Bernardo
Carvalho
Da Reportagem Local
As primeiras preocupações filosóficas de Matthew
Lipman, 70, diziam respeito à estética e à
metafísica. Formado pela Universidade de Columbia, defendeu
sua tese de doutorado, sobre arte, em 1950.
Pouco a pouco, as questões cognitivas passaram a ocupar a
maior parte do tempo do filósofo. A partir de 68, Lipman
desenvolveu um método de filosofia para crianças,
que hoje é aplicado da Islândia à Nigéria,
passando por Portugal, Espanha, Austrália, Egito, Taiwan,
Alemanha etc.
Em 1974, fundou o Institute for the Advancement of Philosophy for
Children (IAPC), na Montclair State University (Nova Jersey). O
instituto, que dá formação a educadores de
todo o mundo, é dirigido por Lipman e sua principal assistente,
Ann Margaret Sharp.
Os dois estarão no Brasil em julho para participar do 1º
Encontro Nacional de Educação para o Pensar, em Florianópolis.
A entrevista a seguir foi feita por telefone.
Folha
O sr. trabalhava inicialmente com estética...
Matthew Lipman Estava abordando a arte como
uma forma de inteligência e pensamento. A criação
artística é uma atividade altamente cognitiva.
Folha O sr. esteve associado ao crítico de arte
Meyer Shapiro. O sr. continua achando que a arte pode ajudar na
educação?
Lipman Shapiro foi meu professor em Columbia.
A natureza da arte mudou muito desde que eu era um estudante. Naquela
época, a arte era em geral abstrata. Estava interessado na
maneira como a arte abstrata parecia concentrada na metodologia
da arte e não no valor da representação, no
conteúdo. Aquilo me parecia muito semelhante ao que ocorria
em filosofia, com a filosofia da linguagem, que abandonava os conteúdos
para dar ênfase aos procedimentos e métodos. Sempre
estive interessado em analogias entre arte e filosofia.
Folha O sr. foi próximo do poeta francês
Francis Ponge. Há alguma influência da poesia no seu
método?
Lipman Acho que há muita, mas não
posso apontar exatamente onde. Sempre estive interessado na relação
entre estética, poesia e filosofia em geral. A poesia é
frequentemente um avanço mesmo em relação à
filosofia, quando se trata de desenvolver novos conceitos. Primeiro
rascunhamos os nomes em forma poética e só em seguida
a filosofia dá um novo polimento e os passa à ciência,
que os coloca sob verificação.
Folha Como o sr. explica que, com seu interesse pela tradição
filosófica francesa, tenha passado de repente para uma tradição
mais prática e lógica, da filosofia analítica?
Lipman Meu interesse inicial era pela filosofia
americana, por John Dewey. Quando fui para a França, me interessei
por fenomenologia e existencialismo, porque me pareceu um tipo de
filosofia mais intensa e vivencial. A tradição americana
me parecia na época insuficiente para o que eu procurava.
Quando comecei a me envolver com filosofia para crianças,
me dei conta de que era impossível realizar meu objetivo
sem a tradição da filosofia analítica. As crianças
são muito preocupadas com a linguagem, as palavras e os sentidos.
A experiência inglesa em análise linguística
é indispensável.
Folha Por que o sr. resolveu criar esse método?
Lipman É difícil traçar
as causas precisas. No início dos anos 50, li um artigo do
filósofo francês Bernard Groethuysen, que morreu em
46, sobre a semelhança entre o pensamento de crianças
e o dos grandes metafísicos. Isso me marcou muito. O trabalho
de Vigotsky também confirmou que as crianças eram
capazes de trabalhar com idéias muito mais que as pessoas
imaginavam.
Folha Qual é a prioridade do método? A principal
finalidade?
Lipman Ajudar as pessoas a pensar por conta
própria. Para isso, você precisa seguir um certo número
de etapas. Temos que fornecer às crianças modelos
do que elas são através de personagens que tentam
lidar com seus problemas de uma maneira racional. Dizemos às
crianças para serem racionais, mas elas não sabem
do que estamos falando. Precisamos mostrar. Uma maneira de mostrar
é com as histórias em que representamos como crianças
racionais se comportam, como falam umas com as outras, como discutem
as idéias, como respeitam umas às outras. Você
começa com a narrativa, as questões levantadas por
essas narrativas, as discussões etc. São várias
etapas do processo.
Folha O que o sr. acha do método Paulo Freire?
