UM CÉTICO CONTRA OS DELÍRIOS DA RAZÃO


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Da Reportagem Local

Oswaldo Porchat Pereira, 61, é o único —e talvez primeiro— filósofo cético brasileiro. Diz ter encontrado no ceticismo clássico, formulado principalmente pelo filósofo grego Sexto Empírico, a possibilidade de conciliar a vida comum e a filosofia, libertando-se da tentação dogmática que atravessa o Ocidente há dois mil anos. Seu livro "Vida Comum e Ceticismo", que acaba de ser lançado, reúne 25 anos de reflexão. Nele estão registradas as etapas de um pensamento que partiu da opção pelo silêncio diante da impossibilidade de escolher essa ou aquela filosofia, passou pela tentativa de dar estatuto filosófico à visão comum do mundo e chegou ao ceticismo.
Porchat, além de originalíssimo, é uma das pessoas mais eruditas do país. Formado em letras clássicas, estudou direito por quatro anos. Abandonou o curso para fazer, na França, sua tese de doutorado sobre Aristóteles. Afastou-se da USP na década de 70 e fundou na Unicamp o Centro de Lógica, Filosofia e História da Ciência. De volta à USP em 85, leciona hoje nos cursos de graduação e pós-graduação do Departamento de Filosofia.


Folha — O sr. faz parte da geração que "importou" para a USP o estudo da filosofia tal como era praticado na França. Qual a influência de historiadores da filosofia como Victor Goldschmidt e Martial Géroult sobre sua formação?

Oswaldo Porchat Pereira — Minha preocupação, já na época em que começamos a lecionar na USP, no início dos anos 60, não era a de ser um historiador da filosofia. Eu queria ser um filósofo. Queria filosofar. Para isso eu achava não só que precisava conhecer a história da filosofia, coisa que ainda acho até hoje, mas pensava, numa atitude radical, que fazendo história da filosofia já estaria fazendo filosofia e que não cabia mais tentar construir uma doutrina própria ou idéias que pudessem se apresentar como um pensamento original. O importante, achava eu influenciado por Goldschmidt e Géroult, era trabalhar sobre as estruturas filosóficas. Esse enfoque, creio hoje, é castrador. Ele nos proíbe, por assim dizer, um pensamento criativo, original. Custou-me bastante libertar-me desse modo de ver a filosofia. Hoje procuro estimular os meus alunos a expor suas idéias, a ousar pensar, a não ter medo de ser criticado.

Folha A sua tentativa de conciliar filosofia e vida comum passou por etapas até chegar no ceticismo. O sr. acredita ter resolvido esse problema, que não é só teórico, mas também existencial?

Porchat — Julgo ter descoberto que a conciliação entre a filosofia e a vida, que eu tanto buscava, o pirronismo a tinha já feito. Ser cético não era, já no pirronismo, apenas criticar os dogmatismos filosóficos, mas também assumir a vida comum, libertando-a de todo o enfoque dogmático. Assumir a precariedade, a contigência, a não fundamentação, a impossibilidade de manter o absoluto como meta.

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Já foi ressaltado o viés autobiográfico da sua postura filosófica. É como se estivéssemos acompanhando a confissão de uma conversão filosófica.

Porchat — Mas o que é um cético, afinal? É uma pessoa que se pôs a filosofar e não descobriu uma verdade que pudesse aceitar e propor à consideração dos outros. Ele só pode contar aos outros a sua própria experiência, daí o caráter confessional. O cético não tem algo a anunciar. Ele conta aos outros a história dos seus problemas na expectativa de que, se outros pensarem criticamente e com rigor, eles talvez chegem a experiências semelhantes.

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Na linguagem da rua, o cético é um pessimista. A renúncia à verdade não é uma atitude muito negativa em relação à razão?

Porchat — Não vejo no ceticismo qualquer sombra de pessimismo filosófico. Pelo contrário, há um grande otimismo, apesar de alguma aparência em contrário, quanto ao homem e ao exercício de sua razão. O ceticismo pretende denunciar o uso inadequado da razão. Pretende desmistificar os exageros, os desmandos e os delírios da razão humana. Pretende levar o homem para o exercício sadio da sua racionalidade. O ceticismo, para mim, significa "Denunciemos os mitos, vivamos com intensidade a experiência e façamos da razão um instrumento de exploração das possibilidades e riquezas da vida".

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Como um cético como o sr. se comporta no plano moral, já que não há verdade que não esteja sob suspeição?

Porchat — Muitos vêem nisso uma dificuldade. Eu diria que é preciso perguntar se não há um mito muito difundido segundo o qual uma ação moral, uma vida condicionada pela observância de preceitos morais, não é possível sem a adoção de valores absolutos. Minha experiência e minha reflexão me levam para resultado contrário. Seres humanos que se comportam de maneira que todos reputam moralmente adequada frequentemente são pessoas sem nenhuma crença em valores absolutos, são pessoas bastante relativistas nas suas posições e não pretendem dar qualquer justificação última ao seu comportamento cotidiano. Por outro lado, há pessoas que se arvoram em defensores de dogmas morais e de imperativos absolutos que frequentemente dão exemplos moralmente no mínimo criticáveis.

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Quando digo que neste instante estou sentado numa cadeira julgo que esteja dizendo uma verdade incontestável. Como se comporta um cético diante dessa afirmação?

Porchat — O pirronismo grego temeu usar a noção de verdade devido ao peso metafísico e ontológico de que estava carregada na filosofia clássica. Creio que se possa defender que o pirronismo, do mesmo modo como distingue uma noção dogmática de critério de uma noção cética de critério, uma noção dogmática de doutrina de uma noção cética de doutrina, do mesmo modo poderia distinguir uma noção dogmática de verdade de uma noção cética de verdade. Porque quando não estamos fazendo filosofia acreditamos estar dizendo verdades. O cético não negaria que é verdade que estamos no Brasil ou que estamos sentados agora. O cético critica o que as filosofias fizeram com a palavra verdade.


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