A luta de classes não é moderna; foi pensada
pelos antigos
VINICIUS TORRES FREIRE
De Paris
O filósofo Jacques Rancière, 55, hoje um dos principais
nomes do pensamento francês, iniciou sua vida intelectual
e política como marxista althusseriano e militante
de extrema-esquerda. O movimento de maio de 1968 na França
fez com que ele começasse a se distanciar de Marx e especialmente
de Louis Althusser, mas não o levou a abandonar o projeto
de pensar uma política radical.
Em seu livro mais recente, "La Mésentente'' (O Dissenso),
Rancière define a política como o surgimento de um
elemento que até então não fazia parte do conjunto
daqueles que confrontavam seus interesses dentro de uma ordem consensual.
São os "sujeitos do dissenso'', aqueles que tomam a
palavra quando e onde não deviam fazê-lo e apenas são
sujeitos políticos quando o fazem. De certa forma, ele mesmo
admite, continua a pensar o paradoxo suscitado pelo conceito de
classe em Marx. A classe operária é o ator do movimento
político da sociedade, mas os operários precisam se
tornar proletários, assumir seu papel histórico de
sujeitos da revolução, para se transformarem nesse
ator: os operários são a classe que precisa se tornar
uma classe.
Para repensar a questão, Rancière volta à filosofia
grega antiga. "Eles foram os primeiros a pensar essa oposição
simbólica que define a política, a dos sujeitos políticos
que precisam se assumir simbolicamente como tais, e não apenas
constataram a existência de grupos definidos economicamente'',
disse o filósofo à Folha, em sua casa em Paris.
Em sua palestra no ciclo "A Crise da Razão'', Rancière,
vai falar justamente do "Dissenso''. Apresentará os
conceitos básicos de sua filosofia política um
tipo de crítica da hegemonia da idéia de consenso,
tanto no mundo político quanto no pensamento atuais.
Rancière tem dois livros publicados no Brasil: "A Noite
dos Proletários'' (Companhia das Letras, 1988) e "Os
Nomes da História'' (Educ, 1994). Por ocasião de sua
ida ao Brasil, no final de outubro, a editora 34 Letras vai lançar
dentro da coleção Trans uma coletânea de seus
ensaios, "Políticas da Escritura''.
Folha Em seu livro "Les Philosophes et Ses Pauvres''
(Os Filósofos e Seus Pobres), o sr. faz uma espécie
de resumo do seu percurso intelectual. O sr. pode comentar esse
período?
Jacques Rancière Trabalhava na École
Normale Superieure, ligado ao "Seminário do Capital'',
que era dirigido por Louis Althusser. Esse trabalho era orientado
por certas idéias sobre a ideologia, a ideologia como uma
espécie de teoria da dissimulação necessária,
de que ela escondia a verdade dos agentes sociais. Devido ao que
aconteceu em maio de 1968, fui levado a colocar em questão
essa orientação.
Para começar a repensá-la, me dediquei a um estudo
sobre a história operária. Parti do descompasso, que
se manifestou na época de Maio de 1968, entre a concepção
que o marxismo tradicional e o pensamento de Althusser tinham da
classe operária e esta realidade com a qual nos deparamos
em 1968.
A partir disso, tentei começar a repensar o que tinha sido
a tradição revolucionária do pensamento operário
na França. Comecei a fazer um trabalho de historiador, nos
arquivos, e durante cerca de dez anos tentei pensar o que significava
"pensamento operário'' ou "não-operário''.
E me dei conta de que a definição de "proletário''
como uma espécie de personagem social definido economicamente
era um pensamento inconsistente.
Folha - Onde o sr. estava em maio de 1968?
Rancière Na época, tinha ido para o interior
trabalhar numa tese sobre o conceito de homem em Feuerbach. Vivi
os acontecimentos um pouco à distância, vendo o que
acontecia. Comecei a "pensar'' aquele momento não durante
os acontecimentos em si, mas quando da criação da
Universidade de Vincennes, na qual fui nomeado assistente de Michel
Foucault, que montou o departamento de filosofia, e que era uma
universidade que devia "responder'' ao movimento de 68, e,
ao mesmo tempo, era uma espécie de grande modernização
da universidade francesa, uma grande vitrine do que havia de mais
moderno e mais chique no pensamento francês da época.
