O SONHADOR PRAGMÁTICO

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994

Vargas Llosa fala de sua formação literária e aventuras políticas

JOSÉ GERALDO COUTO
Enviado especial a Londres

O peruano Mario Vargas Llosa, 58, um dos mais importantes escritores latino-americanos da atualidade, chega a São Paulo no próximo dia 1º para uma visita de uma semana ao país. No dia 6 de dezembro ele dá uma palestra no Masp, promovida pela Folha e pelo Diners Club.
Vargas Llosa falou à Folha em seu apartamento, em Londres, cidade onde se radicou desde que perdeu as eleições presidenciais peruanas, em 1990.
Durante duas horas ele discorreu sobre assuntos como literatura, política, religião e tráfico de drogas. Reafirmou suas duas crenças básicas: no liberalismo como sistema político e econômico e na literatura como modo de organizar o caos do mundo.
O ponto de partida da conversa foi seu volume de memórias "Peixe na Água", recém-lançado pela Companhia das Letras.

Folha: No diagnóstico que faz do Peru em "Peixe na Água", o sr. atribui a miséria e o atraso do país à tradição de supremacia do Estado, com sua corrupção e seu clientelismo. Mas parte dessa responsabilidade não cabe também às elites econômicas do país, que, assim como as do Brasil, sempre praticaram um modo predatório de exploração dos recursos naturais e do trabalho?
Mario Vargas Llosa: Sim, claro, mas não se deve responsabilizar os empresários por isso. Os empresários não fixam as regras do jogo. Elas são fixadas pelos governos. Se um governo fixa um sistema econômico no qual quem determina o êxito ou o fracasso não é o público consumidor, mas o próprio governo, que concede monopólios e privilégios a uns, prejudicando outros, então é o sistema que corrompe o empresário.
Se o governo não é suficientemente lúcido para impor regras de jogo equitativas, transparentes, mas sim regras complicadas, absurdas, burocráticas, ele assim dá ao funcionário um poder decisivo no êxito ou no fracasso. A fonte da corrupção está aí.
O empresário, em vez de tentar conquistar o consumidor, vai tentar conquistar o funcionário, o ministro ou o presidente, corrompendo-o. Se um governante estabelece como regra do jogo que o subornem, o empresário vai suborná-lo.
Há uma famosa alegoria de Adam Smith: "O empresário privado é o motor extraordinário do desenvolvimento, com a condição de que o coloquem nos trilhos adequados." E isso é o que devem fazer os governos. Claro que não depende só deles. Há que existir um marco cultural: uma Justiça independente, tribunais que realmente defendam a lei. Porque, se você pode comprar um juiz, como pode funcionar direito um mercado?
Folha: A crítica mais comum ao liberalismo radical que o sr. propõe é a de que, numa situação de "laissez faire" absoluto, tenderia a aumentar a distância entre ricos e pobres, que é vertiginosa em nossos países.
Llosa: Bem, se se quer que não haja diferenças, essa é uma opção. Mas é uma opção que só se pode realizar acabando com a liberdade, impondo um poder central absolutamente controlador de toda a vida econômica e uma política de redistribuição da riqueza que até agora, em todos os casos, trouxe pobreza generalizada, perda absoluta da liberdade e, em última instância, a criação também de minorias privilegiadas, as "nomenklaturas".
Folha: Não existiria um modo de diminuir as diferenças sociais sem recorrer ao totalitarismo?
Llosa: Nas sociedades que eu mais admiro, a margem entre os que têm mais e os que têm menos é a mais curta —o que não significa que não existam distâncias, e distâncias grandes. Creio que isso não se pode impedir.
Num país comunista, em teoria se cria uma sociedade igualitária. Mas numa sociedade como a de Stálin, como a de Mao, como a de Cuba hoje em dia, uma pessoa como Fidel Castro e um grupo relativamente pequeno têm umas condições que são estratosféricas em comparação com a dos pobres que se atiram ao mar para fugir.
Então, aí a igualdade resultou num mito, e o preço que se pagou por ela foi uma miséria generalizada, como a que deixou o socialismo na Rússia e no Leste da Europa. Acho que é inevitável que haja diferenças de renda e que a única maneira de atacar esse problema é fazer com que a diferença de renda resulte exclusivamente do esforço e do talento, não do abuso, do atropelo, do privilégio.
