LEFORT DIZ QUE MERCADO NÃO GARANTE SOZINHO JUSTIÇA SOCIAL

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 19 de abril de 1992

João Batista Magalhães
De Paris

O marxismo está morto mas Marx passa bem, obrigado. Esta é a opinião expressa pelo filósofo francês Claude Lefort, 64, em entrevista exclusiva à Folha. Segundo ele, o socialismo morreu enquanto mito de uma sociedade sem classes. Mas a tradição de crítica às injustiças do capitalismo continua viva.
Um dos principais (e primeiros) críticos do totalitarismo comunista, Lefort não se rende agora ao apelo do Liberalismo. O mercado, diz, não garante sozinho a justiça social. Por isso, o Estado não deve desaparecer frente à iniciativa privada.
Para ele, um desafio se coloca para o próximo milênio: a definição dos novos papéis do Estado e da iniciativa privada no sistema econômico. Essa busca, afirma, será feita necessariamente sob o signo da liberdade. Deverá, também necessariamente, passar pela resolução das desigualdades sociais.
Socialismo e revolução são palavras vazias, sem significado. Lefort enterra o marxismo mas deixa a História livre para aplicar suas surpresas. Novas formas de opressão podem reaparecer. Novas ameaças à democracia podem surgir. Algumas já existem: a extrema direita européia, o fundamentalismo e os nacionalismos exacerbados.
Lefort acaba de lançar na França seu último livro ("Écrire - À 1'Épreuve du Politique"). Ele chega dia 24 ao Brasil para participar do seminário "Tempo e História", que está sendo realizada no Masp - Museu de Arte de São Paulo. Leia a seguir sua entrevista à Folha.