Meu problema não era então Maio de 1968, quando se
criou Vincennes, mas o que faríamos lá, ensinar ou
não ensinar. Foi a partir daí que voltei à
questão da ideologia, a relação entre o saber
a efetividade social, e a política.
Folha O sr. foi um dos autores, com Althusser, de "Lire
le Capital''...
Rancière Sim. "Lire le Capital'' é
o resultado de um seminário na École Normale Superieure
entre 1964 e 1965...
Folha Bastante criticado no Brasil...
Rancière Sim, eu sei. Depois de 1968,
em 1969, escrevi uma crítica, uma autocrítica, de
"Lire le Capital'', do althusserianismo, que circulou primeiro
na América Latina e só foi sair na França alguns
anos depois. Foi publicado primeiro na Argentina. Depois, fiz uma
reprise de toda a época althusseriana, da relação
entre filosofia e política.
Folha Nessa época de "idas e vindas'' entre
a universidade e as fábricas, o sr. era militante de que
movimento?
Rancière Era da "Esquerda Proletária'',
maoísta, que no começo era uma dissidência do
grupo de estudantes comunistas, em particular uma dissidência
do grupo dos estudantes althusserianos, e que era muito ativa entre
os anos entre 1968 e 1973.
Folha Nos seus últimos trabalhos o sr. desenvolve
um conceito próprio do que é político. O sr.
diz que a política se constitui não na luta dos grupos
pelos seus interesses, mas na ocorrência de uma disputa pela
possibilidade de haver o conflito, quando entram em cena aqueles
que estavam mudos. Não sei se me engano, mas isto lembra
a célebre discussão entre os marxistas sobre o que
é classe, a discussão sobre os proletários
tornarem-se uma classe quando finalmente assumem seu papel na luta
de classes.
Rancière No meu trabalho efetivamente tentei
recolocar em discussão toda essa questão de classe
e luta de classe. Mas cada vez mais enfatizei o conteúdo
simbólico do conceito de classe, em oposição
a uma noção que se prende a definições
econômicas, histórico-econômico-sociais. Cada
vez mais penso o conceito de classe como um conceito estritamente
político. Quer dizer, a luta de classes não é
uma invenção moderna, não é uma característica
da modernidade. Ao contrário, ela foi pensada de maneira
forte, fundamentalmente pelo pensamento político antigo.
Os filósofos antigos constatam que há o partido dos
pobres e o dos ricos, mas isso não é apenas uma "constatação
sociológica'', não se trata de dizer: há os
que têm dinheiro e os que não tem etc. Os pobres são,
na verdade, os que não têm títulos, os que não
podem fazer a política, governar, ao contrário dos
que naturalmente já possuíam este título, em
função de seu nascimento, de sua nobreza, de sua sabedoria
etc. Há uma divisão simbólica do espaço
da comunidade, que não é definida sociologicamente,
por uma reunião de tais e tais categorias em um grupo. O
que quer dizer, a política é o governo dos iguais
sobre os iguais. O conceito de poder, do governo dos iguais sobre
os iguais que é uma espécie de paradoxo lógico,
político e social monstruoso. A luta de classes...
Folha Seria um paradoxo também...
Rancière Sim, é o paradoxo fundador
da política, que as pessoas que não tenham nenhum
título para governar governem, que as pessoas que não
devam fazer política a façam.
Folha Então quer dizer que a classe, para o marxismo,
a classe que precisa lutar para ser tida como tal, é o equivalente
do que o sr. chama de "sujeitos do dissenso'' em seu livro
"La Mésentente'' (O Dissenso), aqueles excluídos
que se inventam como sujeitos da política?
Rancière A classe em Marx é um conceito
dúbio. Há tanto um conceito sociológico como
um conceito político, principalmente quando ele se refere
ao proletariado como uma não-classe, uma dissolução
de todas as classes. Se há algo forte nessa definição,
é que uma classe, politicamente falando, é algo que
está além da simples classificação de
funções, profissões, grupo social. Uma classe
é uma divisão do espaço comunitário,
uma classe faz parte da ordem dos desclassificados...
Folha
O sr. diz que um "animal político" é
um "animal literário", evidentemente se referindo
à idéia dde que é preciso se inventar simbolicamente
para ser sujeito da política.