Isso é justamente o que faz o mercado, não? Agora, nessa sociedade regulada fundamentalmente pelo mercado livre, há setores que não podem competir e que ficam marginalizados porque são fracos —os velhos, os doentes. Não existe nenhum liberal que não reconheça isso e nenhum liberal que não aceite que a sociedade tem uma responsabilidade com relação a esses setores.
Quais são as sociedades que criaram os serviços públicos mais avançados? São as sociedades liberais, não as totalitárias. São as sociedades como a Inglaterra, como a França... Há um risco nisso, porque, como se está vendo nessas sociedades, o Estado "benefactor", quando começa a assumir tantas responsabilidades, num momento dado se converte numa espécie de monstro que começa a esmagar a iniciativa e entravar o processo de criação de riquezas. Tem que cobrar impostos muito altos —e os impostos altos afinal desincentivam a produção da riqueza.
Então, o ideal é que uma sociedade, ao mesmo tempo que cria um sistema em que há muitos estímulos para produzir riquezas, vá transferindo também à sociedade civil a responsabilidade dos serviços: educação, saúde... Há equilíbrio, mas o equilíbrio não deve levar nunca a que essa responsabilidade de redistribuir vá tão longe a ponto de destruir o princípio fundamental, que é a criação da riqueza. Sem criação de riqueza não há desenvolvimento, não há justiça.
O que acontece é que estamos formados por uma tradição, que por uma parte é cristã, por outra parte é socialista, que cria em nós uma resistência terrível a aceitar que uma sociedade pode estar composta por gente que tem mais e gente que tem menos riqueza. Isso nos produz uma repugnância íntima. Aquela história de que é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha que um rico entrar no reino do céu. Nós carregamos isso incrustado aqui dentro —a idéia de que o rico é um pecador, é mau.
É claro que essa é uma idéia fundamentalmente reacionária, antiprogressista. Se não fosse pelos empresários, por sua iniciativa, sua audácia, sua busca de novas fontes de benefício, estaríamos ainda nas sociedades mágicas, primitivas. O que temos que criar é um sistema em que o empresário tenha êxito servindo a todos.
Folha: O presidente eleito Fernando Henrique Cardoso foi muito criticado por ter-se aliado a setores da oligarquia tradicional, o que seria um entrave a seu projeto modernizador. O sr. sofreu o mesmo tipo de crítica. Em seu livro, admite que, se vencesse, seu governo teria dificuldade de administrar as diferenças entre os aliados.
Llosa: As razões no meu caso eram muito simples. Eu pensava que, para fazer aquelas reformas tão radicais, era muito importante ter uma base muito ampla, e por isso é que trabalhei nessa coalizão. Para mim, o fundamental era que houvesse um programa de reformas que fosse aceito por meus aliados conservadores, para que ele tivesse essa base popular.
Acho que a aliança me prejudicou. Muita gente me identificou mais àquelas velhas caras que ao programa novo. O que eu pensava era que, sendo eleito, eu teria, para negociar com meus aliados, um mandato popular sustentado num programa. Por isso durante toda a campanha eu fui tão explícito, explicando o programa, e isso inclusive também me prejudicou, aparentemente. Porque fiz questão de ser muito claro, não enganando ninguém sobre as reformas.
Folha: O sr. prevê problemas dessa ordem para FHC?
Llosa: Espero que não. Creio que as alianças sempre são difíceis. Sempre há tensões. Mas ele tem mostrado muita habilidade política para mover-se nesse mundo tão espinhoso. Creio que há, pela segunda vez no Brasil, uma oportunidade de que se façam reformas de modernização dentro da legalidade, e seria terrível desperdiçá-la. Confesso que tinha muito medo de que Lula vencesse, porque as idéias de Lula, tais como as escutei no ano passado num simpósio na Universidade de Princeton, me alarmaram muitíssimo.
Folha: O sr. chegou a se encontrar com Lula?
Llosa: Muito brevemente, só um cumprimento. Mas me pareceu, por seu discurso, um homem que se movia totalmente dentro do populismo, que tinha uma visão absolutamente anacrônica do que é o caminho do desenvolvimento, da modernização. Por isso me alegrei com a vitória de Cardoso.
Folha: Com ele o sr. nunca esteve?
