O
MAURÍCIO TUFFANI
Editor-assistente de Ciência
O filósofo e matemático brasileiro Newton Carneiro
Affonso da Costa, 68, um dos nomes mais importantes da lógica
contemporânea, acaba de lançar o livro "O Conhecimento
Científico".
Rompendo com uma tradição aristotélica de
mais de 2.000 anos, esse homem de aparência e modos convencionais,
casado, três filhos, nascido em Curitiba, no Paraná,
criou em 1963 uma lógica que admite contradições:
a lógica paraconsistente.
Quase desconhecido no Brasil, e famoso nos círculos acadêmicos
de vários países, ele já não consegue
acompanhar o desenvolvimento de sua lógica, devido à
repercussão que ela teve.
Em julho e agosto deste ano foi realizado na Universidade de Ghent,
na Bélgica, o Primeiro Congresso Internacional de Paraconsistência,
com a participação de importantes pesquisadores
de todo o mundo.
Autor de cerca de 200 trabalhos sobre lógica, teoria da
ciência e fundamentos da física, ele é o único
brasileiro membro do seleto Instituto Internacional de Filosofia
de Paris.
Alheio aos temas da filosofia especulativa, ele foi muitas vezes
indevidamente tachado como neopositivista por sua formação
com ênfase na ciência, em especial na matemática,
na física e na lógica.
Da Costa consegue também ficar alheio ao que quase todas
as pessoas acompanham. Sua paixão pelo estudo o impede
de perder tempo com a maior parte dos outros assuntos.
Ele já se mostrou incapaz de identificar, por exemplo,
músicas como algumas das mais famosas de Roberto Carlos
e atrizes como Sônia Braga. Música para ele, somente
a dos clássicos, como Beethoven, Chopin e outros.
Em 1978, com a Copa do Mundo acontecendo na Argentina, ele foi
ao campus da USP para dar uma aula no dia e horário de
um dos jogos da Seleção Brasileira, e ficou surpreso
ao ver os corredores da faculdade vazios.
Apesar de praticamente não ler jornais e revistas, ele
consegue estar sempre razoavelmente atualizado com relação
aos acontecimentos políticos e econômicos.
Após ler o jornal, sua mulher comenta resumidamente os
assuntos principais _na visão dele, é claro_ e,
conforme o caso, separa as matérias pelas quais ele pode
se interessar.
Em certo sentido, ele é uma contradição viva.
Formado em engenharia, segundo ele para entender a aplicação
da ciência, é capaz de se atrapalhar para trocar
um pneu.
A idéia de trabalhar com a contradição atraiu
para a lógica paraconsistente estudiosos de várias
áreas, inclusive psicanalistas, que reconhecem no trabalho
a formalização da idéia de contradição
que, segundo Freud, existiria no próprio plano do inconsciente.
Na área do direito, alguns estudiosos vêem a paraconsistência
como um sistema capaz de viabilizar processos dedutivos a partir
de premissas contraditórias correspondentes a interesses
em conflito. Na informática, especialistas já desenvolvem
sistemas para processar dados contraditórios.
As incursões de Newton da Costa nos fundamentos da física
têm culminado em artigos veiculados em algumas das mais
conceituadas publicações científicas. No
campo da teoria da ciência, ele retomou o caminho heterodoxo
com o conceito de "quase-verdade".
Em entrevista à Folha, que contou a participação
de Caetano Ernesto Plastino, professor de teoria do conhecimento
e filosofia da ciência da USP, Newton da Costa falou sobre
sua trajetória intelectual e, em particular, sobre seu
trabalho em lógica e teoria da ciência.
Folha O que levou o sr. a procurar o caminho da lógica?
Newton da Costa Desde jovem sempre me interessei
muito, pelas mais variadas razões, em saber exatamente
o que é o conhecimento científico. Entender, realmente,
a natureza do conhecimento científico e do conhecimento
em geral. Então, fui levado a estudar várias ciências,
em especial a matemática e a física. E na hora em
que você começa a querer realmente entrar nos fundamentos
da ciência, você automaticamente é levado a
estudar a lógica. Hoje, quem quer saber o que é
definição, o que é dedução,
o que é indução e que queira entender a ciência
desse ponto de vista científico é automaticamente
levado à lógica.
Folha O sr. começou seus estudos acadêmicos
na área de engenharia. Por quê?
