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                MAURÍCIO TUFFANI
                Editor-assistente de Ciência
                
                
                O filósofo e matemático brasileiro Newton Carneiro 
                Affonso da Costa, 68, um dos nomes mais importantes da lógica 
                contemporânea, acaba de lançar o livro "O Conhecimento 
                Científico".
                Rompendo com uma tradição aristotélica de 
                mais de 2.000 anos, esse homem de aparência e modos convencionais, 
                casado, três filhos, nascido em Curitiba, no Paraná, 
                criou em 1963 uma lógica que admite contradições: 
                a lógica paraconsistente.
                Quase desconhecido no Brasil, e famoso nos círculos acadêmicos 
                de vários países, ele já não consegue 
                acompanhar o desenvolvimento de sua lógica, devido à 
                repercussão que ela teve.
                Em julho e agosto deste ano foi realizado na Universidade de Ghent, 
                na Bélgica, o Primeiro Congresso Internacional de Paraconsistência, 
                com a participação de importantes pesquisadores 
                de todo o mundo.
                Autor de cerca de 200 trabalhos sobre lógica, teoria da 
                ciência e fundamentos da física, ele é o único 
                brasileiro membro do seleto Instituto Internacional de Filosofia 
                de Paris.
                Alheio aos temas da filosofia especulativa, ele foi muitas vezes 
                indevidamente tachado como neopositivista por sua formação 
                com ênfase na ciência, em especial na matemática, 
                na física e na lógica.
                Da Costa consegue também ficar alheio ao que quase todas 
                as pessoas acompanham. Sua paixão pelo estudo o impede 
                de perder tempo com a maior parte dos outros assuntos.
                Ele já se mostrou incapaz de identificar, por exemplo, 
                músicas como algumas das mais famosas de Roberto Carlos 
                e atrizes como Sônia Braga. Música para ele, somente 
                a dos clássicos, como Beethoven, Chopin e outros.
                Em 1978, com a Copa do Mundo acontecendo na Argentina, ele foi 
                ao campus da USP para dar uma aula no dia e horário de 
                um dos jogos da Seleção Brasileira, e ficou surpreso 
                ao ver os corredores da faculdade vazios.
                Apesar de praticamente não ler jornais e revistas, ele 
                consegue estar sempre razoavelmente atualizado com relação 
                aos acontecimentos políticos e econômicos.
                Após ler o jornal, sua mulher comenta resumidamente os 
                assuntos principais _na visão dele, é claro_ e, 
                conforme o caso, separa as matérias pelas quais ele pode 
                se interessar.
                Em certo sentido, ele é uma contradição viva. 
                Formado em engenharia, segundo ele para entender a aplicação 
                da ciência, é capaz de se atrapalhar para trocar 
                um pneu.
                A idéia de trabalhar com a contradição atraiu 
                para a lógica paraconsistente estudiosos de várias 
                áreas, inclusive psicanalistas, que reconhecem no trabalho 
                a formalização da idéia de contradição 
                que, segundo Freud, existiria no próprio plano do inconsciente.
                Na área do direito, alguns estudiosos vêem a paraconsistência 
                como um sistema capaz de viabilizar processos dedutivos a partir 
                de premissas contraditórias correspondentes a interesses 
                em conflito. Na informática, especialistas já desenvolvem 
                sistemas para processar dados contraditórios.
                As incursões de Newton da Costa nos fundamentos da física 
                têm culminado em artigos veiculados em algumas das mais 
                conceituadas publicações científicas. No 
                campo da teoria da ciência, ele retomou o caminho heterodoxo 
                com o conceito de "quase-verdade".
                Em entrevista à Folha, que contou a participação 
                de Caetano Ernesto Plastino, professor de teoria do conhecimento 
                e filosofia da ciência da USP, Newton da Costa falou sobre 
                sua trajetória intelectual e, em particular, sobre seu 
                trabalho em lógica e teoria da ciência.
                
                Folha  O que levou o sr. a procurar o caminho da lógica?
                 