Llosa: Estive sim, há vários anos, em Londres, quando estava por aqui, como embaixador, um amigo comum, e um grande liberal brasileiro, José Guilherme Merquior, uma pessoa enormemente culta e talentosa. Ele me apresentou a Cardoso e ali conversamos bastante —e isso foi antes que qualquer um de nós sequer suspeitasse que concorreria à presidência. Antes disso, eu o havia lido muito, como um dos pensadores da teoria da dependência.
Folha: Desde os anos 70 o sr. se afastou do marxismo e se tornou um ferrenho adversário de Cuba, ao contrário de escritores importantes como García Márquez e Julio Cortázar, que permaneceram de esquerda e a favor de Fidel. No livro, o sr. se refere a Cortázar com carinho, a despeito disso...
Llosa: Claro, tínhamos grandes diferenças, mas eu procuro não identificar amizade pessoal e preferências políticas.
Folha: E como o sr. vê a obra desses dois escritores hoje?
Llosa - Bem, eu tenho uma grande admiração por ambos. Escrevi até um livro enorme sobre García Márquez nos anos 70. Tenho-lhes muitíssima admiração, e precisamente porque os vejo como escritores tão importantes é que lamento mais que defendam opções que para mim são incompatíveis com a liberdade de criação, sem a qual García Márquez e Cortázar não teriam podido escrever o que escreveram.
Se eles tivessem vivido sob um regime como o de Fidel Castro, ou o da Coréia do Norte, o mais provável é que não teriam escrito as obras que escreveram, que requerem uma disponibilidade de espírito, uma liberdade de imaginação que é incompatível com um regime totalitário. Ou então teriam que arriscar-se à dissidência, ao exílio, aos campos de concentração.
Mas já sabemos que a alta inteligência e a alta cultura não estão protegidas da cegueira política. George Steiner, no formidável ensaio "Linguagem e Silêncio", diz: "A mais terrível comprovação de nosso tempo é que as humanidades não humanizam." Vimos isso no caso da URSS. As mais altas inteligências, os maiores poetas –Paul Éluard, Aragon, Neruda–, as grandes vozes líricas cantando poemas a Stálin.
Sartre, que se supunha a inteligência mais luminosa deste século, terminou seus dias fazendo o elogio do maoísmo, quando entre 20 e 40 milhões de chineses eram sacrificados à loucura fanática da Revolução Cultural.
Por isso, não surpreende que Cortázar e García Márquez tenham apoiado Fidel Castro, Cuba, o sandinismo...
Folha: A imprensa fez muito alarde quando o sr. brigou com García Márquez, há 15 anos. Como foi esse desentendimento?
Llosa: Foi um desentendimento pessoal, não político. Prefiro não comentá-lo.
Folha: Quais são suas relações com ele hoje?
Llosa: Não o vejo há muitos anos. Leio-o, mas não o vejo.
Folha: Outro gigante da literatura latino-americana, Borges, incomodava ao sr. pelo motivo oposto, por fazer uma literatura distanciada da experiência pessoal, da vida concreta.
Llosa: Sim, porque eu era sartreano quando jovem. Borges era então um amor inconfessável (risos). Eu não podia admitir que gostava dele, então o lia em segredo, como alguém que peca (risos).
Hoje, não. Exibo minha admiração com todo despudor. Creio que Borges é, sem nenhuma dúvida, o maior escritor da língua espanhola neste século, e um dos grandes criadores de nosso tempo —por sua originalidade, por sua sutileza, por sua universalidade. Ainda que o gênero fantástico esteja muito distante daquilo que eu faço.
Mas cada vez que o leio —e algumas vezes tive que ensiná-lo—, sinto um verdadeiro deslumbramento por Borges. Me parece um dos mundos mais ricos e pessoais que a literatura pode nos oferecer.
Folha: Em seu livro o sr. diz que mesmo no auge da campanha, no próprio dia da eleição, o sr. não deixava de ler poemas de Góngora, como um refúgio de pureza contra a mesquinharia da política.
Llosa: Sabe, era realmente como um prêmio, o momento, o momentinho em que eu podia concentrar-me num poema de Góngora.
Toda poesia é um mundo à parte, mas a de Góngora o é de um modo absoluto, entre outras coisas pela extremada complexidade de sua linguagem. Ela exige um grande esforço intelectual, uma concentração que automaticamente isola quem entra nela, separa-o da realidade. E é uma poesia deslumbrante, por sua riqueza, pelas alusões, pelas referências, pela musicalidade, pela potência verbal. Realmente é como uma hipnose, um feitiço. Para mim, era uma recompensa estar ali com Góngora naqueles momentos.