Da Costa Eu me formei em engenharia porque
ela trata das aplicações dos conceitos da ciência.
Por exemplo, na resistência dos materiais, na estabilidade
das construções, temos aplicações
da mecânica clássica. Para termos uma idéia
sensata da noção de aplicação de uma
ciência pura à realidade, nada melhor do que estudar
engenharia. Uma segunda razão dessa escolha foi porque
eu achava que no estudo da engenharia havia bastante matemática,
o que, na verdade, não é muito correto. Mas depois
me formei em matemática. Sou também bacharel e licenciado
em matemática.
Folha De onde vem o seu interesse em trabalhar com lógicas
não-clássicas?
Da Costa As lógicas não-clássicas
foram, no meu caso, fruto de meu interesse em temas complexos
de ciência. Um exemplo típico desses temas é
o da mecânica quântica. Vários autores, desde
a década de 30, diziam que a lógica clássica
não podia ser aplicada aos fundamentos da mecânica
quântica. Isso me levou então a trabalhar com outros
tipos de lógica e com os fundamentos da matemática
e quem estuda matemática geralmente pouco
se interessa pelas polêmicas sobre os fundamentos da matemática
do começo do século! Além disso, como fui
fui levado a estudar a lógica tradicional, me interessei
pelos seus paradoxos. Se você se interessa por esses estudos,
cedo ou tarde se depara com certas dificuldades, que eram conhecidas
como paradoxos na lógica ou na matemática.
As lógicas não-clássicas, no meu caso a lógica
paraconsistente, nasceu do seguinte problema. Georg Cantor dizia
que a essência da matemática está na sua liberdade.
Pois bem, os paradoxos que surgiram no começo do século,
em geral, foram eliminados com a manutenção da lógica
tradicional e com a introdução de restrições
nos postulados da teoria dos conjuntos. Se a matemática
é absolutamente livre, como disse Cantor, vamos fazer um
pouquinho diferente. Sem introduzir restrições nos
postulados da teoria dos conjuntos, podemos mudar a lógica.
E, com isso, podemos reconstruir a matemática clássica
inteira.
Folha Que trabalho seu pode ser considerado como o início
da lógica paraconsistente?
Da Costa A minha tese de cátedra "Sistemas
Formais Inconsistentes", de 1963, na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade Federal do Paraná.
Folha O que vem a ser a lógica paraconsistente?
Da Costa Primeiramente deixe-me explicar
o que é a lógica. Ela pode ser entendida como o
estudo dos processos pelos quais certas sentenças ou proposições
podem ser deduzidas de outras.
Desde a época de Aristóteles, um dos princípios
da lógica é o de não-contradição.
Ele estabelece a impossibilidade de que uma sentença qualquer
e sua negação sejam ambas verdadeiras. Tome, por
exemplo, a sentença "eu moro em São Paulo".
Não é possível admitir, com base nesse princípio
que essa sentença e sua negação, "eu
não moro em São Paulo", sejam verdadeiras.
Desse modo, a lógica clássica não admite
contradições.
A grosso modo, na nossa experiência cotidiana, é
assim que as coisas são e é por isso que a lógica
clássica tem seu campo de aplicação. Mas
acontece que quando diferentes campos da ciência evoluem
e se tornam mais complexos, as contradições aparecem.
Na física, por exemplo, as partículas atômicas,
em determinadas circunstâncias, não se comportam
como partículas, mas como ondas. Isso significa, sob certos
aspectos, que elas são e não são partículas.
Essa dificuldade pode ser superada, como usualmente os físicos
fazem, tentando, de uma maneira ou outra eliminar a contradição
e manter a lógica clássica. Porém, se quisermos
tratar diretamente do problema, sem desvios teóricos, torna-se
necessária a utilização de uma lógica
diferente da clássica, que aceite contradições.
E a lógica paraconsistente foi idealizada para tratar de
problemas desse tipo.
Folha Além dos problemas da ciência, ela
tem outras aplicações?
Da Costa Ela pode ser aplicada, por exemplo,
na computação em sistemas especialistas. Um sistema
especialista de suporte a diagnósticos médicos baseado
na lógica paraconsistente pode processar dados contraditórios
sobre as condições de saúde de um paciente,
quando é impossível verificar qual deles é
o verdadeiro.