                Newton da Costa  Desde jovem sempre me interessei 
                muito, pelas mais variadas razões, em saber exatamente 
                o que é o conhecimento científico. Entender, realmente, 
                a natureza do conhecimento científico e do conhecimento 
                em geral. Então, fui levado a estudar várias ciências, 
                em especial a matemática e a física. E na hora em 
                que você começa a querer realmente entrar nos fundamentos 
                da ciência, você automaticamente é levado a 
                estudar a lógica. Hoje, quem quer saber o que é 
                definição, o que é dedução, 
                o que é indução e que queira entender a ciência 
                desse ponto de vista científico é automaticamente 
                levado à lógica.
                
                Folha  O sr. começou seus estudos acadêmicos 
                na área de engenharia. Por quê?
                
                Da Costa  Eu me formei em engenharia porque 
                ela trata das aplicações dos conceitos da ciência. 
                Por exemplo, na resistência dos materiais, na estabilidade 
                das construções, temos aplicações 
                da mecânica clássica. Para termos uma idéia 
                sensata da noção de aplicação de uma 
                ciência pura à realidade, nada melhor do que estudar 
                engenharia. Uma segunda razão dessa escolha foi porque 
                eu achava que no estudo da engenharia havia bastante matemática, 
                o que, na verdade, não é muito correto. Mas depois 
                me formei em matemática. Sou também bacharel e licenciado 
                em matemática.
                
                Folha  De onde vem o seu interesse em trabalhar com lógicas 
                não-clássicas?
                
                Da Costa  As lógicas não-clássicas 
                foram, no meu caso, fruto de meu interesse em temas complexos 
                de ciência. Um exemplo típico desses temas é 
                o da mecânica quântica. Vários autores, desde 
                a década de 30, diziam que a lógica clássica 
                não podia ser aplicada aos fundamentos da mecânica 
                quântica. Isso me levou então a trabalhar com outros 
                tipos de lógica e com os fundamentos da matemática 
                e quem estuda matemática geralmente pouco 
                se interessa pelas polêmicas sobre os fundamentos da matemática 
                do começo do século! Além disso, como fui 
                fui levado a estudar a lógica tradicional, me interessei 
                pelos seus paradoxos. Se você se interessa por esses estudos, 
                cedo ou tarde se depara com certas dificuldades, que eram conhecidas 
                como paradoxos na lógica ou na matemática.
                As lógicas não-clássicas, no meu caso a lógica 
                paraconsistente, nasceu do seguinte problema. Georg Cantor dizia 
                que a essência da matemática está na sua liberdade. 
                Pois bem, os paradoxos que surgiram no começo do século, 
                em geral, foram eliminados com a manutenção da lógica 
                tradicional e com a introdução de restrições 
                nos postulados da teoria dos conjuntos. Se a matemática 
                é absolutamente livre, como disse Cantor, vamos fazer um 
                pouquinho diferente. Sem introduzir restrições nos 
                postulados da teoria dos conjuntos, podemos mudar a lógica. 
                E, com isso, podemos reconstruir a matemática clássica 
                inteira.
                
                Folha  Que trabalho seu pode ser considerado como o início 
                da lógica paraconsistente?
                
                Da Costa  A minha tese de cátedra "Sistemas 
                Formais Inconsistentes", de 1963, na Faculdade de Filosofia, 
                Ciências e Letras da Universidade Federal do Paraná.
                
                Folha  O que vem a ser a lógica paraconsistente?
                