Folha: Alberto Moravia dizia que a arte e a política são incompatíveis porque, enquanto a primeira busca o absoluto, a segunda é o reino do contingente, do compromisso, da concessão. O sr. concorda com isso?
Llosa: Sim, estou de acordo, mas ao mesmo tempo tampouco creio que seja bom que a política se converta num monopólio de profissionais da política. Acho que isso é o mais perigoso para a democracia.
Folha: Paradoxalmente, o próprio Moravia se envolveu com política.
Llosa: Claro, e não se pode dizer que foi muito lúcido, porque apoiou o Partido Comunista. É outro caso de bom escritor que foi, politicamente falando, um cego.
Cito um caso que mostra como não só um escritor, mas toda uma classe intelectual pode cegar-se ideologicamente. Não sei se você gosta de "O Leopardo", de Lampedusa. Para mim é uma obra-prima, um dos grandes romances que foram escritos em nosso tempo.
Bem, você sabia que essa obra foi rejeitada por sete editoras? A primeira editora que o recusou foi aquela que era a mais prestigiosa na época, Einaudì. E o recusou porque quem escreveu um informe sobre ele foi Elio Vittorini —um escritor de enorme prestígio e influência, o equivalente italiano de Sartre, uma espécie de "maitre à penser" dos jovens.
Elio Vittorini disse à editora que não o publicasse porque era um romance que negava o movimento da história. É uma coisa realmente interessante como o preconceito ideológico pode chegar a cegar a inteligência totalmente. O próprio Moravia, aliás, foi um dos que rechaçaram Lampedusa.
Folha: Fujimori foi eleito no Peru com o apoio dos evangélicos. No Brasil, essas seitas são cada vez mais influentes, sobretudo junto aos mais pobres. O sr. não acha que o desencanto com a política tradicional pode trazer o risco de que muita gente se deixe levar por líderes messiânicos e irracionalistas?
Llosa: Sem nenhuma dúvida. Para mim, o fenômeno é este: por uma parte, em países que viveram períodos terríveis de empobrecimento, de crise social e violência política, entende-se muito bem que para grandes setores a realidade de repente deixe de ser racional, lógica, e que então haja um movimento rumo à pura irracionalidade para explicar a vida, explicar um mundo que se tornou totalmente incompreensível. Esse é um terreno propício para as doutrinas apocalípticas, messiânicas.
Por outra parte, esse fenômeno tem uma vertente religiosa. Que aconteceu? A Igreja Católica é uma igreja que, por muitas razões, foi perdendo enraizamento justamente nos setores mais marginalizados e pobres de nossos países.
A Igreja Católica, queiram ou não seus sacerdotes, passou a fazer parte do "establishment", e do ponto de vista de muitos setores é percebida como o poder, como a ordem, como algo muito remoto e distanciado das necessidades diárias dos pobres, por mais que haja tantos sacerdotes e freiras que façam um esforço contrário.
Isso deixa enormes setores da sociedade totalmente desguarnecidos espiritualmente. Esse vácuo está sendo preenchido por outros pastores, os evangélicos, que chegam como? Com a militância do pioneiro, do missionário, com uma enorme agressividade, e atraem esses setores mais pobres e desesperados.
Folha: Que são também os mais ignorantes, em geral...
Llosa: Claro. Sabe, há uma interessantíssima investigação dirigida por um professor da Universidade de Boston, Peter Berger.
Há muitos anos ele realiza uma pesquisa na América Latina sobre o avanço das igrejas evangélicas. Bem, os primeiros resultados são impressionantes: em países como a Guatemala, 50% da população está sob influência dessas igrejas; no Chile, 40%.
O que diz Berger? Diz que uma das razões para o êxito das igrejas evangélicas é que a Igreja Católica não tem padres suficientes para chegar a todos os setores. Há setores que estão completamente abandonados pela Igreja.
Mas outra das razões do êxito é que, precisamente por ser desamparada, vazia e rotineira a existência dos marginalizados, tem grande chance de preenchê-la uma igreja como as evangélicas —que exigem uma dedicação total, que não exigem somente a missa dos domingos, mas 24 horas por dia de militância, e que convertem a todos os seus membros em apóstolos e missionários.