Lipman Nós nos conhecemos quando estive
no Brasil há alguns anos. Ele me falou das semelhanças
do que fazíamos. O interesse dele na formação
de comunidades de trabalho com o intuito de chegar à alfabetização
está muito próximo do nosso interesse em formar comunidades
de investigação para fazer as crianças chegarem
a uma solidariedade social que possa melhorar sua educação.
Folha O sr. acha que o seu método é mais
adequado para comunidades pobres e países do Terceiro Mundo?
Lipman Para os países do Terceiro Mundo
que procuram suas identidades esse é o tipo de educação
que parece fornecer algumas respostas. Em países mais antigos,
onde há resistência ao método, ele é
usado para as minorias de imigrantes estrangeiros.
Folha Quais são as maiores dificuldades de traduzir
e adaptar o método para outra língua?
Ann Margret Sharp Normalmente, as histórias
são adaptadas às outras culturas. Quanto aos procedimentos
de ensino, eles são em grande parte universais. Praticamos
o que chamamos de comunidade de investigação, onde
o grupo se reúne para falar e refletir sobre o texto. Mesmo
em países onde a educação é bastante
tradicional, como a Nigéria, onde há uma forte influência
da educação britânica, eles acharam que a comunidade
de investigação era perfeitamente adequada.
Lipman Isso porque há uma tradição
semelhante de sentar e discutir ou contar histórias que são
ambíguas e problemáticas e abertas à interpretação.
É a mesma coisa que fazemos. Perceberam que eram formas comparáveis.
Folha Por que o seu método ensina melhor a pensar?
Lipman A filosofia contém a lógica,
que ajuda a melhorar o raciocínio das pessoas, o juízo.
A filosofia também ajuda a melhorar a formação
de conceitos. Outros programas não têm essa ênfase.
Quando você se concentra nas questões de raciocínio,
juízo e formação de conceitos, está
lidando com três instrumentos muito poderosos que fazem parte
do nosso pensamento.
Sharp Os temas que tratamos são reconhecidos
pelas crianças como parte de sua experiência diária.
Não é algo estranho. São questões que
as crianças levantam entre amigos, mas infelizmente não
as levam muito longe, porque não sabem como.
Folha Como vocês respondem à crítica
de certos filósofos de que o método é uma vulgarização
da filosofia, que é impossível ensinar filosofia a
crianças?
Lipman Estão cometendo um erro. Não
estamos tentando fazer com que memorizem Aristóteles. Não
estamos querendo que aprendam filosofia, mas que façam filosofia.
Isso envolve deliberação, diálogo, raciocínio.
As crianças podem ler, discutir, raciocinar. Podem falar
das coisas sobre as quais falam os filósofos: sobre a verdade,
a justiça etc. Podem dizer que as crianças não
são capazes de fazer isso, mas o fato é que elas fazem.
Sharp Não apenas isso. Embora não
saibam que estejam sendo expostas às idéias de Aristóteles,
Platão etc., a tradição está lá
pela voz dos personagens da história. Não estão
apenas discutindo numa sessão de conversa, mas sendo colocados
em contato com uma série de idéias sobre as quais
pensaram os filósofos nos últimos 2.500 anos. E não
têm nenhum problema com esses conceitos trazidos para a linguagem
do dia-a-dia. Elas entendem.
Folha Não há o risco de que as crianças
estejam apenas repetindo o que ouvem em casa e na escola, de pais
e professores, em vez de pensar por conta própria? Não
há o risco de que, em vez de uma classe de filosofia, ela
vire uma classe de moral?
Lipman Isso pode ocorrer até certo ponto.
Você não vai alcançar originalidade a todo instante
numa sala de aula. Vai haver muita repetição da opinião
de outras pessoas, sobretudo do que as crianças ouvem em
casa. É normal. Mas o processo convida ao questionamento
e, no percurso, as crianças começam a examinar suas
opiniões e crenças. Ao longo do tempo, você
percebe que essas crianças fazem progressos. Mudam também
o comportamento. Passam a se respeitar mais entre si.
Sharp Você tem que fazer uma distinção
entre o início de uma investigação e o que
se passa dois meses depois. É lógico que quando você
pergunta a uma criança sua opinião sobre alguma coisa,
ela vai repetir o que ouve em casa, mas o confronto com essa comunidade
de investigação muda essas opiniões com os
meses. É lógico que o progresso e a profundidade dessa
mudança depende da qualidade do professor, se ele está
bem preparado e sabe como passar da opinião que vem de casa
para o que está por trás e sustenta essa opinião.
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