                Da Costa  Primeiramente deixe-me explicar 
                o que é a lógica. Ela pode ser entendida como o 
                estudo dos processos pelos quais certas sentenças ou proposições 
                podem ser deduzidas de outras.
                Desde a época de Aristóteles, um dos princípios 
                da lógica é o de não-contradição. 
                Ele estabelece a impossibilidade de que uma sentença qualquer 
                e sua negação sejam ambas verdadeiras. Tome, por 
                exemplo, a sentença "eu moro em São Paulo". 
                Não é possível admitir, com base nesse princípio 
                que essa sentença e sua negação, "eu 
                não moro em São Paulo", sejam verdadeiras. 
                Desse modo, a lógica clássica não admite 
                contradições.
                A grosso modo, na nossa experiência cotidiana, é 
                assim que as coisas são e é por isso que a lógica 
                clássica tem seu campo de aplicação. Mas 
                acontece que quando diferentes campos da ciência evoluem 
                e se tornam mais complexos, as contradições aparecem.
                Na física, por exemplo, as partículas atômicas, 
                em determinadas circunstâncias, não se comportam 
                como partículas, mas como ondas. Isso significa, sob certos 
                aspectos, que elas são e não são partículas. 
                Essa dificuldade pode ser superada, como usualmente os físicos 
                fazem, tentando, de uma maneira ou outra eliminar a contradição 
                e manter a lógica clássica. Porém, se quisermos 
                tratar diretamente do problema, sem desvios teóricos, torna-se 
                necessária a utilização de uma lógica 
                diferente da clássica, que aceite contradições. 
                E a lógica paraconsistente foi idealizada para tratar de 
                problemas desse tipo.
                
                Folha  Além dos problemas da ciência, ela 
                tem outras aplicações?
                
                Da Costa  Ela pode ser aplicada, por exemplo, 
                na computação em sistemas especialistas. Um sistema 
                especialista de suporte a diagnósticos médicos baseado 
                na lógica paraconsistente pode processar dados contraditórios 
                sobre as condições de saúde de um paciente, 
                quando é impossível verificar qual deles é 
                o verdadeiro.
                
                Folha  Por que em certos contextos científicos 
                é conveniente o emprego de lógicas não-clássicas, 
                como a lógica paraconsistente?
                
                Da Costa  Dois são os motivos principais 
                para a utilização de lógicas diferentes da 
                clássica, por exemplo, no domínio da física, 
                que é a ciência com a qual me ocupo no momento. O 
                primeiro é o que vários autores já observaram: 
                que na mecânica quântica parece ser imprescindível 
                o uso de lógicas não-clássicas. O segundo 
                motivo é que as principais teorias físicas, como 
                a relatividade geral e a mecânica quântica, são 
                incompatíveis, contraditórias, e a única 
                maneira no momento de compatibilizá-las consiste no uso 
                de algum tipo de lógica paraconsistente.
                
                Folha  Podemos então dizer que as contradições 
                na ciência são racionalmente admissíveis sob 
                certas circunstâncias?
                
                Da Costa  Sob certas circunstâncias, como nos 
                exemplos da pergunta anterior. Mas, na minha opinião, a 
                situação não está totalmente resolvida. 
                Somente ao futuro está reservada a resposta final.
                
                Folha  Quando o sr. propôs a lógica paraconsistente, 
                como seu trabalho foi recebido de imediato na comunidade científica 
                brasileira e internacional?
                
                Da Costa  Quando olho para trás, fico 
                surpreso, porque não houve tanta reação como 
                poderia ter havido. Qualquer um poderia pensar: "Isso é 
                uma maluquice!". Mas eu tive sorte. Comecei a mandar trabalhos 
                para a Academia de Ciências da França, que começou 
                a publicar muitas notas e trabalhos grandes sobre lógica 
                paraconsistente. Isso deu um curto-circuito aqui, porque as pessoas 
                que achavam que isso era besteira diziam: "Mas é besteira 
                e a França está fazendo, está aceitando?".
                Eu acho que as últimas resistências foram eliminadas 
                quando a lógica paraconsistente passou a ser empregada 
                na informática e começou a encontrar aplicações. 
                A Escola Politécnica da USP hoje tem uma disciplina de 
                lógica paraconsistente. E, por fim, as pessoas compreenderam 
                que, no meu caso, realmente, eu não quis destruir a lógica 
                clássica. Ao contrário, a lógica clássica 
                tem seu o domínio de aplicação e pode ser 
                entendida como um caso particular da lógica paraconsistente, 
                que tem um domínio de aplicação maior.
                
                 Folha  Mas, voltando às resistências, o 
                sr. poderia citar exemplos?
                 
                Da Costa  Nunca ninguém me enfrentou 
                diretamente numa discussão. Nunca deixei de ter as coisas 
                que eu queria por causa do caráter heterodoxo do meu trabalho. 
                Sempre tive sucesso nos concursos dos quais participei.
                