Além disso, elas têm esse pragmatismo característico de todas as igrejas norte-americanas, organizando imediatamente sistemas de socorro, de ajuda mútua, e além de tudo impondo exigências rígidas, proibindo o álcool, as drogas, sendo tão puritanas em matéria sexual. As mulheres, sobretudo, sentem que isso cria uma ordem, defende as famílias.
Folha: Justamente quando fez sua "opção pelos pobres" a Igreja começou a perdê-los?
Llosa: Sim, porque o que os pobres queriam da Igreja era a Igreja, não a revolução. Os padres lhes ofereciam a revolução, às vezes a bomba, a guerrilha.
Na Colômbia, o pior exército terrorista, o mais destrutivo e cruel, é dirigido por um padre espanhol. Na América Central são comuns os padres revolucionários. Eles criaram uma confusão tal que muitos pobres simplesmente já não sentem que a religião lhes preenche a vida. Então chegaram os evangélicos.
Folha: O sr. estudou em colégios de padres, mas parece não ter muita simpatia pela Igreja...
Llosa: Eu não sou religioso, mas creio que a religião tem uma função na sociedade. Creio que uma sociedade que não vive uma vida religiosa é uma sociedade que entra rapidamente em um estado de insegurança que é muito perigoso, pois abre a porta a sucedâneos da religião, que podem ser os cultos e seitas mais absolutamente disparatadas.
Acho que as pessoas não podem viver sem uma fé. Os que podem substituir a fé pela cultura, pela moral, são muito poucos, são setores bem pequenos. A maior parte das pessoas precisa de uma fé para sentir que o mundo está ordenado, que há uma esperança.
Acho que, sobretudo em nosso mundo, sem religião não há moral. A religião é que dá moral às pessoas. Somente um setor muito pequeno pode criar uma moral laica. A religião é útil, com a condição de que haja um poder laico que a mantenha em seu lugar. Porque se a religião não fica em seu lugar, e a Igreja toma o poder, ela castra a liberdade do indivíduo, proíbe o divórcio, proíbe o aborto, o controle da natalidade. Estabelece uma ditadura, em suma. Acho importante que haja separação entre Igreja e Estado e liberdade de crença, mas que a sociedade tenha uma vida espiritual intensa, senão o que há é caos e violência.
Folha: O sr. também conhece bem o Exército, pois estudou em colégio militar. Ultimamente, parece que os militares gozam de uma certa reabilitação de prestígio em países como o Peru e o Brasil. No Brasil, muitos vêem a intervenção militar como única saída para o problema do narcotráfico. Como o sr. vê isso?
Llosa: Isso é perigosíssimo. Se uma sociedade civil abdica de sua responsabilidade, naturalmente o Exército vai substituí-la. Quer dizer, vamos voltar ao que foi a tradição autoritária, a tradição dos regimes castrenses que fez de nossos países o que são.
Se os exércitos começam a ocupar o plano da ação política, a cultura democrática desaparece, não? O Exército não é uma instituição criada para fazer serviços de polícia. O resultado mais provável de dar ao Exército esse tipo de obrigações é contaminá-lo, abrir suas portas à corrupção, à sua instrumentalização. Se colocarmos o Exército na luta contra a droga, acontecerá com ele o que acontece à polícia.
Folha: Qual seria uma maneira civilizada, democrática e ao mesmo tempo eficiente de enfrentar o problema da violência ligada ao narcotráfico?
Llosa: Creio que a luta contra a droga é uma luta em grande parte perdida. Porque a droga é um problema basicamente econômico. É um problema criminal em segunda instância.
A indústria do narcotráfico tem essa força porque gera lucros extraordinários. E em muitos lugares não há indústrias legais que possam competir, que possam oferecer uma alternativa a ela.
Qual é, então, a solução? Penso que a solução é a que propôs, por exemplo, a "The Economist": que os países produtores e consumidores se ponham de acordo e legalizem pelo menos as drogas leves. A descriminalização das drogas leves eliminaria ou reduziria sensivelmente a criminalidade.
Folha: Quais seriam essas drogas? A maconha e o haxixe?
Llosa: E também a cocaína. A imensa quantidade de recursos hoje gasta na repressão, e que ficaria liberada depois da descriminalização, seria empregada, em parte, em uma política pedagógica —por exemplo, como a que vem sendo desenvolvida no combate ao fumo, que é de uma eficácia extraordinária, pois reduziu de maneira drástica o consumo de cigarro.
