OS RISCOS DA RAZÃO

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995

A luta de classes não é moderna; foi pensada pelos antigos

VINICIUS TORRES FREIRE
De Paris

O filósofo Jacques Rancière, 55, hoje um dos principais nomes do pensamento francês, iniciou sua vida intelectual —e política— como marxista althusseriano e militante de extrema-esquerda. O movimento de maio de 1968 na França fez com que ele começasse a se distanciar de Marx e especialmente de Louis Althusser, mas não o levou a abandonar o projeto de pensar uma política radical.
Em seu livro mais recente, "La Mésentente'' (O Dissenso), Rancière define a política como o surgimento de um elemento que até então não fazia parte do conjunto daqueles que confrontavam seus interesses dentro de uma ordem consensual.
São os "sujeitos do dissenso'', aqueles que tomam a palavra quando e onde não deviam fazê-lo e apenas são sujeitos políticos quando o fazem. De certa forma, ele mesmo admite, continua a pensar o paradoxo suscitado pelo conceito de classe em Marx. A classe operária é o ator do movimento político da sociedade, mas os operários precisam se tornar proletários, assumir seu papel histórico de sujeitos da revolução, para se transformarem nesse ator: os operários são a classe que precisa se tornar uma classe.
Para repensar a questão, Rancière volta à filosofia grega antiga. "Eles foram os primeiros a pensar essa oposição simbólica que define a política, a dos sujeitos políticos que precisam se assumir simbolicamente como tais, e não apenas constataram a existência de grupos definidos economicamente'', disse o filósofo à Folha, em sua casa em Paris.
Em sua palestra no ciclo "A Crise da Razão'', Rancière, vai falar justamente do "Dissenso''. Apresentará os conceitos básicos de sua filosofia política —um tipo de crítica da hegemonia da idéia de consenso, tanto no mundo político quanto no pensamento atuais.
Rancière tem dois livros publicados no Brasil: "A Noite dos Proletários'' (Companhia das Letras, 1988) e "Os Nomes da História'' (Educ, 1994). Por ocasião de sua ida ao Brasil, no final de outubro, a editora 34 Letras vai lançar dentro da coleção Trans uma coletânea de seus ensaios, "Políticas da Escritura''.