                Folha  O seu trabalho fez surgir uma escola no Brasil?
                
                Da Costa  Em um certo sentido, sim. Criamos 
                no Brasil um grupo importante de lógica paraconsistente. 
                Mas uma das coisas de que eu mais me orgulho é o conjunto 
                de pessoas que trabalharam comigo em áreas diversas da 
                lógica.
                Eu nunca forcei ninguém a trabalhar em lógica paraconsistente. 
                Aliás, o que se passava era exatamente o contrário. 
                Para qualquer pessoa que se aproximava de mim, eu sempre dizia: 
                "Olha, comece trabalhando com a lógica clássica, 
                que é a mãe de todas, a matemática tradicional 
                é essencial''. E se alguém quisesse mesmo trabalhar 
                com lógica paraconsistente, então eu ajudava. Mas 
                jamais, em momento nenhum, induzi alguém a escolher a lógica 
                paraconsistente, ou algum tema em que eu trabalho.
                Formei um grupo de umas 30 pessoas aqui no Brasil e que hoje têm 
                reputação internacional. E eu me orgulho mais dos 
                meus discípulos do que da minha obra propriamente dita. 
                Acho que o que me orgulha é ser um pescador de almas, de 
                talentos, não só aqui no Brasil como no exterior.
                
                Folha  O sr. concordaria com a afirmação 
                de Bertrand Russell de que a lógica é a essência 
                da filosofia da ciência?
                
                Da Costa  Tenho uma grande admiração 
                pelo Russell, mas eu não seria tão exagerado. Hoje 
                em dia, há várias lógicas alternativas, e 
                seria necessário, em cada caso, especificar a lógica 
                a ser usada. Isso torna a afirmação de Russell um 
                tanto relativizada e, assim encarada, eu a tenho como correta 
                em boa parte.
                Por outro lado, acho que deve haver alguma coisa além. 
                Se bem que, no meu caso, cultivo uma parte da filosofia que praticamente 
                pode ser resumida numa análise lógica. Mas não 
                sou como Russell, nem como os neopositivistas, que dizem que o 
                resto é totalmente sem sentido.
                Ao contrário, quisera eu ter o dom e a inquietação 
                para compreender essa outra contraparte também. Recentemente, 
                algumas vezes, tenho sido criticado porque dizem que minhas análises 
                filosóficas não são tão profundas 
                como deveriam ser. Isso se deve talvez a uma limitação 
                minha, pessoal ou intelectual. Mas, por outro lado, eu gosto da 
                contraparte da lógica formal.
                
                Folha  Uma das ferramentas de seu trabalho é a 
                axiomatização, que consiste na formulação 
                de princípios ou axiomas das teorias científicas. 
                Quais são os limites da axiomatização e da 
                formalização do estudo do pensamento científico, 
                segundo a sua concepção?
                
                Da Costa  Uma das coisas que eu mais faço 
                e mais gosto de fazer é exatamente os estudos lógico-formais 
                dos fundamentos das ciências, especialmente da física. 
                Essa parte lógico-formal capta aspectos importantes da 
                estrutura da ciência. Mas a comparação que 
                eu gosto de fazer é a seguinte: é a mesma coisa 
                que tirar uma chapa de raios X de uma pessoa. Não capta 
                tudo, mas dá uma idéia perfeita da estrutura óssea, 
                que está por trás da pessoa. Por isso, sempre afirmo 
                que é preciso que faça uma análise histórica 
                da situação socioeconômica da ciência. 
                Mas, sem essa análise lógico-formal, nunca se poderá 
                ter uma idéia sensata de ciência.
                Dou somente um exemplo: pouca gente percebe que as duas grandes 
                teorias físicas do nosso século, a mecânica 
                quântica e a relatividade geral, são logicamente 
                incompatíveis. Então, de duas, uma: ou essas teorias 
                vão sendo superadas por alguma teoria mais nova, ou vamos 
                ter sempre de trabalhar com teorias inconsistentes. E em geral 
                as pessoas não percebem isso.
                
