangélicos.
Folha: O sr. estudou em colégios de padres, mas parece
não ter muita simpatia pela Igreja...
Llosa: Eu não sou religioso, mas creio que a religião
tem uma função na sociedade. Creio que uma sociedade
que não vive uma vida religiosa é uma sociedade
que entra rapidamente em um estado de insegurança que é
muito perigoso, pois abre a porta a sucedâneos da religião,
que podem ser os cultos e seitas mais absolutamente disparatadas.
Acho que as pessoas não podem viver sem uma fé.
Os que podem substituir a fé pela cultura, pela moral,
são muito poucos, são setores bem pequenos. A maior
parte das pessoas precisa de uma fé para sentir que o mundo
está ordenado, que há uma esperança.
Acho que, sobretudo em nosso mundo, sem religião não
há moral. A religião é que dá moral
às pessoas. Somente um setor muito pequeno pode criar uma
moral laica. A religião é útil, com a condição
de que haja um poder laico que a mantenha em seu lugar. Porque
se a religião não fica em seu lugar, e a Igreja
toma o poder, ela castra a liberdade do indivíduo, proíbe
o divórcio, proíbe o aborto, o controle da natalidade.
Estabelece uma ditadura, em suma. Acho importante que haja separação
entre Igreja e Estado e liberdade de crença, mas que a
sociedade tenha uma vida espiritual intensa, senão o que
há é caos e violência.
Folha: O sr. também conhece bem o Exército, pois
estudou em colégio militar. Ultimamente, parece que os
militares gozam de uma certa reabilitação de prestígio
em países como o Peru e o Brasil. No Brasil, muitos vêem
a intervenção militar como única saída
para o problema do narcotráfico. Como o sr. vê isso?
Llosa: Isso é perigosíssimo. Se uma sociedade
civil abdica de sua responsabilidade, naturalmente o Exército
vai substituí-la. Quer dizer, vamos voltar ao que foi a
tradição autoritária, a tradição
dos regimes castrenses que fez de nossos países o que são.
Se os exércitos começam a ocupar o plano da ação
política, a cultura democrática desaparece, não?
O Exército não é uma instituição
criada para fazer serviços de polícia. O resultado
mais provável de dar ao Exército esse tipo de obrigações
é contaminá-lo, abrir suas portas à corrupção,
à sua instrumentalização. Se colocarmos o
Exército na luta contra a droga, acontecerá com
ele o que acontece à polícia.
Folha: Qual seria uma maneira civilizada, democrática
e ao mesmo tempo eficiente de enfrentar o problema da violência
ligada ao narcotráfico?
Llosa: Creio que a luta contra a droga é uma luta
em grande parte perdida. Porque a droga é um problema basicamente
econômico. É um problema criminal em segunda instância.
A indústria do narcotráfico tem essa força
porque gera lucros extraordinários. E em muitos lugares
não há indústrias legais que possam competir,
que possam oferecer uma alternativa a ela.
Qual é, então, a solução? Penso que
a solução é a que propôs, por exemplo,
a "The Economist": que os países produtores e
consumidores se ponham de acordo e legalizem pelo menos as drogas
leves. A descriminalização das drogas leves eliminaria
ou reduziria sensivelmente a criminalidade.
Folha: Quais seriam essas drogas? A maconha e o haxixe?
Llosa: E também a cocaína. A imensa quantidade
de recursos hoje gasta na repressão, e que ficaria liberada
depois da descriminalização, seria empregada, em
parte, em uma política pedagógica por exemplo,
como a que vem sendo desenvolvida no combate ao fumo, que é
de uma eficácia extraordinária, pois reduziu de
maneira drástica o consumo de cigarro.
Outra parte desses recursos seria gasta na repressão ao
comércio das drogas pesadas. Entretanto, essa é
uma política que só se pode levar a cabo mediante
acordos internacionais, não pode ser adotada isoladamente
por um país produtor ou um país consumidor.
Folha: Haveria também resistências culturais muito
grandes.
Llosa: Sim, claro. Como em tudo. Todas as grandes reformas
têm de vencer resistências. Em última instância,
é sempre um combate de idéias, não de política.
De todo modo, devemos aceitar que o problema da droga é
um problema gigantesco, no qual até agora não temos
vitórias, só temos derrotas. E derrotas de dimensões
imensas, tanto para os países ricos como para os pobres.