Folha Por que em certos contextos científicos
é conveniente o emprego de lógicas não-clássicas,
como a lógica paraconsistente?
Da Costa Dois são os motivos principais
para a utilização de lógicas diferentes da
clássica, por exemplo, no domínio da física,
que é a ciência com a qual me ocupo no momento. O
primeiro é o que vários autores já observaram:
que na mecânica quântica parece ser imprescindível
o uso de lógicas não-clássicas. O segundo
motivo é que as principais teorias físicas, como
a relatividade geral e a mecânica quântica, são
incompatíveis, contraditórias, e a única
maneira no momento de compatibilizá-las consiste no uso
de algum tipo de lógica paraconsistente.
Folha Podemos então dizer que as contradições
na ciência são racionalmente admissíveis sob
certas circunstâncias?
Da Costa Sob certas circunstâncias, como nos
exemplos da pergunta anterior. Mas, na minha opinião, a
situação não está totalmente resolvida.
Somente ao futuro está reservada a resposta final.
Folha Quando o sr. propôs a lógica paraconsistente,
como seu trabalho foi recebido de imediato na comunidade científica
brasileira e internacional?
Da Costa Quando olho para trás, fico
surpreso, porque não houve tanta reação como
poderia ter havido. Qualquer um poderia pensar: "Isso é
uma maluquice!". Mas eu tive sorte. Comecei a mandar trabalhos
para a Academia de Ciências da França, que começou
a publicar muitas notas e trabalhos grandes sobre lógica
paraconsistente. Isso deu um curto-circuito aqui, porque as pessoas
que achavam que isso era besteira diziam: "Mas é besteira
e a França está fazendo, está aceitando?".
Eu acho que as últimas resistências foram eliminadas
quando a lógica paraconsistente passou a ser empregada
na informática e começou a encontrar aplicações.
A Escola Politécnica da USP hoje tem uma disciplina de
lógica paraconsistente. E, por fim, as pessoas compreenderam
que, no meu caso, realmente, eu não quis destruir a lógica
clássica. Ao contrário, a lógica clássica
tem seu o domínio de aplicação e pode ser
entendida como um caso particular da lógica paraconsistente,
que tem um domínio de aplicação maior.
Folha Mas, voltando às resistências, o
sr. poderia citar exemplos?
Da Costa Nunca ninguém me enfrentou
diretamente numa discussão. Nunca deixei de ter as coisas
que eu queria por causa do caráter heterodoxo do meu trabalho.
Sempre tive sucesso nos concursos dos quais participei.
Folha O seu trabalho fez surgir uma escola no Brasil?
Da Costa Em um certo sentido, sim. Criamos
no Brasil um grupo importante de lógica paraconsistente.
Mas uma das coisas de que eu mais me orgulho é o conjunto
de pessoas que trabalharam comigo em áreas diversas da
lógica.
Eu nunca forcei ninguém a trabalhar em lógica paraconsistente.
Aliás, o que se passava era exatamente o contrário.
Para qualquer pessoa que se aproximava de mim, eu sempre dizia:
"Olha, comece trabalhando com a lógica clássica,
que é a mãe de todas, a matemática tradicional
é essencial''. E se alguém quisesse mesmo trabalhar
com lógica paraconsistente, então eu ajudava. Mas
jamais, em momento nenhum, induzi alguém a escolher a lógica
paraconsistente, ou algum tema em que eu trabalho.
Formei um grupo de umas 30 pessoas aqui no Brasil e que hoje têm
reputação internacional. E eu me orgulho mais dos
meus discípulos do que da minha obra propriamente dita.
Acho que o que me orgulha é ser um pescador de almas, de
talentos, não só aqui no Brasil como no exterior.
Folha O sr. concordaria com a afirmação
de Bertrand Russell de que a lógica é a essência
da filosofia da ciência?
Da Costa Tenho uma grande admiração
pelo Russell, mas eu não seria tão exagerado. Hoje
em dia, há várias lógicas alternativas, e
seria necessário, em cada caso, especificar a lógica
a ser usada. Isso torna a afirmação de Russell um
tanto relativizada e, assim encarada, eu a tenho como correta
em boa parte.
Por outro lado, acho que deve haver alguma coisa além.
Se bem que, no meu caso, cultivo uma parte da filosofia que praticamente
pode ser resumida numa análise lógica. Mas não
sou como Russell, nem como os neopositivistas, que dizem que o
resto é totalmente sem sentido.
