João
Batista Magalhães
De Paris
O
marxismo está morto mas Marx passa bem, obrigado. Esta
é a opinião expressa pelo filósofo francês
Claude Lefort, 64, em entrevista exclusiva à Folha. Segundo
ele, o socialismo morreu enquanto mito de uma sociedade sem classes.
Mas a tradição de crítica às injustiças
do capitalismo continua viva.
Um dos principais (e primeiros) críticos do totalitarismo
comunista, Lefort não se rende agora ao apelo do Liberalismo.
O mercado, diz, não garante sozinho a justiça social.
Por isso, o Estado não deve desaparecer frente à
iniciativa privada.
Para ele, um desafio se coloca para o próximo milênio:
a definição dos novos papéis do Estado e
da iniciativa privada no sistema econômico. Essa busca,
afirma, será feita necessariamente sob o signo da liberdade.
Deverá, também necessariamente, passar pela resolução
das desigualdades sociais.
Socialismo e revolução são palavras vazias,
sem significado. Lefort enterra o marxismo mas deixa a História
livre para aplicar suas surpresas. Novas formas de opressão
podem reaparecer. Novas ameaças à democracia podem
surgir. Algumas já existem: a extrema direita européia,
o fundamentalismo e os nacionalismos exacerbados.
Lefort acaba de lançar na França seu último
livro ("Écrire - À 1'Épreuve du Politique").
Ele chega dia 24 ao Brasil para participar do seminário
"Tempo e História", que está sendo realizada
no Masp - Museu de Arte de São Paulo. Leia a seguir sua
entrevista à Folha.
Folha - Qual o papel da obra de Marx nas formação
de seu pensamento? O sr. foi um dos primeiros intelectuais a denunciar,
já na década de 50, os horrores do totalitarismo
nas sociedades comunistas.
Claude Lefort - Marx foi um pensador que me cativou na
juventude. Comecei a lê-lo em 1942, durante a ocupação
nazista da França. Li com paixão sua obra, que me
convenceu da perversidade do sistema capitalista e da necessidade
de militar a favor de um novo tipo de sociedade, livre da exploração
do homem pelo homem. Mas quase ao mesmo tempo me foi revelado
o contraste entre a realidade do comunismo como ele estava estabelecido
na URSS e o painel que fazia Marx da emancipação
do proletariado. Já em 1944 travei conhecimento com a sociedade
comunista rígida e hierarquizada sob a aparência
da igualdade, onde reinava a burocracia e onde a condição
operária era em certo sentido pior do que nas sociedades
capitalistas porque os trabalhadores não tinham nenhum
direito de se defender. Assim, no primeiro período de minha
obra fiz a crítica do "socialismo real" a partir
do ponto de vista de Marx, mostrando que o que existia era uma
espécie de capitalismo de Estado. Uma nova classe surgiu
no lugar da burguesia. Essa classe se formou através da
apropriação coletiva dos meios de produção.
Folha - O sr. rejeitou então as idéias de Marx?
Lefort - Concebi minha análise a partir do contato
com o trabalho de Cornelius Castoriadis. Eu o conheci em 1945,
fomos trotskistas juntos durante um curto período e em
seguida criamos o grupo "Socialismo e Barbárie".
A partir daí me desliguei do marxismo. Mas ao abandonar
o mito de uma sociedade sem classes não considerei que
Marx era um autor sem interesse ou, ainda pior, um autor a serviço
de um novo sistema de dominação. Continuo a pensar
que Marx é um dos grandes pensadores do século 19
e um dos mais importantes críticos da sociedade capitalista.
Folha - O sr. acha que o marxismo está vivo mesmo após
a queda do muro de Berlim e o fim do comunismo?
Lefort - Atenção: falo de Marx e não
do marxismo. O marxismo é um movimento que se desenvolveu
através de variantes múltiplas - leninismo, trotskismo,
stalinismo, maoísmo - que desembocaram em sistemas totalitários.
Marx declarou não querer ser marxista. Ele não podia
imaginar quais seriam as consequências de sua obra na realidade.
Não podemos colar a obra de Marx ao marxismo, o que não
quer dizer que eu defenda integralmente essa obra.
Folha - O socialismo, entendido como a busca de uma sociedade
igualitária, morreu após os acontecimentos dos últimos
anos?
Lefort - O projeto socialista não tem mais sentido.
Ele não tem mais significado e não sabemos mais
o que colocar sob esse conceito. Não podemos refutar a
tradição socialista. É uma tradição
de crítica do capitalismo, de luta pelo desenvolvimento
dos direitos dos trabalhadores. Nesse sentido continuamos herdeiros
do socialismo. Mas é verdade que do século 19 até
uma data bem recente o socialismo implicava uma idéia da
criação de uma sociedade nova, totalmente outra,
em que a desigualdade seria abolida. Essa idéia virou um
mito, não existe mais. As oposições políticas
devem ser refeitas. A esquerda e a direita, que ainda sobrevivem,
devem se reformular e não me surpreenderei se o próprio
Partido Socialismo francês tiver que trocar de nome. O termo
socialista tornou-se sem sentido para grande parte de população.
Folha - O que o sr. pensa da idéia da revolução?
Lefort - A questão não é simples.
Depende do que chamamos de revolução. A idéia
forjada nas grandes revoluções modernas, na Inglaterra,
França e EUA, era acompanhada pela noção
de construção a partir do zero de uma sociedade
política nova. A idéia de uma ruptura possível
da história para a criação de uma sociedade
radicalmente outra não tem mais nenhum significado. Isso
não quer dizer que em alguns países, onde as desigualdades
são muito grandes, não possam ocorrer rebeliões
violentas e mudanças drásticas de regime. Mas não
acredito que possam ocorrer revoluções como a russa,
a chinesa, ou mesmo no que se chama de forma equivocada de "países
do sul". Isso também não quer dizer que imagino
um mundo a partir de agora pacificado.