                Folha  Mas qual caminho deve ser adotado diante dessa 
                incompatibilidade? Conviver com essa dualidade ou procurar uma 
                unificação?
                
                Da Costa É uma coisa mais ou menos 
                delicada. Em geral, os físicos da atualidade, pelo que 
                sei, buscam superar essas dificuldades por meio de uma teoria, 
                a chamada grande teoria unificada. Agora, o problema é 
                o seguinte: será que isso é possível? Eu 
                não vejo a priori nenhuma razão para que seja dessa 
                forma. É possível um caminho alternativo, que é 
                mantermos as teorias, mesmo sendo contraditórias entre 
                si, porém mudando a lógica: recorrendo-se à 
                lógica paraconsistente. No momento, não sei qual 
                desses dois caminhos é o mais adequado.
                
                Folha  Mas ainda não ficou clara sua posição 
                sobre em que medida essa análise lógico-matemática 
                das teorias científicas pode ser realizada independentemente 
                das condições socioculturais e sua descoberta?
                
                Da Costa  Acho que uma separação 
                desse tipo é, num certo limite, uma separação 
                algo artificial, da mesma maneira como tentar separar as várias 
                partes da física em acústica, eletrodinâmica 
                e outras. Mas, na verdade, é aquela coisa de César, 
                é dividir para vencer. Mas, para se ter uma visão 
                completa da ciência, eu sempre insisto com a contraparte 
                sociocultural. Mas especialmente importante para mim é 
                que a ciência se faz também com história e, 
                sem a história, não se faz a evolução 
                do pensamento científico.
                
                Folha  Retomando a questão dos limites da axiomatização 
                e da formalização, o sr. muitas vezes falou do seu 
                interesse em ter uma formalização da dialética. 
                O sr. continua achando isso possível?
                
                Da Costa  Eu não sou especialista em 
                dialética. Algumas pessoas com as quais eu trabalhei em 
                dialética, como os professores Diego Marconi e Robert Wolf, 
                o primeiro italiano e o segundo americano, acham que é 
                possível se fazer a formalização do processo 
                dialético. Quando se fala em dialética, cada autor 
                tem uma interpretação diferente. E com a minha pequena 
                experiência a respeito disso, penso que sob certos aspectos 
                deve observado que uma axiomatização da dialética 
                é algo meio difícil de se conceber.
                
                Folha  Mas poderia dizer que o sr. teve uma mudança 
                de posição sobre esse tema nas duas últimas 
                décadas? Parece-me que há cerca de 20 anos o sr. 
                era um pouco mais taxativo e achava que isso seria possível. 
                Estou enganado?
                
                Da Costa  Acho que eu nunca sustentei que 
                a dialética não tivesse uma infinidade de interpretações. 
                É só pegar, ler alguns autores. Agora, na verdade, 
                o que você está dizendo tem um pouco de razão. 
                Acho que com a idade vamos nos tornando mais sábios. Espero 
                que não seja um retrocesso, mas um progresso (risos).
                
                Folha  O sr. já teve a curiosidade de estudar 
                Hegel para tentar compreender a dialética?
                
                Da Costa  Com relação a Hegel, 
                posso relatar uma história que talvez não tenha 
                ocorrido bem como eu vou dizer, mas foi mais ou menos assim. Quando 
                era jovem e fui à Alemanha, já havia desenvolvido 
                sistemas paraconsistentes. E pensei que eles poderiam ser aplicados 
                a um sistema como o de Hegel.
                Na Alemanha, em Munique, havia duas pessoas que entendiam muito 
                de Hegel. Eu fui consultar um deles, que, aliás, tinha 
                uma tese sobre o filósofo. Falei da lógica paraconsistente, 
                disse que gostaria de aplicá-la à dialética 
                de Hegel. Ele disse: "Ah! Que beleza! É disso mesmo 
                que nós precisávamos".
                Bem, poucos dias depois, eu conversei com outro professor, da 
                mesma universidade, também especialista em Hegel. E ele 
                disse: "Mas você está muito enganado. A contradição 
                de Hegel não é contradição lógica. 
                A lógica da dialética de Hegel é clássica". 
                Desse momento em diante eu resolvi suspender o juízo. Não 
                é possível que, na mesma cidade, na mesma universidade, 
                dois especialistas em Hegel tenham idéias completamente 
                diferentes a respeito dele.
                