Ao contrário, quisera eu ter o dom e a inquietação
para compreender essa outra contraparte também. Recentemente,
algumas vezes, tenho sido criticado porque dizem que minhas análises
filosóficas não são tão profundas
como deveriam ser. Isso se deve talvez a uma limitação
minha, pessoal ou intelectual. Mas, por outro lado, eu gosto da
contraparte da lógica formal.
Folha Uma das ferramentas de seu trabalho é a
axiomatização, que consiste na formulação
de princípios ou axiomas das teorias científicas.
Quais são os limites da axiomatização e da
formalização do estudo do pensamento científico,
segundo a sua concepção?
Da Costa Uma das coisas que eu mais faço
e mais gosto de fazer é exatamente os estudos lógico-formais
dos fundamentos das ciências, especialmente da física.
Essa parte lógico-formal capta aspectos importantes da
estrutura da ciência. Mas a comparação que
eu gosto de fazer é a seguinte: é a mesma coisa
que tirar uma chapa de raios X de uma pessoa. Não capta
tudo, mas dá uma idéia perfeita da estrutura óssea,
que está por trás da pessoa. Por isso, sempre afirmo
que é preciso que faça uma análise histórica
da situação socioeconômica da ciência.
Mas, sem essa análise lógico-formal, nunca se poderá
ter uma idéia sensata de ciência.
Dou somente um exemplo: pouca gente percebe que as duas grandes
teorias físicas do nosso século, a mecânica
quântica e a relatividade geral, são logicamente
incompatíveis. Então, de duas, uma: ou essas teorias
vão sendo superadas por alguma teoria mais nova, ou vamos
ter sempre de trabalhar com teorias inconsistentes. E em geral
as pessoas não percebem isso.
Folha Mas qual caminho deve ser adotado diante dessa
incompatibilidade? Conviver com essa dualidade ou procurar uma
unificação?
Da Costa É uma coisa mais ou menos
delicada. Em geral, os físicos da atualidade, pelo que
sei, buscam superar essas dificuldades por meio de uma teoria,
a chamada grande teoria unificada. Agora, o problema é
o seguinte: será que isso é possível? Eu
não vejo a priori nenhuma razão para que seja dessa
forma. É possível um caminho alternativo, que é
mantermos as teorias, mesmo sendo contraditórias entre
si, porém mudando a lógica: recorrendo-se à
lógica paraconsistente. No momento, não sei qual
desses dois caminhos é o mais adequado.
Folha Mas ainda não ficou clara sua posição
sobre em que medida essa análise lógico-matemática
das teorias científicas pode ser realizada independentemente
das condições socioculturais e sua descoberta?
Da Costa Acho que uma separação
desse tipo é, num certo limite, uma separação
algo artificial, da mesma maneira como tentar separar as várias
partes da física em acústica, eletrodinâmica
e outras. Mas, na verdade, é aquela coisa de César,
é dividir para vencer. Mas, para se ter uma visão
completa da ciência, eu sempre insisto com a contraparte
sociocultural. Mas especialmente importante para mim é
que a ciência se faz também com história e,
sem a história, não se faz a evolução
do pensamento científico.
Folha Retomando a questão dos limites da axiomatização
e da formalização, o sr. muitas vezes falou do seu
interesse em ter uma formalização da dialética.
O sr. continua achando isso possível?
Da Costa Eu não sou especialista em
dialética. Algumas pessoas com as quais eu trabalhei em
dialética, como os professores Diego Marconi e Robert Wolf,
o primeiro italiano e o segundo americano, acham que é
possível se fazer a formalização do processo
dialético. Quando se fala em dialética, cada autor
tem uma interpretação diferente. E com a minha pequena
experiência a respeito disso, penso que sob certos aspectos
deve observado que uma axiomatização da dialética
é algo meio difícil de se conceber.
Folha Mas poderia dizer que o sr. teve uma mudança
de posição sobre esse tema nas duas últimas
décadas? Parece-me que há cerca de 20 anos o sr.
era um pouco mais taxativo e achava que isso seria possível.
Estou enganado?
Da Costa Acho que eu nunca sustentei que
a dialética não tivesse uma infinidade de interpretações.
