FERNANDO
DE BARROS E SILVA
Da Reportagem Local
Oswaldo Porchat Pereira, 61, é o único e talvez
primeiro filósofo cético brasileiro. Diz ter
encontrado no ceticismo clássico, formulado principalmente
pelo filósofo grego Sexto Empírico, a possibilidade
de conciliar a vida comum e a filosofia, libertando-se da tentação
dogmática que atravessa o Ocidente há dois mil anos.
Seu livro "Vida Comum e Ceticismo", que acaba de ser lançado,
reúne 25 anos de reflexão. Nele estão registradas
as etapas de um pensamento que partiu da opção pelo
silêncio diante da impossibilidade de escolher essa ou aquela
filosofia, passou pela tentativa de dar estatuto filosófico
à visão comum do mundo e chegou ao ceticismo.
Porchat, além de originalíssimo, é uma das
pessoas mais eruditas do país. Formado em letras clássicas,
estudou direito por quatro anos. Abandonou o curso para fazer, na
França, sua tese de doutorado sobre Aristóteles. Afastou-se
da USP na década de 70 e fundou na Unicamp o Centro de Lógica,
Filosofia e História da Ciência. De volta à
USP em 85, leciona hoje nos cursos de graduação e
pós-graduação do Departamento de Filosofia.
Folha O sr. faz parte da geração que "importou"
para a USP o estudo da filosofia tal como era praticado na França.
Qual a influência de historiadores da filosofia como Victor
Goldschmidt e Martial Géroult sobre sua formação?
Oswaldo Porchat Pereira Minha preocupação,
já na época em que começamos a lecionar na
USP, no início dos anos 60, não era a de ser um historiador
da filosofia. Eu queria ser um filósofo. Queria filosofar.
Para isso eu achava não só que precisava conhecer
a história da filosofia, coisa que ainda acho até
hoje, mas pensava, numa atitude radical, que fazendo história
da filosofia já estaria fazendo filosofia e que não
cabia mais tentar construir uma doutrina própria ou idéias
que pudessem se apresentar como um pensamento original. O importante,
achava eu influenciado por Goldschmidt e Géroult, era trabalhar
sobre as estruturas filosóficas. Esse enfoque, creio hoje,
é castrador. Ele nos proíbe, por assim dizer, um pensamento
criativo, original. Custou-me bastante libertar-me desse modo de
ver a filosofia. Hoje procuro estimular os meus alunos a expor suas
idéias, a ousar pensar, a não ter medo de ser criticado.
Folha A sua tentativa de conciliar filosofia e
vida comum passou por etapas até chegar no ceticismo. O sr.
acredita ter resolvido esse problema, que não é só
teórico, mas também existencial?
Porchat Julgo ter descoberto que a conciliação
entre a filosofia e a vida, que eu tanto buscava, o pirronismo a
tinha já feito. Ser cético não era, já
no pirronismo, apenas criticar os dogmatismos filosóficos,
mas também assumir a vida comum, libertando-a de todo o enfoque
dogmático. Assumir a precariedade, a contigência, a
não fundamentação, a impossibilidade de manter
o absoluto como meta.
Folha Já foi ressaltado o viés autobiográfico
da sua postura filosófica. É como se estivéssemos
acompanhando a confissão de uma conversão filosófica.
Porchat Mas o que é um cético, afinal?
É uma pessoa que se pôs a filosofar e não descobriu
uma verdade que pudesse aceitar e propor à consideração
dos outros. Ele só pode contar aos outros a sua própria
experiência, daí o caráter confessional. O cético
não tem algo a anunciar. Ele conta aos outros a história
dos seus problemas na expectativa de que, se outros pensarem criticamente
e com rigor, eles talvez chegem a experiências semelhantes.
Folha Na linguagem da rua, o cético é
um pessimista. A renúncia à verdade não é
uma atitude muito negativa em relação à razão?
Porchat Não vejo no ceticismo qualquer sombra
de pessimismo filosófico. Pelo contrário, há
um grande otimismo, apesar de alguma aparência em contrário,
quanto ao homem e ao exercício de sua razão. O ceticismo
pretende denunciar o uso inadequado da razão. Pretende desmistificar
os exageros, os desmandos e os delírios da razão humana.
Pretende levar o homem para o exercício sadio da sua racionalidade.
O ceticismo, para mim, significa "Denunciemos os mitos, vivamos
com intensidade a experiência e façamos da razão
um instrumento de exploração das possibilidades e
riquezas da vida".
Folha Como um cético como o sr. se comporta
no plano moral, já que não há verdade que não
esteja sob suspeição?
Porchat Muitos vêem nisso uma dificuldade. Eu
diria que é preciso perguntar se não há um
mito muito difundido segundo o qual uma ação moral,
uma vida condicionada pela observância de preceitos morais,
não é possível sem a adoção de
valores absolutos. Minha experiência e minha reflexão
me levam para resultado contrário. Seres humanos que se comportam
de maneira que todos reputam moralmente adequada frequentemente
são pessoas sem nenhuma crença em valores absolutos,
são pessoas bastante relativistas nas suas posições
e não pretendem dar qualquer justificação última
ao seu comportamento cotidiano. Por outro lado, há pessoas
que se arvoram em defensores de dogmas morais e de imperativos absolutos
que frequentemente dão exemplos moralmente no mínimo
criticáveis.
Folha Quando digo que neste instante estou sentado
numa cadeira julgo que esteja dizendo uma verdade incontestável.
Como se comporta um cético diante dessa afirmação?
Porchat O pirronismo grego temeu usar a noção
de verdade devido ao peso metafísico e ontológico
de que estava carregada na filosofia clássica. Creio que
se possa defender que o pirronismo, do mesmo modo como distingue
uma noção dogmática de critério de uma
noção cética de critério, uma noção
dogmática de doutrina de uma noção cética
de doutrina, do mesmo modo poderia distinguir uma noção
dogmática de verdade de uma noção cética
de verdade. Porque quando não estamos fazendo filosofia acreditamos
estar dizendo verdades. O cético não negaria que é
verdade que estamos no Brasil ou que estamos sentados agora. O cético
critica o que as filosofias fizeram com a palavra verdade.
|