                Folha  No seu livro "O Conhecimento Científico" 
                o sr. também ressalta a importância da dimensão 
                pragmática da ciência. De que modo o pragmatismo 
                clássico e o contemporâneo influíram na sua 
                concepção de ciência?
                
                Da Costa  Sempre admirei William James e conheço 
                um pouco de Charles Sanders Peirce e John Dewey. Talvez indiretamente 
                eles me levaram a aceitar que na ciência há um nível 
                pragmático extremamente importante. Todavia, quem mais 
                me influenciou nesse aspecto, foi o notável lógico 
                e filósofo italiano Federico Enriques.
                
                Folha  No livro, o sr. desenvolve o conceito 
                de quase-verdade na ciência. O que significa?
                
                Da Costa  Para fixar a idéia, consideremos 
                o caso da mecânica clássica newtoniana, isto é 
                a ciência do movimento de Isaac Newton. Como a relatividade 
                de Einstein mostrou, ela não se aplica, por exemplo, ao 
                caso de corpos muito pesados ou de velocidades muito altas, próximas 
                da velocidade da luz. No entanto, guardados certos limites, e 
                em determinados domínios, como na engenharia usual, tudo 
                se passa como se a mecânica newtoniana fosse estritamente 
                verdadeira. Ela salva as aparências. Ou seja, ela é 
                quase-verdadeira em um certo sentido técnico. Essa é 
                a essência da noção de quase-verdade.
                
                Folha  Como o sr. diz, se a meta da ciência é 
                encontrar a verdade ou a quase-verdade, por que o estudo filosófico 
                da racionalidade científica deveria envolver uma noção 
                robusta ou rígida de verdade ou de quase-verdade? Por que 
                não uma teoria "menos robusta", que eliminasse 
                o conceito de verdade?
                
                Da Costa  A teoria da ciência deve repetir 
                em grande parte o que o cientista faz. De fato, os grandes cientistas, 
                como Erwin Schrõdinger, Albert Einstein e Werner Heisenberg, 
                sempre defenderam a tese de que, subjacente à ciência, 
                há um conceito robusto de verdade, isto é, que faz 
                indagações relativas à ciência. Para 
                eles, o conceito de verdade não pode ser eliminado ou restringido 
                sem descaracterizar a ciência empírica. E, de meu 
                ponto de vista, é esse conceito robusto de verdade que 
                se deve tratar na teoria da ciência empírica.
                Por outro lado, completando o que acabei de dizer, acho que a 
                tecnologia, por seu lado, com a bomba atômica, com a engenharia 
                genética, com uma porção de outras coisas, 
                mostra, na minha opinião, de uma maneira óbvia, 
                que a ciência envolve algum tipo forte de verdade, nem que 
                seja a verdade pragmática. A bomba atômica é 
                o exemplo crucial disso, a navegação aérea, 
                o radar, o sonar, o rádio, a televisão, toda a informática. 
                Tudo isso mostra que a ciência acaba encontrando algum tipo 
                de verdade.
                
                Folha  O sr. consegue acompanhar atualmente o desenvolvimento 
                da lógica paraconsistente?
                 
                Da Costa  Não, essa é uma coisa 
                interessante. É tão grande o número de publicações. 
                É tanta coisa que se faz atualmente, que eu não 
                consigo mais seguir. Nem que eu quisesse eu seria capaz de seguir 
                o que se faz. Na ex-União Soviética, por exemplo, 
                a quantidade de publicações é grande demais.
                
                Folha  Pela sua trajetória e formação, 
                o sr. é uma pessoa muito diferente do corpo do departamento 
                de filosofia da USP. Sua formação é muito 
                diferente da formação eminentemente francesa, inclusive 
                do departamento. Como é essa diferença? Como é 
                conviver com isso?
                
