BERNARDO
CARVALHO
Da Reportagem Local
O americano Richard Rorty, 63, é um dos maiores expoentes
da chamada "filosofia neopragmática" ou "pós-analítica".
Algumas de suas principais teses foram expostas no polêmico
"A Filosofia e o Espelho da Natureza" (1979), onde atacava
a idéia da mente como um espelho refletindo o mundo e as
pretensões do pensamento metafísico a dar legitimidade
ao conhecimento.
Rorty não acredita numa correspondência direta entre
o pensamento e o mundo considera-se "antidualista,
antiplatônico e antifundacionista" (é contra
a idéia de que a filosofia paira acima da história
e das práticas sociais e tem a função de
fundar o conhecimento).
É absolutamente contra todas as teses essencialistas ou
universalistas ("Não podemos procurar a salvação
fora das práticas sociais", diz). Para ele, a filosofia
(e por conseguinte a linguagem) deve ser, antes de mais nada,
relativizada, colocada em contexto.
Professor da Universidade de Virginia (EUA), Rorty vem ao Brasil
para uma conferência no dia 19, no Rio de Janeiro, dentro
do projeto Banco Nacional de Idéias, cujo tema central
é "O Relativismo Enquanto Visão de Mundo".
"Vou falar sobre as discussões entre os filósofos
como eu, chamados de relativistas, e nossos críticos. Acho
que relativismo é um termo errado para definir a minha
filosofia, a de Derrida e a do pragmatismo americano de John Dewey,
por exemplo. Não devemos nos descrever como relativistas,
porque esse termo aceita premissas platônicas, que devemos
rejeitar", diz o filósofo, que deverá debater
com Luís Eduardo Soares e José Arthur Giannotti.
De seus livros mais significativos, apenas dois foram traduzidos
para o português, em Portugal: "Filosofia e o Espelho
da Natureza" e "Contingência, Ironia e Solidariedade".
Folha
Em "Filosofia e o Espelho da Natureza", o sr.
vai contra a epistemologia e a metafísica. Que tipo de
filosofia ainda é possível hoje?
Richard Rorty A filosofia não deveria
ser vista como uma disciplina científica, com uma função
social a servir. Os filósofos são pessoas que tentam
juntar novos desenvolvimentos culturais com regras familiares
aceitáveis. Tentam reconciliar ética cristã
com ciência newtoniana, por exemplo, ou iluminismo e racionalismo
com uma perspectiva darwiniana da origem humana. Sua função
é encontrar maneiras de reempacotar nossas crenças,
de forma a que as novas crenças possam coexistir com as
velhas.
Folha No mesmo livro, o sr. diz que os filósofos
que mais admira vêm de uma "tradição
terapêutica". O sr. poderia explicar o que quer dizer
com "uma filosofia terapêutica"?
Rorty O termo terapia filosófica está
associado, em inglês, a Wittgenstein, que era especialista
em dizer que muitos dos problemas tradicionalmente discutidos
em livros de filosofia simplesmente não precisam ser discutidos.
São resultado de uma obsessão neurótica em
relação a certos conceitos dispensáveis.
Filosofia terapêutica é uma concepção
de filosofia onde você tenta se livrar das muletas, da escolástica,
das questões cujos temas provocam debates infindáveis
e infrutíferos.
Folha O sr. é um admirador de Heidegger. Qual
seria o papel dele dentro dessa "filosofia terapêutica"?
Rorty O trabalho inicial de Heidegger era
uma polêmica contra Descartes e Kant, tentando colocar de
lado a idéia que os dois faziam do que é o ser humano
e os problemas filosóficos artificiais criados pelas imagens
cartesianas e kantianas. Penso em Heidegger como um filósofo
que fez, à sua maneira, o mesmo que Wittgenstein e Dewey
fizeram.
Folha Como o sr. explica a recente redescoberta e reavaliação
de John Dewey (filósofo do pragmatismo americano, 1859-1952)
pela filosofia?
Rorty Acho que ele foi eclipsado por Marx.
Os dois eram discípulos de Hegel e concordavam com o mestre
contra Kant. Mas por um longo período, durante o tempo
em que o comunismo pareceu ser uma opção possível,
as pessoas pensaram que, se quisessem um ponto de vista antikantiano
e anti-hegeliano, o lugar para achá-lo era em Marx. Hoje,
com a queda do comunismo, Dewey parece melhor, surgindo como uma
versão naturalizada e darwinizada de Hegel.