Outra parte desses recursos seria gasta na repressão ao comércio das drogas pesadas. Entretanto, essa é uma política que só se pode levar a cabo mediante acordos internacionais, não pode ser adotada isoladamente por um país produtor ou um país consumidor.
Folha: Haveria também resistências culturais muito grandes.
Llosa: Sim, claro. Como em tudo. Todas as grandes reformas têm de vencer resistências. Em última instância, é sempre um combate de idéias, não de política.
De todo modo, devemos aceitar que o problema da droga é um problema gigantesco, no qual até agora não temos vitórias, só temos derrotas. E derrotas de dimensões imensas, tanto para os países ricos como para os pobres.
Houve um manifesto sobre o problema, encabeçado por García Márquez, que eu não quis assinar porque o considerei injusto. Dizia o manifesto: "Os Estados Unidos não fazem nada para combater as drogas e pedem a nós, latino-americanos, que o façamos etc.".
Isso não é verdade. Os Estados Unidos investem somas demenciais nesse combate, mas não conseguem nada. Eles continuam aumentando o investimento na repressão, e o consumo continua crescendo. Então, evidentemente, o caminho não é esse.
Se uma pessoa adulta quer tomar álcool, fumar cigarros, ela está atentando contra a sua saúde. E a sociedade chegou à conclusão de que lhe deve permitir fazê-lo, porque é sua responsabilidade pessoal.
Se esse mesmo senhor quer fumar maconha ou cheirar cocaína, então que ele adquira essas drogas dentro de uma regulamentação. Uma regulamentação que proíba que essas drogas se coloquem em mãos de menores ou em mãos irresponsáveis, mas que elimine toda essa monstruosa indústria delituosa que existe hoje em dia em torno da droga. E, por outro lado, se respeita o direito dos indivíduos responsáveis de fazerem o que querem com sua vida e com seu corpo.
Folha: O jornalismo foi importante para que o sr. conhecesse melhor a complexidade social do Peru. E do ponto de vista da linguagem? O texto jornalístico influenciou sua literatura?
Llosa: Bem, eu creio que há um perigo com o jornalismo. O trabalhar sobre a realidade e fazer da linguagem algo tão eminentemente funcional, como você está obrigado quando faz jornalismo, pode criar tiques, hábitos: o recurso ao estereótipo, ao clichê. Isso é um risco. E quando você faz literatura tem que haver essa espécie de luta para criar um estilo, quer dizer, para romper justamente os estereótipos e tudo o que é linguagem morta. Há também o risco do facilismo. O jornalismo cria uma facilidade, e a facilidade em literatura é o que há de pior.
O que para mim foi muito positivo no jornalismo foi me manter sempre com um pé na rua. Creio que em tudo que escrevi se percebe uma curiosidade, um interesse, uma preocupação, uma paixão pelo que está ocorrendo agora, em meu tempo, em meu mundo.
Folha: Há quem diga que a função de contar histórias foi assumida pelo cinema e pela TV, e que portanto a literatura deve ser outra coisa um trabalho com a linguagem que negue, pulverize ou destrua a narração. Como o sr. vê essas idéias?
Llosa: Creio que essas teorias deram origem à literatura mais aborrecida e mais perecível de nosso tempo. Essa teoria pode ser interessante, sobretudo quando a expressa algum desses franceses que têm, como dizia Koestler, "a capacidade de poder demonstar tudo aquilo em que creem, e de crer em tudo o que podem demonstrar" (risos). São grandes sofistas.
Isso de que a literatura pode ser só exploração das possibilidades de linguagem, isso de dinamitar a linguagem viva porque a linguagem está totalmente capturada pelo poder, essa idéia de que você se rebela contra o poder destroçando e reconstruindo as palavras —isso tudo pode ser divertido como proposta intelecutal, mas até agora não vi um só romance baseado nessas idéias que se possa ler.
Quem pode ler hoje em dia a Robbe-Grillet? É muito difícil. Provavelmente a única coisa interessante dele é o ensaio "Por um 'nouveau roman"', em que ele desenvolve essas teorias.