                Da Costa  Olha, eu vou exagerar um pouco, 
                dizendo o seguinte: cada vez que chego no departamento, tenho 
                vontade de fazer o que o Papa fez, me abaixar e beijar o chão 
                do departamento de filosofia da USP. Porque eu nunca na minha 
                vida fui tão bem recebido, tão bem tratado como 
                lá. Nunca tive qualquer tipo de divergência, como 
                acontecia em outros lugares.
                Eu estava lecionando nos Estados Unidos quando fui convidado a 
                ir para o departamento de filosofia. Eu diria o seguinte: uma 
                das melhores coisas que eu fiz na minha vida foi ter ido para 
                lá. Devia ter feito isso no começo da minha carreira, 
                que provavelmente teria sido completamente diferente.
                
                Folha  Como o sr. avalia o trabalho de alguns pensadores 
                da atualidade, como o norte-americano Richard Rorty?
                 
                Da Costa  Tenho lido esses pensadores atuais, 
                mas superficialmente. Rorty é um dos que eu gosto muito, 
                inclusive porque ele tem tendências muito semelhantes à 
                minha. Ele é pragmatista, não gosta muito de certos 
                tipos de especulação filosófica e vê 
                na crítica um dos componentes básicos da filosofia.
                
                Folha  E pensadores como Jacques Derrida, Michel Foucault, 
                Claude Lefort?
                 
                Da Costa  Para ser honesto, li muito pouco. 
                Li um livro sobre paradoxo da lógica, que se não 
                me engano é do Derrida. Portanto, não tenho opinião 
                formada sobre esses autores. Para uma pessoa como eu, que está 
                metida seriamente na física, nos fundamentos da física, 
                depois de uma certa idade, é um esforço extenuante. 
                Logo, torna-se praticamente impossível estudar com dedicação 
                filósofos como esses. O que eu posso fazer? A vida é 
                curta, agente não tem tempo para estudar tudo. Não 
                tenho tempo nem para ler jornais com detalhe. Os filósofos 
                que mais gosto de ler são Bertrand Russel, Rudolf Carnap, 
                Willard van Orman Quine e Federico Enriques.
                
                Folha - E o sr. acompanha os acontecimentos da política, 
                da economia?
                 
                Da Costa  Acompanho e gosto, estou muito interessado 
                em compreender esse problema de agora das bolsas de valores, porque 
                tenho vários amigos e discípulos que são 
                economistas. Eles se dedicam sobretudo ao estudo dos fundamentos 
                e da metodologia da economia. Agora, para ser honesto, raramente 
                leio jornais. Minha esposa resume as notícias. Lê-los 
                me tomaria muito tempo, e como minha páixão por 
                meus estudos é tão grande, prefiro sacrificar meu 
                conhecimento de todos os dias à minha paixão pela 
                física, pela matemática. 
                
                
              
               
                SAIBA MAIS
                
                Mecânica quântica  Sistema da mecânica 
                que foi desenvolvido a partir da teoria quântica, elaborada 
                por Max Planck (1858-1947), e que é usado para explicar 
                as propriedades de átomos e moléculas. De acordo 
                com a teoria quântica, a energia é emitida em "pacotes" 
                denominados ''quanta'' (''quantum'' no singular)
                
                Teoria da relatividade  Elaborada por Albert Einstein 
                (1879-1955), ela compreende a relatividade restrita ou especial 
                e a relatividade geral. Na primeira, Einstein mostrou entre outras 
                coisas, que a velocidade da luz é a mesma em quaisquer 
                sistemas de referência e que a energia de um corpo pode 
                ser expressa em função de sua massa. Na relatividade 
                geral, ele mostrou que a gravidade dos corpos deforma o espaço 
                ao seu redor
                
                George Cantor  (1845-1919) Matemático alemão 
                que desenvolveu estudos sobre teoria dos conjuntos
                
                Bertrand Russell  (1872-1970) Filósofo e matemático 
                inglês, autor de "Principia Mathematica" com Alfred 
                North Whithead
                
                Erwin Schrõndiger  (1887-1961) Físico 
                austríaco, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Física 
                de 1933
                
                Werner Heisenberg  (1901-1976) Físico alemão, 
                autor do princípio da incerteza ou da indeterminação