Folha — Em seu livro "Les Philosophes et Ses Pauvres'' (Os Filósofos e Seus Pobres), o sr. faz uma espécie de resumo do seu percurso intelectual. O sr. pode comentar esse período?
Jacques Rancière — Trabalhava na École Normale Superieure, ligado ao "Seminário do Capital'', que era dirigido por Louis Althusser. Esse trabalho era orientado por certas idéias sobre a ideologia, a ideologia como uma espécie de teoria da dissimulação necessária, de que ela escondia a verdade dos agentes sociais. Devido ao que aconteceu em maio de 1968, fui levado a colocar em questão essa orientação.
Para começar a repensá-la, me dediquei a um estudo sobre a história operária. Parti do descompasso, que se manifestou na época de Maio de 1968, entre a concepção que o marxismo tradicional e o pensamento de Althusser tinham da classe operária e esta realidade com a qual nos deparamos em 1968.
A partir disso, tentei começar a repensar o que tinha sido a tradição revolucionária do pensamento operário na França. Comecei a fazer um trabalho de historiador, nos arquivos, e durante cerca de dez anos tentei pensar o que significava "pensamento operário'' ou "não-operário''. E me dei conta de que a definição de "proletário'' como uma espécie de personagem social definido economicamente era um pensamento inconsistente.
Folha - Onde o sr. estava em maio de 1968?
Rancière
— Na época, tinha ido para o interior trabalhar numa tese sobre o conceito de homem em Feuerbach. Vivi os acontecimentos um pouco à distância, vendo o que acontecia. Comecei a "pensar'' aquele momento não durante os acontecimentos em si, mas quando da criação da Universidade de Vincennes, na qual fui nomeado assistente de Michel Foucault, que montou o departamento de filosofia, e que era uma universidade que devia "responder'' ao movimento de 68, e, ao mesmo tempo, era uma espécie de grande modernização da universidade francesa, uma grande vitrine do que havia de mais moderno e mais chique no pensamento francês da época. Meu problema não era então Maio de 1968, quando se criou Vincennes, mas o que faríamos lá, ensinar ou não ensinar. Foi a partir daí que voltei à questão da ideologia, a relação entre o saber a efetividade social, e a política.
Folha — O sr. foi um dos autores, com Althusser, de "Lire le Capital''...
Rancière — Sim. "Lire le Capital'' é o resultado de um seminário na École Normale Superieure entre 1964 e 1965...
Folha — Bastante criticado no Brasil...
Rancière — Sim, eu sei. Depois de 1968, em 1969, escrevi uma crítica, uma autocrítica, de "Lire le Capital'', do althusserianismo, que circulou primeiro na América Latina e só foi sair na França alguns anos depois. Foi publicado primeiro na Argentina. Depois, fiz uma reprise de toda a época althusseriana, da relação entre filosofia e política.
Folha — Nessa época de "idas e vindas'' entre a universidade e as fábricas, o sr. era militante de que movimento?
Rancière — Era da "Esquerda Proletária'', maoísta, que no começo era uma dissidência do grupo de estudantes comunistas, em particular uma dissidência do grupo dos estudantes althusserianos, e que era muito ativa entre os anos entre 1968 e 1973.
Folha — Nos seus últimos trabalhos o sr. desenvolve um conceito próprio do que é político. O sr. diz que a política se constitui não na luta dos grupos pelos seus interesses, mas na ocorrência de uma disputa pela possibilidade de haver o conflito, quando entram em cena aqueles que estavam mudos. Não sei se me engano, mas isto lembra a célebre discussão entre os marxistas sobre o que é classe, a discussão sobre os proletários tornarem-se uma classe quando finalmente assumem seu papel na luta de classes.
Rancière — No meu trabalho efetivamente tentei recolocar em discussão toda essa questão de classe e luta de classe. Mas cada vez mais enfatizei o conteúdo simbólico do conceito de classe, em oposição a uma noção que se prende a definições econômicas, histórico-econômico-sociais. Cada vez mais penso o conceito de classe como um conceito estritamente político. Quer dizer, a luta de classes não é uma invenção moderna, não é uma característica da modernidade. Ao contrário, ela foi pensada de maneira forte, fundamentalmente pelo pensamento político antigo.
Os filósofos antigos constatam que há o partido dos pobres e o dos ricos, mas isso não é apenas uma "constatação sociológica'', não se trata de dizer: há os que têm dinheiro e os que não tem etc. Os pobres são, na verdade, os que não têm títulos, os que não podem fazer a política, governar, ao contrário dos que naturalmente já possuíam este título, em função de seu nascimento, de sua nobreza, de sua sabedoria etc. Há uma divisão simbólica do espaço da comunidade, que não é definida sociologicamente, por uma reunião de tais e tais categorias em um grupo. O que quer dizer, a política é o governo dos iguais sobre os iguais. O conceito de poder, do governo dos iguais sobre os iguais que é uma espécie de paradoxo lógico, político e social monstruoso. A luta de classes...
Folha — Seria um paradoxo também...
Rancière — Sim, é o paradoxo fundador da política, que as pessoas que não tenham nenhum título para governar governem, que as pessoas que não devam fazer política a façam.