Quando Joyce escreveu o "Ulisses", bem, todas as teorias que podem estar por trás desse livro ficaram legitimadas. Mas até agora não há nenhuma obra que legitime essa idéia de que um romance pode ser um grande romance sem contar uma história, sem personagens, como puro exercício de linguagem. Durante certa época tentei ler muitos experimentadores, e me aborreci espantosamente.
Folha: O sr. tirou algum proveito dessas leituras?
Llosa: Suponho que, afinal, isso me serviu para reafirmar minha paixão pelo romance, digamos, de ordem tradicional, com histórias, com personagens, o romance como um mundo alternativo, que finge ser a realidade.
Folha: Ouvindo isso, temos a falsa impressão de que a sua narrativa é convencional...
Llosa:
Só no sentido de que há histórias, há personagens, há um tempo fictício. Mas, claro, na construção creio que você pode experimentar de tudo, para dar maior densidade, complexidade e ambiguidade a uma história, não?
Com a experiência de nosso tempo, não podemos contar histórias como as contava Balzac, ou como as contava Machado de Assis, a quem admiro enormemente. Digamos que há um tipo de leitor à sua frente que não admite uma história contada dessa maneira por um escritor contemporâneo.
Folha: O que impressiona em seus romances é justamente as diferentes e complexas maneiras como estão construídos, com diversas vozes narrativas que se alternam ou se misturam. O sr. elabora essas estruturas antes de começar a escrever?
Llosa: Não, elas vão saindo aos poucos. Tenho uma idéia nebulosa de uma história, umas trajetórias de personagens, que começam a se cruzar. Faço uns esquemas. Mas no princípio caminho totalmente às cegas, tateando, buscando distintas possibilidades até que começo a ver a estrutura.
Isso dá muito trabalho, significa dar muitas voltas, refazer as cenas desde distintos pontos de vista. Talvez o mais difícil seja encontrar o ponto de vista, decidir desde que perspectiva se vai contar a história, em que perspectiva no tempo e no espaço, e que haja um desenvolvimento coerente.
Folha: O cinema parece ter influenciado bastante seu modo de narrar.
Llosa: É verdade. Gosto muito de cinema. Digamos que no cinema sou muito menos exigente que na literatura. Gosto de coisas que na literatura eu não poderia ler. Eu não poderia ler um western, ou uma ficção científica, ou mesmo um policial. E gosto muito de alguns filmes desses gêneros.
Mas gosto também do que chamam filme de autor, claro. Sou um grande admirador de Visconti, de Buñuel, de Orson Welles e de todos os cineastas que conseguiram criar um mundo pessoal, algo que é muito mais difícil no cinema do que no romance, porque no cinema você tem que passar por uma série de mecanismos da indústria.
Folha: Buñuel dizia que o filme podia ter a linguagem, o gênero e o tema que quisesse, só não tinha o direito de ser chato.
Llosa: Sim, e creio que essa é também uma obrigação do romance: a obrigação de entreter.
Folha: Depois de toda a sua experiência política, afinal o sr. conseguiu descobrir, como queria o protagonista de "Conversa na Catedral", "onde foi que o Peru se fodeu" (risos?)
Llosa:
Bem, creio que é um processo. Creio que não há um momento. São muitos momentos, um atrás do outro. Sabe que essa frase se converteu quase num estribilho? A toda hora a repetem, no Peru.
Folha: A América Latina teve nos anos 50 a utopia desenvolvimentista, nos anos 60 a utopia revolucionária, antiimperialista. Há ainda lugar para a utopia no continente? Os latino-americanos ainda podem sonhar?
Llosa: Tenho a impressão de que, felizmente, a América Latina está se livrando das utopias. Acho que as utopias políticas são muito más e sempre conduzem ao desastre. A utopia, há que orientá-la para outras coisas: a literatura, as artes, o indivíduo... Creio que o indivíduo pode ter sua própria utopia, mas a sociedade não pode embarcar num projeto utópico, porque o resultado é a catástrofe.
Creio que há que aceitar que o desenvolvimento tem de ser gradual. O importante é ir progredindo, não retrocedendo, e ademais simultaneamente em distintos campos. Os países que mais progrediram são justamente os que adotaram essa metodologia, não? Tenho esperança de que na América Latina isso esteja começando a ocorrer em muitos países.
Folha: Seu liberalismo é muito mais um pragmatismo que uma utopia?