Folha - Qual o papel da obra de Marx nas formação de seu pensamento? O sr. foi um dos primeiros intelectuais a denunciar, já na década de 50, os horrores do totalitarismo nas sociedades comunistas.
Claude Lefort - Marx foi um pensador que me cativou na juventude. Comecei a lê-lo em 1942, durante a ocupação nazista da França. Li com paixão sua obra, que me convenceu da perversidade do sistema capitalista e da necessidade de militar a favor de um novo tipo de sociedade, livre da exploração do homem pelo homem. Mas quase ao mesmo tempo me foi revelado o contraste entre a realidade do comunismo como ele estava estabelecido na URSS e o painel que fazia Marx da emancipação do proletariado. Já em 1944 travei conhecimento com a sociedade comunista rígida e hierarquizada sob a aparência da igualdade, onde reinava a burocracia e onde a condição operária era em certo sentido pior do que nas sociedades capitalistas porque os trabalhadores não tinham nenhum direito de se defender. Assim, no primeiro período de minha obra fiz a crítica do "socialismo real" a partir do ponto de vista de Marx, mostrando que o que existia era uma espécie de capitalismo de Estado. Uma nova classe surgiu no lugar da burguesia. Essa classe se formou através da apropriação coletiva dos meios de produção.
Folha - O sr. rejeitou então as idéias de Marx?
Lefort - Concebi minha análise a partir do contato com o trabalho de Cornelius Castoriadis. Eu o conheci em 1945, fomos trotskistas juntos durante um curto período e em seguida criamos o grupo "Socialismo e Barbárie". A partir daí me desliguei do marxismo. Mas ao abandonar o mito de uma sociedade sem classes não considerei que Marx era um autor sem interesse ou, ainda pior, um autor a serviço de um novo sistema de dominação. Continuo a pensar que Marx é um dos grandes pensadores do século 19 e um dos mais importantes críticos da sociedade capitalista.
Folha - O sr. acha que o marxismo está vivo mesmo após a queda do muro de Berlim e o fim do comunismo?
Lefort - Atenção: falo de Marx e não do marxismo. O marxismo é um movimento que se desenvolveu através de variantes múltiplas - leninismo, trotskismo, stalinismo, maoísmo - que desembocaram em sistemas totalitários. Marx declarou não querer ser marxista. Ele não podia imaginar quais seriam as consequências de sua obra na realidade. Não podemos colar a obra de Marx ao marxismo, o que não quer dizer que eu defenda integralmente essa obra.
Folha - O socialismo, entendido como a busca de uma sociedade igualitária, morreu após os acontecimentos dos últimos anos?
Lefort - O projeto socialista não tem mais sentido. Ele não tem mais significado e não sabemos mais o que colocar sob esse conceito. Não podemos refutar a tradição socialista. É uma tradição de crítica do capitalismo, de luta pelo desenvolvimento dos direitos dos trabalhadores. Nesse sentido continuamos herdeiros do socialismo. Mas é verdade que do século 19 até uma data bem recente o socialismo implicava uma idéia da criação de uma sociedade nova, totalmente outra, em que a desigualdade seria abolida. Essa idéia virou um mito, não existe mais. As oposições políticas devem ser refeitas. A esquerda e a direita, que ainda sobrevivem, devem se reformular e não me surpreenderei se o próprio Partido Socialismo francês tiver que trocar de nome. O termo socialista tornou-se sem sentido para grande parte de população.
Folha - O que o sr. pensa da idéia da revolução?
Lefort - A questão não é simples. Depende do que chamamos de revolução. A idéia forjada nas grandes revoluções modernas, na Inglaterra, França e EUA, era acompanhada pela noção de construção a partir do zero de uma sociedade política nova. A idéia de uma ruptura possível da história para a criação de uma sociedade radicalmente outra não tem mais nenhum significado. Isso não quer dizer que em alguns países, onde as desigualdades são muito grandes, não possam ocorrer rebeliões violentas e mudanças drásticas de regime. Mas não acredito que possam ocorrer revoluções como a russa, a chinesa, ou mesmo no que se chama de forma equivocada de "países do sul". Isso também não quer dizer que imagino um mundo a partir de agora pacificado.
Folha - Em seu ultimo livro o sr. descreve o pós-comunismo como o começo da História. O sr. não acredita na possibilidade do ressurgimento do totalitarismo nos ex-países comunistas?
Lefort - Não creio que possa se produzir um restabelecimento dos regimes totalitários. O totalitarismo é uma coisa muito particular. Não se trata apenas de uma sociedade totalmente controlada pelo Partido-Estado. É uma sociedade que no início se beneficiava de uma crença massiva em seus princípios. Não podemos compreender seu desenvolvimento sem entender a força de sua ideologia. E essa ideologia desmantelou-se antes mesmo da queda dos poderes comunistas. É nesse sentido que não creio num ressurgimento do totalitarismo. Podem ocorrer outras transformações possíveis, podem surgir novas formas de opressão. Ainda poderemos ter muitas decepções. Algumas delas já podem ser percebidas: aqui o fundamentalismo, ali um nacionalismo exacerbado combinado com reacionarismo etc.
Folha - O sr. pensa que a democracia liberal representa o fim da História?
Lefort - Acho necessário ter muita prudência para falar do fim da História. Veja o caso de Hegel, que imaginava que o reino do Estado e do Indivíduo viriam se afirmar conjuntamente sob uma forma mais ou menos definitiva. Ocorre que desde a introdução desse conceito hegeliano ocorreram muitas coisas inesperadas: a aventura do nazismo, do facismo, as aventuras do comunismo. Se quisermos tratar isso como detalhes, que não pertenceriam à História, não sei mais o que dizer. Hoje, pode-se dizer que a democracia não tem mais opositores, mas não podemos prever o surgimento de novas formas de opressão. Também não podemos prever os perigos que a democracia cria a partir de suas próprias contradições.
Folha - A sociedade de mercado é a melhor expressão econômica da democracia política?
Lefort - (Fazendo uma careta) De um lado podemos dizer que esta provada a impossibilidade de se encontrar um outro modo de organização econômica além do mercado. De outro, podemos observar que o mercado exige uma série de medidas para garantir seu funcionamento. Em todos os países surge a necessidade de intervenção do Estado para dirigir o funcionamento do mercado. O problema é saber até que ponto deve-se combinar medidas que são a favor do interesse público e da redução das desigualdades com as regras do mercado. Ninguém conseguiu dar até hoje uma resposta satisfatória a essa questão. Num ponto extremo havia a resposta socialista, que atualmente me parece totalmente inviável. No outro extremo há o modelo liberal, que na verdade encobre realidades menos brilhantes, muito mais opacas. Quanto mais deixarmos atuar cegamente os interesses econômicos, mais colocaremos em perigo a democracia. É um risco deixar o Estado se apagar diante dos interesses econômicos privados.
Folha - O sr. acha que o crescimento da extrema-direita na Europa representa uma ameaça à democracia? Partidos ultraconservadores têm obtido importantes resultados eleitorais na França, Alemanha e Bélgica.
Lefort - Sem dúvida, é uma ameaça real. Não confundo a situação atual com as dos anos 20, mas é surpreendente que em diversos países da Europa, principalmente na França, possam se desenvolver movimentos como o de Le Pen, que é um movimento fascista. Como os fascistas, o lepenismo consegue se apresentar como estranho e diferente ao quadro dos partidos tradicionais. Essa diferença é um símbolo do nosso tipo de sociedade e do tipo de sociedade que eles podem criar se chegarem ao poder. Por outro lado, o que demostra claramente seu caráter fascista é sua capacidade de se apropriar de todos os temas, o que lhe permite recrutar seus simpatizantes em todas as camadas da sociedade.
Folha - Quais são os meios legítimos de defesa da democracia? O sr. apoiou o golpe militar que anulou as eleições na Argélia em que os fundamentalistas da Frente Islâmica de Salvação (FIS) eram os favoritos para obter a maioria parlamentar.
Lefort - No atual estado das coisas na França, não creio que exista qualquer possibilidade de interditar a Frente Nacional de Le Pen ou mesmo limitar seu direito a promover reuniões públicas. Trata-se de combater sua ideologia e de resolver as dificuldades das quais Le Pen se aproveita. No caso da Argélia, era inevitável suspender o processo eleitoral porque se tratava de impedir a ascensão do movimento integrista, claramente antidemocrático. Uma vez no poder, esse movimento teria, sem dúvida nenhuma, impedido a livre expressão das minorias e estabelecido um regime de terror. É preciso ser politicamente estúpido para não compreender que nesse caso era necessário recorrer a meios ilegais para defender a lei. Não devemos esquecer que não havia democracia na Argélia, e se tratava de encontrar as condições para seu estabelecimento. O país era governado há muitos anos pela Frente de Libertação Nacional (FLN), que não tinha nada de democrático.
Folha - Qual será a lição política mais importante que o século 20 deixará para o próximo milênio?
Lefort - Uma palavra me ocorre: liberdade. O problema será de saber o que entenderemos por liberdade. Os defensores do comunismo afirmavam que buscavam a liberdade, que seria meramente formal na sociedade burguesa. A palavra liberdade é a mais importante do século porque nele vivemos as piores experiências da servidão. Além disso, compreendemos que a liberdade política e individual não pode existir sem justiça social.


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