Folha Há algum futuro para a filosofia num mundo
onde verdade e objetividade foram completamente relativizados?
Rorty Não há uma função
para o tipo de filosofia que Descartes sugeriu que devíamos
conduzir. Mas acho que sempre haverá a necessidade de intelectuais
que tentem fazer a ponte entre o novo e o velho. Sempre haverá
pessoas chamadas de filósofos na falta de um termo melhor.
Folha Mas não haveria o risco de um vasto cinismo
das idéias numa cultura em que conceitos como verdade e
objetividade foram submetidos a um extensivo relativismo?
Rorty É certamente uma possibilidade,
mas o medo do cinismo também já estava presente
nos séculos 17 e 18, quando os intelectuais estavam começando
a secularizar a cultura. As pessoas pensavam que, sem as crenças
religiosas tradicionais, o cinismo ia tomar conta. Estavam errados.
Os intelectuais foram bem-sucedidos em secularizar a cultura sem
produzir cinismo. Por analogia, espero que possamos nos livrar
da metafísica e, ainda assim, evitar o cinismo.
Folha O sr. trata de questões prioritárias
também para filósofos de uma linha completamente
diferente da sua, como os franceses Michel Foucault e Gilles Deleuze.
Como o sr. vê a filosofia francesa pós-sartriana?
Rorty Dos filósofos franceses que
apareceram depois de Sartre, acho Derrida o mais importante. Ele
tem o pensamento mais original e funciona muito bem dentro da
tradição de língua inglesa da filosofia da
linguagem contemporânea. Também admiro dois pensadores
franceses mais recentes, Bruno Latour e Vincent Descombes, que
escreveram contra a própria idéia de pós-moderno,
contra os livros de Lyotard.
Folha Por que o sr. é contra a idéia de
pós-moderno?
Rorty Acho que a noção de pós-moderno
não tem qualquer utilidade. É mais uma tentativa
artificial de sugerir que recentemente passamos por algo dramático
e importante. Não acho que o século 20 faça
essa passagem entre o moderno e o pós-moderno. Muito tempo
e energia estão sendo gastos na reflexão sobre o
tópico do pós-modernismo.
Folha O sr. aceita o rótulo de filósofo
pós-analítico que lhe é atribuído?
Rorty Não tenho certeza. Creio que
continuo sendo um filósofo analítico porque discuto
muitos dos tópicos que foram discutidos por filósofos
analíticos. Tenho a tendência a ficar nervoso com
o termo pós, que me parece excessivamente usado.
Folha O sr. chegou a dizer que não acreditava
mais na possibilidade de uma filosofia analítica hoje...
Rorty Acho que é um tipo de filosofia
perfeitamente correta, não acho que seja impossível.
Muito da filosofia analítica se tornou extremamente enfadonho,
mas isso é uma outra questão. Há filósofos
analíticos contemporâneos como Putnam e Davidson
que, embora não sejam originais como Derrida, continuam
fazendo importantes contribuições.
Folha O sr. escreveu sobre o conceito de mente (mind)
de uma forma original e inovadora dentro da perspectiva filosófica.
O que o sr. pensa do trabalho recente de neurobiólogos
como Gerald Edelman? Eles podem mudar alguma coisa nas ciências
humanas e na filosofia?
Rorty Não li muito de Edelman. O que
li não me sugere que ele estabeleça qualquer relação
com as questões que preocupam os filósofos. Não
acredito que entenda bem o que os filósofos vêm discutindo.
Folha O sr. também escreveu sobre a "filosofia
da solidariedade". Poderia explicar qual o sentido do conceito
"solidariedade" no seu trabalho?
Rorty
Não significa nada muito técnico.
A idéia é que, se você abre mão de
Deus, da idéia da verdade como uma representação
exata e da natureza intrínseca da realidade, não
sobra nada além das práticas sociais humanas em
que você possa se ancorar. O termo solidariedade é
apenas uma maneira de sugerir que nós, humanos, só
podemos contar conosco e não podemos procurar a salvação
fora das práticas sociais.