Houve um manifesto sobre o problema, encabeçado por García
Márquez, que eu não quis assinar porque o considerei
injusto. Dizia o manifesto: "Os Estados Unidos não
fazem nada para combater as drogas e pedem a nós, latino-americanos,
que o façamos etc.".
Isso não é verdade. Os Estados Unidos investem somas
demenciais nesse combate, mas não conseguem nada. Eles
continuam aumentando o investimento na repressão, e o consumo
continua crescendo. Então, evidentemente, o caminho não
é esse.
Se uma pessoa adulta quer tomar álcool, fumar cigarros,
ela está atentando contra a sua saúde. E a sociedade
chegou à conclusão de que lhe deve permitir fazê-lo,
porque é sua responsabilidade pessoal.
Se esse mesmo senhor quer fumar maconha ou cheirar cocaína,
então que ele adquira essas drogas dentro de uma regulamentação.
Uma regulamentação que proíba que essas drogas
se coloquem em mãos de menores ou em mãos irresponsáveis,
mas que elimine toda essa monstruosa indústria delituosa
que existe hoje em dia em torno da droga. E, por outro lado, se
respeita o direito dos indivíduos responsáveis de
fazerem o que querem com sua vida e com seu corpo.
Folha: O jornalismo foi importante para que o sr. conhecesse
melhor a complexidade social do Peru. E do ponto de vista da linguagem?
O texto jornalístico influenciou sua literatura?
Llosa: Bem, eu creio que há um perigo com o jornalismo.
O trabalhar sobre a realidade e fazer da linguagem algo tão
eminentemente funcional, como você está obrigado
quando faz jornalismo, pode criar tiques, hábitos: o recurso
ao estereótipo, ao clichê. Isso é um risco.
E quando você faz literatura tem que haver essa espécie
de luta para criar um estilo, quer dizer, para romper justamente
os estereótipos e tudo o que é linguagem morta.
Há também o risco do facilismo. O jornalismo cria
uma facilidade, e a facilidade em literatura é o que há
de pior.
O que para mim foi muito positivo no jornalismo foi me manter
sempre com um pé na rua. Creio que em tudo que escrevi
se percebe uma curiosidade, um interesse, uma preocupação,
uma paixão pelo que está ocorrendo agora, em meu
tempo, em meu mundo.
Folha: Há quem diga que a função de contar
histórias foi assumida pelo cinema e pela TV, e que portanto
a literatura deve ser outra coisa um trabalho com
a linguagem que negue, pulverize ou destrua a narração.
Como o sr. vê essas idéias?
Llosa: Creio que essas teorias deram origem à literatura
mais aborrecida e mais perecível de nosso tempo. Essa teoria
pode ser interessante, sobretudo quando a expressa algum desses
franceses que têm, como dizia Koestler, "a capacidade
de poder demonstar tudo aquilo em que creem, e de crer em tudo
o que podem demonstrar" (risos). São grandes sofistas.
Isso de que a literatura pode ser só exploração
das possibilidades de linguagem, isso de dinamitar a linguagem
viva porque a linguagem está totalmente capturada pelo
poder, essa idéia de que você se rebela contra o
poder destroçando e reconstruindo as palavras isso
tudo pode ser divertido como proposta intelecutal, mas até
agora não vi um só romance baseado nessas idéias
que se possa ler.
Quem pode ler hoje em dia a Robbe-Grillet? É muito difícil.
Provavelmente a única coisa interessante dele é
o ensaio "Por um 'nouveau roman"', em que ele desenvolve
essas teorias.
Quando Joyce escreveu o "Ulisses", bem, todas as teorias
que podem estar por trás desse livro ficaram legitimadas.
Mas até agora não há nenhuma obra que legitime
essa idéia de que um romance pode ser um grande romance
sem contar uma história, sem personagens, como puro exercício
de linguagem. Durante certa época tentei ler muitos experimentadores,
e me aborreci espantosamente.
Folha: O sr. tirou algum proveito dessas leituras?
Llosa: Suponho que, afinal, isso me serviu para reafirmar
minha paixão pelo romance, digamos, de ordem tradicional,
com histórias, com personagens, o romance como um mundo
alternativo, que finge ser a realidade.