Folha - Em seu ultimo livro o sr. descreve o pós-comunismo
como o começo da História. O sr. não acredita
na possibilidade do ressurgimento do totalitarismo nos ex-países
comunistas?
Lefort - Não creio que possa se produzir um restabelecimento
dos regimes totalitários. O totalitarismo é uma
coisa muito particular. Não se trata apenas de uma sociedade
totalmente controlada pelo Partido-Estado. É uma sociedade
que no início se beneficiava de uma crença massiva
em seus princípios. Não podemos compreender seu
desenvolvimento sem entender a força de sua ideologia.
E essa ideologia desmantelou-se antes mesmo da queda dos poderes
comunistas. É nesse sentido que não creio num ressurgimento
do totalitarismo. Podem ocorrer outras transformações
possíveis, podem surgir novas formas de opressão.
Ainda poderemos ter muitas decepções. Algumas delas
já podem ser percebidas: aqui o fundamentalismo, ali um
nacionalismo exacerbado combinado com reacionarismo etc.
Folha - O sr. pensa que a democracia liberal representa o fim
da História?
Lefort - Acho necessário ter muita prudência
para falar do fim da História. Veja o caso de Hegel, que
imaginava que o reino do Estado e do Indivíduo viriam se
afirmar conjuntamente sob uma forma mais ou menos definitiva.
Ocorre que desde a introdução desse conceito hegeliano
ocorreram muitas coisas inesperadas: a aventura do nazismo, do
facismo, as aventuras do comunismo. Se quisermos tratar isso como
detalhes, que não pertenceriam à História,
não sei mais o que dizer. Hoje, pode-se dizer que a democracia
não tem mais opositores, mas não podemos prever
o surgimento de novas formas de opressão. Também
não podemos prever os perigos que a democracia cria a partir
de suas próprias contradições.
Folha - A sociedade de mercado é a melhor expressão
econômica da democracia política?
Lefort - (Fazendo uma careta) De um lado podemos dizer
que esta provada a impossibilidade de se encontrar um outro modo
de organização econômica além do mercado.
De outro, podemos observar que o mercado exige uma série
de medidas para garantir seu funcionamento. Em todos os países
surge a necessidade de intervenção do Estado para
dirigir o funcionamento do mercado. O problema é saber
até que ponto deve-se combinar medidas que são a
favor do interesse público e da redução das
desigualdades com as regras do mercado. Ninguém conseguiu
dar até hoje uma resposta satisfatória a essa questão.
Num ponto extremo havia a resposta socialista, que atualmente
me parece totalmente inviável. No outro extremo há
o modelo liberal, que na verdade encobre realidades menos brilhantes,
muito mais opacas. Quanto mais deixarmos atuar cegamente os interesses
econômicos, mais colocaremos em perigo a democracia. É
um risco deixar o Estado se apagar diante dos interesses econômicos
privados.
Folha - O sr. acha que o crescimento da extrema-direita na
Europa representa uma ameaça à democracia? Partidos
ultraconservadores têm obtido importantes resultados eleitorais
na França, Alemanha e Bélgica.
Lefort - Sem dúvida, é uma ameaça
real. Não confundo a situação atual com as
dos anos 20, mas é surpreendente que em diversos países
da Europa, principalmente na França, possam se desenvolver
movimentos como o de Le Pen, que é um movimento fascista.
Como os fascistas, o lepenismo consegue se apresentar como estranho
e diferente ao quadro dos partidos tradicionais. Essa diferença
é um símbolo do nosso tipo de sociedade e do tipo
de sociedade que eles podem criar se chegarem ao poder. Por outro
lado, o que demostra claramente seu caráter fascista é
sua capacidade de se apropriar de todos os temas, o que lhe permite
recrutar seus simpatizantes em todas as camadas da sociedade.
Folha - Quais são os meios legítimos de defesa
da democracia? O sr. apoiou o golpe militar que anulou as eleições
na Argélia em que os fundamentalistas da Frente Islâmica
de Salvação (FIS) eram os favoritos para obter a
maioria parlamentar.
Lefort - No atual estado das coisas na França, não
creio que exista qualquer possibilidade de interditar a Frente
Nacional de Le Pen ou mesmo limitar seu direito a promover reuniões
públicas. Trata-se de combater sua ideologia e de resolver
as dificuldades das quais Le Pen se aproveita. No caso da Argélia,
era inevitável suspender o processo eleitoral porque se
tratava de impedir a ascensão do movimento integrista,
claramente antidemocrático. Uma vez no poder, esse movimento
teria, sem dúvida nenhuma, impedido a livre expressão
das minorias e estabelecido um regime de terror. É preciso
ser politicamente estúpido para não compreender
que nesse caso era necessário recorrer a meios ilegais
para defender a lei. Não devemos esquecer que não
havia democracia na Argélia, e se tratava de encontrar
as condições para seu estabelecimento. O país
era governado há muitos anos pela Frente de Libertação
Nacional (FLN), que não tinha nada de democrático.
Folha - Qual será a lição política
mais importante que o século 20 deixará para o próximo
milênio?
Lefort - Uma palavra me ocorre: liberdade. O problema será
de saber o que entenderemos por liberdade. Os defensores do comunismo
afirmavam que buscavam a liberdade, que seria meramente formal
na sociedade burguesa. A palavra liberdade é a mais importante
do século porque nele vivemos as piores experiências
da servidão. Além disso, compreendemos que a liberdade
política e individual não pode existir sem justiça
social.