Folha — Então quer dizer que a classe, para o marxismo, a classe que precisa lutar para ser tida como tal, é o equivalente do que o sr. chama de "sujeitos do dissenso'' em seu livro "La Mésentente'' (O Dissenso), aqueles excluídos que se inventam como sujeitos da política?
Rancière — A classe em Marx é um conceito dúbio. Há tanto um conceito sociológico como um conceito político, principalmente quando ele se refere ao proletariado como uma não-classe, uma dissolução de todas as classes. Se há algo forte nessa definição, é que uma classe, politicamente falando, é algo que está além da simples classificação de funções, profissões, grupo social. Uma classe é uma divisão do espaço comunitário, uma classe faz parte da ordem dos desclassificados...
Folha — O sr. diz que um "animal político" é um "animal literário", evidentemente se referindo à idéia dde que é preciso se inventar simbolicamente para ser sujeito da política.
Rancière — Um animal literário é aquele que tem seu destino alterado pelo poder das palavras, que altera a rota do animal social, gregário, comum. Quando há um momento politicamente forte, de certa forma a "politicidade'' deste momento está relacionada à "literariedade'', quer dizer, a essa descoberta dos sujeitos como "seres falantes'' ("êtres parlants''), do poder das palavras, o poder de tornar iguais os seres falantes. Toda a crise de consciência política forte se constitui de tomadas de consciência de seres falantes que interrompem toda a lógica da dominação, quando as palavras não têm mais a função exclusiva de designar os objetos ou de determinar ações. O animal literário escapa da normalidade pela eficácia de palavras como "igualdade'' ou "liberdade''.
Folha — O modo como o sr. define o político, a politicidade, a política é alguma coisa muito rara, é um momento raro e radical, é a intervenção de um sujeito novo. A política estaria morta hoje em dia?
Rancière — Eu não diria que ela está quase morta. A política é sempre uma ruptura com a auto-regulação, com a dominação, o que defino como "police''...
Folha — A "logique policière'' (a administração do status quo)...
Rancière — Isso, os indivíduos e grupos colocados cada um no seu lugar, cada um com seu estatuto social definido, o governo enfim. Não é isso que chamo de política. A política é justamente o que rompe com isso, o que cria atores novos, objetos novos, em relação a esta lógica. Quando, no começo do movimento operário, discutem-se as condições de trabalho não como uma questão pública e não como um assunto entre pessoas, entre partes privadas, isso é um escândalo, eles criam um objeto novo: isso é a política.
Folha — Mas não há "novos sujeitos'' no horizonte para forçar essa "logique policière''...
Rancière — Sim, cada vez mais há uma saturação "policière'' da política, é o que se chama de consenso, nas nossas sociedades. Todos os grupos e problemas entraram nessa lógica, de realizar pactos para fixar os limites do possível, com parceiros sociais definidos e já identificados e integrados. Essa ausência de política, essa regra consensual, é ao mesmo tempo o outro lado de tudo isso que estamos vendo, do retorno do poder carismático, das guerras étnicas, racismo, xenofobia: é a modernidade, que é também consenso, o mercado etc. A política é o arcaico, o conflito. Sim, a política é rara, muito rara, mas não diria que ela está morta, nem mesmo com a hegemonia da idéia de consenso. Não sou um ator político muito ativo, mas me associo a este ou àquele combate que me parece ligado a tais questões.
Folha — Por exemplo?
Rancière — A questão da Bósnia, a questão da cidadania, da cidadania política e a ordem "policière'' mundial.
Folha — Quais podem ser os novos sujeitos do dissenso? De onde eles podem aparecer?
Rancière — Existem novos sujeitos a medida que se inventam conflitos ou se reinventam antigos conflitos. Os novos sujeitos podem aparecer no limite do consenso, entre os excluídos do consenso, que são duplos um do outro, a exclusão e o consenso. Mas a verdadeira política é uma coisa que não se anuncia.
Folha — O sr. vota?
Rancière — Depende, às vezes isso acontece (risos), não regularmente..
Folha — Nas últimas eleições presidenciais o sr. votou em quem?
Rancière — Votei em Lionel Jospin (socialista, que disputou e perdeu a eleição para Jacques Chirac), mais pelo meu filho, mas eu não espero nada do Partido Socialista, gostaria de frisar.
Folha — O sr. critica a hegemonia atual da idéia de consenso, os pensadores da harmonia liberal de interesses e a razão comunicacional. O que o sr. pensa de Habermas?
Rancière — Acho que pensar a política a partir da razão comunicacional habermasiana... Toda a lógica da razão comunicativa é a lógica do aprofundamento das implicações de uma situação de interlocução, na qual todos os parceiros já estão constituídos, dados. A partir do momento em que os grupos começam a discutir, eles vão confrontar suas normas de validade e, enfim, para serem coerentes com sua lógica, eles têm que estar de acordo com certas regras de discussão, sem o que se estaria desqualificado. O que tento mostrar é que a lógica da política não é essa, é a lógica do dissenso, daquele que não faz parte da discussão, de criar normas que não existem. Os sujeitos da política se inventam inventando as normas da discussão.

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