Llosa: O liberalismo não é utópico. O liberalismo está brigado com a utopia. O liberalismo parte da premissa de que o paraíso não é deste mundo. A idéia da sociedade perfeita, do paraíso na Terra, sempre produz o inferno.
Progressos graduais, não retroceder, empreender batalhas muito concretas, isso é o que Popper chamava "piecemeal approach". Isso é o reformismo, na realidade, que está contra a utopia, contra essa sede de absoluto, de alcançar a perfeição. A sociedade é muito complexa, muito diversa, há muitos interesses contraditórios. Portanto, esse método de fazer tábula rasa do existente para construir do zero a sociedade perfeita sempre trouxe uma violência terrível.
Folha: O sr. não acha que, com o fim do comunismo e a abertura dos mercados do Leste europeu, a América Latina tende a ser deixada de lado pelos investidores internacionais?
Llosa: Acho que não, acho que a América Latina está em muito boa posição. Hoje em dia os mercados são mundiais. O país que se fecha a essa internacionalização é um país que se condena a ficar para trás. A América Latina tem muito que oferecer ao mundo.
A América Latina em 1993 foi a segunda região do mundo, depois do Sudeste Asiático, em atração de investimentos estrangeiros: US$ 55 bilhões. Basta que a América Latina comece a fazer o adequado para que imediatamente haja uma resposta. Um país como o Brasil apresenta possibilidades tão imensas que com um pouco de sensatez o país deverá entrar rapidamente num processo de desenvolvimento acelerado. Se isso foi conseguido pelo Chile, um país pequeno e que hoje cresce a um ritmo comparável ao dos países asiáticos, o que dizer do Brasil?
Folha: O Brasil aparece em sua vida numa série de coincidências: a primeira vez que fez sexo foi com uma prostituta brasileira (risos), a primeira reportagem que escreveu foi sobre um embaixador brasileiro etc.
Llosa: É verdade. Que divertido. Não tinha me dado conta.
Folha: Como o sr. se interessou pela saga do Conselheiro, narrada em "A Guerra do Fim do Mundo"?
Llosa: Em 1972, por aí, o cineasta Ruy Guerra tinha sido contratado pela Paramount para fazer um filme e ele queria fazer algo que se relacionasse com a história de Canudos. O diretor da Paramount na França, que estava sustentando o projeto, me convidou para fazer o roteiro, de comum acordo com Ruy Guerra.
Eu conversei com ele, discutimos o que ele queria fazer. Eu não tinha lido "Os Sertões", de Euclides da Cunha, e foi então a primeira coisa que fiz. O livro me deslumbrou. Foi um dos livros que mais me impressionaram, um livro que me mudou um pouco a vida.
Trabalhei muito nesse roteiro, mas desgraçadamente o filme nunca foi feito. Desgraçadamente para Ruy Guerra, porque para mim deixou uma possibilidade formidável. Fiquei tão apaixonado pela história, pelos personagens, pelo ambiente, pela época, que decidi escrever o romance. Então continuei a trabalhar. Li tudo o que havia sido escrito até então sobre o assunto, depois viajei ao Brasil, estive em Canudos, em todo o Nordeste, no sertão baiano. Foi uma experiência realmente maravilhosa.
Foi a única vez que escrevi uma história que não era ambientada no Peru e nem no meu tempo.
Folha: O sr. está ansioso para visitar o Brasil?
Llosa: Muito, principalmente porque nunca estive em São Paulo, que deve ser muito impressionante.
O Brasil é um país que me levanta um pouco o espírito. Uma vez conversei com Manuel Puig, o escritor argentino que viveu tanto tempo no Rio de Janeiro, e ele me disse: "No Rio tenho a cada manhã a sensação de que, simplesmente colocando a cabeça na rua, encontro ali um ambiente, uma cor, um calor quer me faz sentir que a vida vale a pena ser vivida".
Cada vez que estive no Brasil senti exatamente isso. Vocês podem ter todo tipo de problemas, alguns terríveis, mas há algo no país que é muito estimulante, uma grande beleza que não é só apenas natural, mas também das pessoas, uma música. Há algo que é muito vital, explosivo.
Talvez porque venho de um país andino, e os países andinos são tristes. Na costa peruana a presença negra atenua um pouco isso, trazendo um toque de sensualidade e alegria. Mas a tradição andina é de gente triste, grave, austera. Há ali uma coisa muito profunda e, fundamentalmente, triste.


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