Folha: Ouvindo isso, temos a falsa impressão de que
a sua narrativa é convencional...
Llosa: Só no sentido de que há histórias,
há personagens, há um tempo fictício. Mas,
claro, na construção creio que você pode experimentar
de tudo, para dar maior densidade, complexidade e ambiguidade
a uma história, não?
Com a experiência de nosso tempo, não podemos contar
histórias como as contava Balzac, ou como as contava Machado
de Assis, a quem admiro enormemente. Digamos que há um
tipo de leitor à sua frente que não admite uma história
contada dessa maneira por um escritor contemporâneo.
Folha: O que impressiona em seus romances é justamente
as diferentes e complexas maneiras como estão construídos,
com diversas vozes narrativas que se alternam ou se misturam.
O sr. elabora essas estruturas antes de começar a escrever?
Llosa: Não, elas vão saindo aos poucos.
Tenho uma idéia nebulosa de uma história, umas trajetórias
de personagens, que começam a se cruzar. Faço uns
esquemas. Mas no princípio caminho totalmente às
cegas, tateando, buscando distintas possibilidades até
que começo a ver a estrutura.
Isso dá muito trabalho, significa dar muitas voltas, refazer
as cenas desde distintos pontos de vista. Talvez o mais difícil
seja encontrar o ponto de vista, decidir desde que perspectiva
se vai contar a história, em que perspectiva no tempo e
no espaço, e que haja um desenvolvimento coerente.
Folha: O cinema parece ter influenciado bastante seu modo de
narrar.
Llosa: É verdade. Gosto muito de cinema. Digamos
que no cinema sou muito menos exigente que na literatura. Gosto
de coisas que na literatura eu não poderia ler. Eu não
poderia ler um western, ou uma ficção científica,
ou mesmo um policial. E gosto muito de alguns filmes desses gêneros.
Mas gosto também do que chamam filme de autor, claro. Sou
um grande admirador de Visconti, de Buñuel, de Orson Welles
e de todos os cineastas que conseguiram criar um mundo pessoal,
algo que é muito mais difícil no cinema do que no
romance, porque no cinema você tem que passar por uma série
de mecanismos da indústria.
Folha: Buñuel dizia que o filme podia ter a linguagem,
o gênero e o tema que quisesse, só não tinha
o direito de ser chato.
Llosa: Sim, e creio que essa é também uma
obrigação do romance: a obrigação
de entreter.
Folha: Depois de toda a sua experiência política,
afinal o sr. conseguiu descobrir, como queria o protagonista de
"Conversa na Catedral", "onde foi que o Peru se
fodeu" (risos?)
Llosa: Bem, creio que é um processo. Creio que não
há um momento. São muitos momentos, um atrás
do outro. Sabe que essa frase se converteu quase num estribilho?
A toda hora a repetem, no Peru.
Folha: A América Latina teve nos anos 50 a utopia desenvolvimentista,
nos anos 60 a utopia revolucionária, antiimperialista.
Há ainda lugar para a utopia no continente? Os latino-americanos
ainda podem sonhar?
Llosa: Tenho a impressão de que, felizmente, a América
Latina está se livrando das utopias. Acho que as utopias
políticas são muito más e sempre conduzem
ao desastre. A utopia, há que orientá-la para outras
coisas: a literatura, as artes, o indivíduo... Creio que
o indivíduo pode ter sua própria utopia, mas a sociedade
não pode embarcar num projeto utópico, porque o
resultado é a catástrofe.
Creio que há que aceitar que o desenvolvimento tem de ser
gradual. O importante é ir progredindo, não retrocedendo,
e ademais simultaneamente em distintos campos. Os países
que mais progrediram são justamente os que adotaram essa
metodologia, não? Tenho esperança de que na América
Latina isso esteja começando a ocorrer em muitos países.
Folha: Seu liberalismo é muito mais um pragmatismo que
uma utopia?
Llosa: O liberalismo não é utópico.
O liberalismo está brigado com a utopia. O liberalismo
parte da premissa de que o paraíso não é
deste mundo. A idéia da sociedade perfeita, do paraíso
na Terra, sempre produz o inferno.