É só pegar, ler alguns autores. Agora, na verdade,
o que você está dizendo tem um pouco de razão.
Acho que com a idade vamos nos tornando mais sábios. Espero
que não seja um retrocesso, mas um progresso (risos).
Folha O sr. já teve a curiosidade de estudar
Hegel para tentar compreender a dialética?
Da Costa Com relação a Hegel,
posso relatar uma história que talvez não tenha
ocorrido bem como eu vou dizer, mas foi mais ou menos assim. Quando
era jovem e fui à Alemanha, já havia desenvolvido
sistemas paraconsistentes. E pensei que eles poderiam ser aplicados
a um sistema como o de Hegel.
Na Alemanha, em Munique, havia duas pessoas que entendiam muito
de Hegel. Eu fui consultar um deles, que, aliás, tinha
uma tese sobre o filósofo. Falei da lógica paraconsistente,
disse que gostaria de aplicá-la à dialética
de Hegel. Ele disse: "Ah! Que beleza! É disso mesmo
que nós precisávamos".
Bem, poucos dias depois, eu conversei com outro professor, da
mesma universidade, também especialista em Hegel. E ele
disse: "Mas você está muito enganado. A contradição
de Hegel não é contradição lógica.
A lógica da dialética de Hegel é clássica".
Desse momento em diante eu resolvi suspender o juízo. Não
é possível que, na mesma cidade, na mesma universidade,
dois especialistas em Hegel tenham idéias completamente
diferentes a respeito dele.
Folha No seu livro "O Conhecimento Científico"
o sr. também ressalta a importância da dimensão
pragmática da ciência. De que modo o pragmatismo
clássico e o contemporâneo influíram na sua
concepção de ciência?
Da Costa Sempre admirei William James e conheço
um pouco de Charles Sanders Peirce e John Dewey. Talvez indiretamente
eles me levaram a aceitar que na ciência há um nível
pragmático extremamente importante. Todavia, quem mais
me influenciou nesse aspecto, foi o notável lógico
e filósofo italiano Federico Enriques.
Folha No livro, o sr. desenvolve o conceito
de quase-verdade na ciência. O que significa?
Da Costa Para fixar a idéia, consideremos
o caso da mecânica clássica newtoniana, isto é
a ciência do movimento de Isaac Newton. Como a relatividade
de Einstein mostrou, ela não se aplica, por exemplo, ao
caso de corpos muito pesados ou de velocidades muito altas, próximas
da velocidade da luz. No entanto, guardados certos limites, e
em determinados domínios, como na engenharia usual, tudo
se passa como se a mecânica newtoniana fosse estritamente
verdadeira. Ela salva as aparências. Ou seja, ela é
quase-verdadeira em um certo sentido técnico. Essa é
a essência da noção de quase-verdade.
Folha Como o sr. diz, se a meta da ciência é
encontrar a verdade ou a quase-verdade, por que o estudo filosófico
da racionalidade científica deveria envolver uma noção
robusta ou rígida de verdade ou de quase-verdade? Por que
não uma teoria "menos robusta", que eliminasse
o conceito de verdade?
Da Costa A teoria da ciência deve repetir
em grande parte o que o cientista faz. De fato, os grandes cientistas,
como Erwin Schrõdinger, Albert Einstein e Werner Heisenberg,
sempre defenderam a tese de que, subjacente à ciência,
há um conceito robusto de verdade, isto é, que faz
indagações relativas à ciência. Para
eles, o conceito de verdade não pode ser eliminado ou restringido
sem descaracterizar a ciência empírica. E, de meu
ponto de vista, é esse conceito robusto de verdade que
se deve tratar na teoria da ciência empírica.
Por outro lado, completando o que acabei de dizer, acho que a
tecnologia, por seu lado, com a bomba atômica, com a engenharia
genética, com uma porção de outras coisas,
mostra, na minha opinião, de uma maneira óbvia,
que a ciência envolve algum tipo forte de verdade, nem que
seja a verdade pragmática. A bomba atômica é
o exemplo crucial disso, a navegação aérea,
o radar, o sonar, o rádio, a televisão, toda a informática.
Tudo isso mostra que a ciência acaba encontrando algum tipo
de verdade.
Folha O sr. consegue acompanhar atualmente o desenvolvimento
da lógica paraconsistente?
Da Costa Não, essa é uma coisa
interessante. É tão grande o número de publicações.