Rancière Um animal literário é
aquele que tem seu destino alterado pelo poder das palavras, que
altera a rota do animal social, gregário, comum. Quando há
um momento politicamente forte, de certa forma a "politicidade''
deste momento está relacionada à "literariedade'',
quer dizer, a essa descoberta dos sujeitos como "seres falantes''
("êtres parlants''), do poder das palavras, o poder de
tornar iguais os seres falantes. Toda a crise de consciência
política forte se constitui de tomadas de consciência
de seres falantes que interrompem toda a lógica da dominação,
quando as palavras não têm mais a função
exclusiva de designar os objetos ou de determinar ações.
O animal literário escapa da normalidade pela eficácia
de palavras como "igualdade'' ou "liberdade''.
Folha O modo como o sr. define o político, a politicidade,
a política é alguma coisa muito rara, é um
momento raro e radical, é a intervenção de
um sujeito novo. A política estaria morta hoje em dia?
Rancière Eu não diria que ela está
quase morta. A política é sempre uma ruptura com a
auto-regulação, com a dominação, o que
defino como "police''...
Folha A "logique policière'' (a administração
do status quo)...
Rancière Isso, os indivíduos e grupos colocados
cada um no seu lugar, cada um com seu estatuto social definido,
o governo enfim. Não é isso que chamo de política.
A política é justamente o que rompe com isso, o que
cria atores novos, objetos novos, em relação a esta
lógica. Quando, no começo do movimento operário,
discutem-se as condições de trabalho não como
uma questão pública e não como um assunto entre
pessoas, entre partes privadas, isso é um escândalo,
eles criam um objeto novo: isso é a política.
Folha Mas não há "novos sujeitos''
no horizonte para forçar essa "logique policière''...
Rancière Sim, cada vez mais há
uma saturação "policière'' da política,
é o que se chama de consenso, nas nossas sociedades. Todos
os grupos e problemas entraram nessa lógica, de realizar
pactos para fixar os limites do possível, com parceiros sociais
definidos e já identificados e integrados. Essa ausência
de política, essa regra consensual, é ao mesmo tempo
o outro lado de tudo isso que estamos vendo, do retorno do poder
carismático, das guerras étnicas, racismo, xenofobia:
é a modernidade, que é também consenso, o mercado
etc. A política é o arcaico, o conflito. Sim, a política
é rara, muito rara, mas não diria que ela está
morta, nem mesmo com a hegemonia da idéia de consenso. Não
sou um ator político muito ativo, mas me associo a este ou
àquele combate que me parece ligado a tais questões.
Folha Por exemplo?
Rancière A questão da Bósnia,
a questão da cidadania, da cidadania política e a
ordem "policière'' mundial.
Folha Quais podem ser os novos sujeitos do dissenso? De
onde eles podem aparecer?
Rancière Existem novos sujeitos a medida
que se inventam conflitos ou se reinventam antigos conflitos. Os
novos sujeitos podem aparecer no limite do consenso, entre os excluídos
do consenso, que são duplos um do outro, a exclusão
e o consenso. Mas a verdadeira política é uma coisa
que não se anuncia.
Folha O sr. vota?
Rancière Depende, às vezes isso acontece
(risos), não regularmente..
Folha Nas últimas eleições presidenciais
o sr. votou em quem?
Rancière Votei em Lionel Jospin (socialista,
que disputou e perdeu a eleição para Jacques Chirac),
mais pelo meu filho, mas eu não espero nada do Partido Socialista,
gostaria de frisar.
Folha O sr. critica a hegemonia atual da idéia
de consenso, os pensadores da harmonia liberal de interesses e a
razão comunicacional. O que o sr. pensa de Habermas?
Rancière Acho que pensar a política
a partir da razão comunicacional habermasiana... Toda a lógica
da razão comunicativa é a lógica do aprofundamento
das implicações de uma situação de interlocução,
na qual todos os parceiros já estão constituídos,
dados. A partir do momento em que os grupos começam a discutir,
eles vão confrontar suas normas de validade e, enfim, para
serem coerentes com sua lógica, eles têm que estar
de acordo com certas regras de discussão, sem o que se estaria
desqualificado. O que tento mostrar é que a lógica
da política não é essa, é a lógica
do dissenso, daquele que não faz parte da discussão,
de criar normas que não existem. Os sujeitos da política
se inventam inventando as normas da discussão.
|