Progressos graduais, não retroceder, empreender batalhas
muito concretas, isso é o que Popper chamava "piecemeal
approach". Isso é o reformismo, na realidade, que
está contra a utopia, contra essa sede de absoluto, de
alcançar a perfeição. A sociedade é
muito complexa, muito diversa, há muitos interesses contraditórios.
Portanto, esse método de fazer tábula rasa do existente
para construir do zero a sociedade perfeita sempre trouxe uma
violência terrível.
Folha: O sr. não acha que, com o fim do comunismo e
a abertura dos mercados do Leste europeu, a América Latina
tende a ser deixada de lado pelos investidores internacionais?
Llosa: Acho que não, acho que a América Latina
está em muito boa posição. Hoje em dia os
mercados são mundiais. O país que se fecha a essa
internacionalização é um país que
se condena a ficar para trás. A América Latina tem
muito que oferecer ao mundo.
A América Latina em 1993 foi a segunda região do
mundo, depois do Sudeste Asiático, em atração
de investimentos estrangeiros: US$ 55 bilhões. Basta que
a América Latina comece a fazer o adequado para que imediatamente
haja uma resposta. Um país como o Brasil apresenta possibilidades
tão imensas que com um pouco de sensatez o país
deverá entrar rapidamente num processo de desenvolvimento
acelerado. Se isso foi conseguido pelo Chile, um país pequeno
e que hoje cresce a um ritmo comparável ao dos países
asiáticos, o que dizer do Brasil?
Folha: O Brasil aparece em sua vida numa série de coincidências:
a primeira vez que fez sexo foi com uma prostituta brasileira
(risos), a primeira reportagem que escreveu foi sobre um embaixador
brasileiro etc.
Llosa: É verdade. Que divertido. Não tinha
me dado conta.
Folha: Como o sr. se interessou pela saga do Conselheiro, narrada
em "A Guerra do Fim do Mundo"?
Llosa: Em 1972, por aí, o cineasta Ruy Guerra tinha
sido contratado pela Paramount para fazer um filme e ele queria
fazer algo que se relacionasse com a história de Canudos.
O diretor da Paramount na França, que estava sustentando
o projeto, me convidou para fazer o roteiro, de comum acordo com
Ruy Guerra.
Eu conversei com ele, discutimos o que ele queria fazer. Eu não
tinha lido "Os Sertões", de Euclides da Cunha,
e foi então a primeira coisa que fiz. O livro me deslumbrou.
Foi um dos livros que mais me impressionaram, um livro que me
mudou um pouco a vida.
Trabalhei muito nesse roteiro, mas desgraçadamente o filme
nunca foi feito. Desgraçadamente para Ruy Guerra, porque
para mim deixou uma possibilidade formidável. Fiquei tão
apaixonado pela história, pelos personagens, pelo ambiente,
pela época, que decidi escrever o romance. Então
continuei a trabalhar. Li tudo o que havia sido escrito até
então sobre o assunto, depois viajei ao Brasil, estive
em Canudos, em todo o Nordeste, no sertão baiano. Foi uma
experiência realmente maravilhosa.
Foi a única vez que escrevi uma história que não
era ambientada no Peru e nem no meu tempo.
Folha: O sr. está ansioso para visitar o Brasil?
Llosa: Muito, principalmente porque nunca estive em São
Paulo, que deve ser muito impressionante.
O Brasil é um país que me levanta um pouco o espírito.
Uma vez conversei com Manuel Puig, o escritor argentino que viveu
tanto tempo no Rio de Janeiro, e ele me disse: "No Rio tenho
a cada manhã a sensação de que, simplesmente
colocando a cabeça na rua, encontro ali um ambiente, uma
cor, um calor quer me faz sentir que a vida vale a pena ser vivida".
Cada vez que estive no Brasil senti exatamente isso. Vocês
podem ter todo tipo de problemas, alguns terríveis, mas
há algo no país que é muito estimulante,
uma grande beleza que não é só apenas natural,
mas também das pessoas, uma música. Há algo
que é muito vital, explosivo.
Talvez porque venho de um país andino, e os países
andinos são tristes. Na costa peruana a presença
negra atenua um pouco isso, trazendo um toque de sensualidade
e alegria. Mas a tradição andina é de gente
triste, grave, austera. Há ali uma coisa muito profunda
e, fundamentalmente, triste.