É tanta coisa que se faz atualmente, que eu não
consigo mais seguir. Nem que eu quisesse eu seria capaz de seguir
o que se faz. Na ex-União Soviética, por exemplo,
a quantidade de publicações é grande demais.
Folha Pela sua trajetória e formação,
o sr. é uma pessoa muito diferente do corpo do departamento
de filosofia da USP. Sua formação é muito
diferente da formação eminentemente francesa, inclusive
do departamento. Como é essa diferença? Como é
conviver com isso?
Da Costa Olha, eu vou exagerar um pouco,
dizendo o seguinte: cada vez que chego no departamento, tenho
vontade de fazer o que o Papa fez, me abaixar e beijar o chão
do departamento de filosofia da USP. Porque eu nunca na minha
vida fui tão bem recebido, tão bem tratado como
lá. Nunca tive qualquer tipo de divergência, como
acontecia em outros lugares.
Eu estava lecionando nos Estados Unidos quando fui convidado a
ir para o departamento de filosofia. Eu diria o seguinte: uma
das melhores coisas que eu fiz na minha vida foi ter ido para
lá. Devia ter feito isso no começo da minha carreira,
que provavelmente teria sido completamente diferente.
Folha Como o sr. avalia o trabalho de alguns pensadores
da atualidade, como o norte-americano Richard Rorty?
Da Costa Tenho lido esses pensadores atuais,
mas superficialmente. Rorty é um dos que eu gosto muito,
inclusive porque ele tem tendências muito semelhantes à
minha. Ele é pragmatista, não gosta muito de certos
tipos de especulação filosófica e vê
na crítica um dos componentes básicos da filosofia.
Folha E pensadores como Jacques Derrida, Michel Foucault,
Claude Lefort?
Da Costa Para ser honesto, li muito pouco.
Li um livro sobre paradoxo da lógica, que se não
me engano é do Derrida. Portanto, não tenho opinião
formada sobre esses autores. Para uma pessoa como eu, que está
metida seriamente na física, nos fundamentos da física,
depois de uma certa idade, é um esforço extenuante.
Logo, torna-se praticamente impossível estudar com dedicação
filósofos como esses. O que eu posso fazer? A vida é
curta, agente não tem tempo para estudar tudo. Não
tenho tempo nem para ler jornais com detalhe. Os filósofos
que mais gosto de ler são Bertrand Russel, Rudolf Carnap,
Willard van Orman Quine e Federico Enriques.
Folha - E o sr. acompanha os acontecimentos da política,
da economia?
Da Costa Acompanho e gosto, estou muito interessado
em compreender esse problema de agora das bolsas de valores, porque
tenho vários amigos e discípulos que são
economistas. Eles se dedicam sobretudo ao estudo dos fundamentos
e da metodologia da economia. Agora, para ser honesto, raramente
leio jornais. Minha esposa resume as notícias. Lê-los
me tomaria muito tempo, e como minha páixão por
meus estudos é tão grande, prefiro sacrificar meu
conhecimento de todos os dias à minha paixão pela
física, pela matemática.
SAIBA MAIS
Mecânica quântica Sistema da mecânica
que foi desenvolvido a partir da teoria quântica, elaborada
por Max Planck (1858-1947), e que é usado para explicar
as propriedades de átomos e moléculas. De acordo
com a teoria quântica, a energia é emitida em "pacotes"
denominados ''quanta'' (''quantum'' no singular)
Teoria da relatividade Elaborada por Albert Einstein
(1879-1955), ela compreende a relatividade restrita ou especial
e a relatividade geral. Na primeira, Einstein mostrou entre outras
coisas, que a velocidade da luz é a mesma em quaisquer
sistemas de referência e que a energia de um corpo pode
ser expressa em função de sua massa. Na relatividade
geral, ele mostrou que a gravidade dos corpos deforma o espaço
ao seu redor
George Cantor (1845-1919) Matemático alemão
que desenvolveu estudos sobre teoria dos conjuntos
Bertrand Russell (1872-1970) Filósofo e matemático
inglês, autor de "Principia Mathematica" com Alfred
North Whithead
Erwin Schrõndiger (1887-1961) Físico
austríaco, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Física
de 1933
Werner Heisenberg (1901-1976) Físico alemão,
autor do princípio da incerteza ou da indeterminação